A pauta da segurança pública

Imagem: Kendall Hoopes
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Por LUIZ EDUARDO SOARES*

O ponto nevrálgico é a repactuação antirracista. Só ela terá força para dissolver o enclave antidemocrático que encapsulou as polícias

O Brasil precisa de mudanças profundas e urgentes, mas qualquer candidatura progressista que tente se viabilizar para derrotar o neofascismo bolsonarista necessitará coligar-se com forças conservadoras, em torno de um projeto centrista de reconstrução democrática. A situação é tão dramática e o país regrediu tanto, que a vitória da coalizão moderada será celebrada como o triunfo da vida sobre a morte.

Nesse contexto, como a segurança pública deveria ser pautada?, considerando-se que: (i) reformas tópicas e incrementais não produziram efeitos consistentes, seja por sua insuficiência, seja porque foram descontinuadas; (ii) reformas institucionais de natureza constitucional, embora indispensáveis, não foram sequer votadas no Congresso, tal a resistência que ensejam; (iii) o próximo governo, mesmo antifascista e socialmente sensível, terá de acomodar alianças tão amplas que se verá impedido de promover transformações onde reações conservadoras ameaçarem a coalizão política.

Entretanto, se a violência do Estado não for contida, não haverá futuro para a democracia. As propostas a seguir dirigem-se ao futuro governo, não à campanha, cuja lógica exige estratégia específica. A meta é evitar o reiterado e naturalizado desrespeito à Constituição. Portanto, deveria ser comum a socialistas, liberais e conservadores. Hoje, para pobres e negros, a legalidade é uma utopia.

Há, em média, 50 mil homicídios dolosos por ano (mais de 70% homens negros e pobres); sete mil mortes provocadas por ações policiais (a imensa maioria das vítimas é negra e pobre), sobretudo no âmbito da chamada guerra às drogas; pouca elucidação de crimes letais (quase nenhuma, quando os autores são policiais -a impunidade conta com a cumplicidade tácita do Ministério Público); encarceramento em massa (principalmente de jovens negros, pobres, não armados e não envolvidos em organizações criminosas, que atuam no pequeno varejo das substâncias ilícitas); a maioria das prisões dá-se em flagrante. Os presos são cerca de 700 mil, quase 40% por tráfico de drogas (62% entre as mulheres).

Como a Lei de Execuções Penais é descumprida, facções criminosas dominam as penitenciárias, forçando os presos a negociar a sobrevivência em troca de engajamento após o cumprimento da pena. Ou seja, estamos contratando violência futura: fortalecendo as facções ao preço da destruição de gerações de jovens não violentos e de suas famílias. O que se verifica, em suma, é que está em curso uma dinâmica perversa que se autonomizou. Ela deriva da combinação entre lei de drogas, encarceramento em massa, desobediência à LEP e o modelo policial herdado da ditadura.

Os efeitos deletérios deste amálgama foram agravados pela política governamental que flexibilizou o acesso a armas e munições, e reduziu sua rastreabilidade, assim como pela ascensão em escala transnacional da ultradireita, adepta da militarização da segurança.

Claro que segurança pública não se resume a polícias, prisões, proibicionismo e punitivismo. Por melhores que fossem nossas leis e instituições (e há boas propostas para reformar as leis e as polícias, como a PEC51), não faria sentido esperar menos violência e crime se a sociedade tem se degradado em desemprego, informalidade, evasão escolar e desalento, sob um programa neoliberal predatório que aprofunda desigualdades e intensifica o atávico patriarcalismo racista brasileiro.

Portanto, mudanças consistentes na segurança evidentemente dependeriam de transformações muito mais abrangentes. Contudo, estas últimas tampouco bastariam, justamente porque a dinâmica perversa descrita acima logrou autonomizar-se.

Seria equivocado transportar para o caso brasileiro a análise formulada para outras sociedades, em cujos termos os fatores acima referidos se articulariam para formar uma unidade funcional, a serviço dos interesses das classes dominantes e da estabilização do neoliberalismo: enquanto o mercado é mantido “livre” – sob tutela estatal, evidentemente – e os direitos sociais são dilapidados, a massa expelida do mercado de trabalho, excluída dos benefícios do Welfare e potencialmente subversiva, é confrontada com a ameaça do encarceramento.

Se fosse assim, o que denominei dinâmica perversa – mobilizando mecanismos policiais, jurídicos, penais e legislativos – não seria mais que uma estrutura funcional, perfeitamente racional para os interesses hegemônicos. Todavia, os dados brasileiros desautorizam esta conclusão. A referida dinâmica se intensificou enquanto o país conquistava pleno emprego, reduzia a miséria e enfrentava as desigualdades.

A máquina que aprisiona, humilha, agride e mata pobres e negros (não raro, violando também direitos dos próprios policiais) revelou-se nada funcional aos interesses capitalistas (exceto aos empresários da segurança privada e da indústria armamentista). Mesmo assim, continuou a girar, aumentando a insegurança coletiva e esvaziando atividades econômicas, enquanto promovia o genocídio de jovens negros e pobres.

A selvageria policial-penal brasileira não é indispensável ao capitalismo, nem à estabilidade política de seu domínio, pelo contrário, dificulta sua reprodução e dissemina tensões e fraturas sociais. Contudo, as elites se acomodam a essa realidade, porque prevalecem, consciente ou inconscientemente, o ódio arcaico, a repulsa patrimonialista ao trabalhador manual e o racismo atávico, legados de três séculos de escravidão, na esteira do extermínio de tantos povos originários. Além disso, a ultradireita e os demagogos oportunistas aproveitam-se da insegurança e parasitam a violência, porque se alimentam do medo e do ódio.

 

A fantasia do controle e o mito do hiperfuncionalismo

A seguinte tese frequenta os manuais de introdução à sociologia e soa trivial, embora talvez seja contraintuitiva para muitos: “Nem tudo que há na vida social existe segundo uma vontade e um interesse” – embora, em boa parte dos casos, isso aconteça. Há fenômenos que são efeitos de agregação -os chamados efeitos perversos da ação social- ou resultam de erros de cálculo, equívocos táticos ou enganos estratégicos, seja na escolha dos métodos, seja na identificação dos próprios interesses por parte de indivíduos, grupos e organizações.

Ampliando a abrangência da tese, dir-se-ia que nem tudo funciona na sociedade, nem as leis, nem as instituições mais ou menos estáveis, nem os arranjos que se ordenam e se desfazem, sucessivamente. Nem todos os dispositivos cumprem funções previstas ou atendem aos interesses que suscitaram sua criação. No processo de sua existência, são alvo de racionalizações e redefinições, e são objeto de disputas tanto por sua direção, quanto pela apropriação da energia que precipitam ou dos benefícios e malefícios que produzem – recordemo-nos do spoiling power, que pode ser devastador e desequilibrar jogos políticos e econômicos. Os malefícios ensejam também resistência.

Tomemos, por exemplo, um enunciado que soa trivial: “Polícias existem para controlar a sociedade e o controle interessa ao poder estabelecido”. Seria mesmo este o caso, nas condições que se verificam em nosso país? Há controle? De quais atores sobre quais outros ou quais ações? Em que contextos, de que forma, em que grau? O que entendemos por controle, exatamente? Sob tal categoria, controle, não haveria uma pluralidade de situações distintas e contraditórias, gerando efeitos diversos, eles mesmos contraditórios?

O controle eventual, circunscrito no tempo e no espaço, é sucedido pela estabilização de algo que se poderia chamar ordem ou por instabilidade e algo bem diferente dessa ordem, idealizada ou não? Uma operação policial numa favela, no âmbito da “guerra às drogas”, deixando para trás um rastro de sangue e indignação, fertiliza a emergência de que tipo de ordem? Lega ao dia seguinte que situação? Aquilo que a palavra controle descreveria? Que implicações a repressão policial enseja? E o encarceramento em massa?

As polícias e as políticas criminais (punitivas e proibicionistas) não exercem nenhum controle significativo, não têm exercido controle social algum, não controlam sequer as dinâmicas criminais. Pelo contrário, aumentam a imprevisibilidade e, portanto, a insegurança, e implodem os mecanismos de domínio do Estado sobre seus braços armados. Além disso, têm fortalecido as facções criminosas e disseminado ódio e desespero.

O que está controlado? Não nos enganemos: o que foi recalcado não está sob controle e retornará (tem retornado), traumaticamente, para assombrar qualquer veleidade de apaziguamento democrático. Bolsonaro é o nome desse complexo traumático.

O messianismo bolsonarista não é um sebastianismo, é só a antecipação ansiosa da catástrofe, a profecia (autorrealizável) de caos e morte, o pressentimento do descontrole terminal ao qual se reage com violência extrema, provocando assim o desfecho temido. Esta dinâmica autoimune de coloração fascista já estava inoculada nas culturas policiais quando elas foram recepcionadas, acriticamente, na transição política.

 

Conclusão

Por mais absurdo que pareça, o fenômeno de reprodução inercial das mesmas práticas policiais violadoras, indiferentes às evidências de seus efeitos negativos, como se fora um vício, merece uma definição tão exorbitante quanto é escandalosa sua persistência. Sugiro pensá-la e tratá-la como “compulsão à repetição”, racionalizada pelo discurso institucional. Compulsão à repetição de pequenas violações e grandes atos violentos, colocando em marcha uma linguagem performática cujo papel é endereçar a abjeção ao Outro – este Outro, no Brasil, é a população negra e, secundariamente, são os pobres, reunidos no território estigmatizado.

A abjeção endereçada identifica, isola e exorciza o mal – autorizando inclusive execuções extrajudiciais –, em benefício dos “cidadãos de bem”. Não por acaso, o coronel que comandava a PM na capital do estado do Rio de Janeiro declarou, em 2008, que a polícia é um “inseticida social”.

O vocabulário higienista confessa o que o discurso oficial encobre. O fato de não ter havido ruptura nas instituições da segurança pública, durante o processo de transição política da ditadura para a democracia nos anos 1980, permitiu que perdurassem valores e comportamentos que as polícias cultivavam no regime militar, especialmente seu entendimento de que lhe caberia protagonizar a luta do bem contra o mal.

A guerra às drogas, alheia a resultados (acumula custos, mortes, corrupção, promove milícias e não reduz o consumo), espelha a trama psíquica e prática contra a qual se projeta e que supostamente justificaria sua existência: a adição.

Se o inusitado diagnóstico faz sentido, sugiro que, na pauta do futuro governo, se inclua a celebração de um pacto antirracista na vida nacional, concentrando-se na esfera da segurança – e nada mais fiel à letra da Constituição, o que impediria liberais e conservadores legalistas de se oporem.

O governo convocaria os movimentos sociais e estabeleceria como prioridade política o fim do viés de raça e classe em ações policiais e na atuação da Justiça criminal. Mesmo que não disponha dos meios substantivos para alcançar o objetivo, a proclamação da meta teria em si mesma um poder indiscutível e acionaria uma nova dinâmica. O que proponho é um gesto político.

O governo eleito para a reconstrução da democracia convocaria os movimentos antirracistas de todo o país e negociaria a formação de núcleos populares regionais e locais para propor, acompanhar e avaliar a implementação, de início experimental, de medidas práticas e imediatas (que podem variar entre os estados).

Não se trata, portanto, de repetir as tradicionais conferências fadadas ao fracasso por sua própria composição. Em paralelo, abriria linha de crédito especial para que os estados fortalecessem as Defensorias Públicas, que não podem ser inferiores ao Ministério Público em nenhum aspecto.

Enquanto põe em marcha esse processo político experimental junto à sociedade, e enquanto age para reduzir a devastação ambiental, os ataques aos povos originários, a miséria, o desemprego, a uberização e o desalento, o governo concentraria os investimentos repressivos e investigativos nas armas, restringindo severamente sua circulação e deslocando o foco de incursões militares em áreas vulneráveis para a interceptação do tráfico de armas.

Em paralelo, acordaria com os governos estaduais a universalização do uso de câmeras nos uniformes policiais e encaminharia a criação de um conselho federal de educação policial, como órgão de Estado, não de governo.

O ponto nevrálgico é a repactuação antirracista. Só ela terá força para dissolver o enclave antidemocrático que encapsulou as polícias, tornando-as refratárias ao poder político e civil. Só ela estenderá à Justiça criminal a transição democrática, até aqui precária e incompleta. Os impactos sobre o conjunto das questões sociais seriam profundos e positivos.

*Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de segurança pública (2003). Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo).

Publicado originalmente no Jornal GGN.

 

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