Por SERGIO GODOY*
Crônica de uma corrida de Uber
Ontem fiquei realmente assustado, estava ansioso por ter contato real com a eleição porque foi a primeira desde meus 16 anos que não pude ir à rua fazer campanha e falar com as pessoas. Assim que pego o Uber, saindo do aeroporto, começo a conversar com o motorista sobre amenidades pra poder abrir espaço para o assunto central, as eleições.
O Motora era um jovem negro, simpático, usava óculos, gordinho, ouvindo um samba no rádio, fala mansa, bom vocabulário. Cara bem legal. Carro já meio usado, a gás, com um cheiro estranho no interior. Ele me conta que está se organizando para comprar uma casa no ABC paulista. Na tipologia sociológica de Jessé de Souza, o motora seria um batalhador.
Quando a prosa chega na eleição, ele declara que vai votar no Pablo Marçal porque é o único capaz da mudança. Pablo Marçal é muito bom de discurso e enfrenta os políticos tradicionais, ele afirma que viu nas redes sociais.
Pergunto se ele confia se Pablo Marçal é realmente capaz de fazer tudo que promete, se não são soluções muito fáceis. Ele diz que espera que sim, mas que geralmente os políticos não cumprem o que prometem porque não sabem a complexidade do que estão falando.
Ele demonstra saber que as promessas de Pablo Marçal são simplistas, mas não se importa.
Perguntei sobre as denúncias de crimes e enriquecimento ilícito, ele disse que já votou em Lula para tirar o Jair Bolsonaro, era a única forma de arrancar o palhaço do governo, então isso também não importava mais.
Sem eu perguntar, ele disse que se preocupava com os seguidores do Pablo Marçal, parecia uma seita, eram cegos, mas eram iguais os petistas, e que isso o assustava, que a polarização cansava ele (usou exatamente essas palavras).
A corrida estava acabando, perguntei se Guilherme Boulos não podia representar essa mudança, ele respondeu que não, de forma nenhuma. No segundo turno não votaria em Guilherme Boulos. Ele preferia a Tabata Amaral, mas ela não tinha chance, ele achava que Pablo Marçal iria ganhar então estava pensando em votar no Pablo Marçal no primeiro e no segundo turno.
Eu optei por não fazer campanha, fiquei muito dividido, pensando o que valeria mais no momento: disputar um voto ou ouvir aquela personagem.
Guilherme Boulos que me perdoe, mas prevaleceu a necessidade de escuta. Embora me tenha gerado muita ansiedade, preciso admitir.
Claro que é só uma pessoa, não é possível elaborar um quadro estatístico representativo ou um estudo etnográfico.
Mas o rapaz era tão consciente do que falava, ele conhecia os dois polos e optava de forma sólida.
É incrível como se pode ser tão consistente e desconhecedor sobre o resultado da sua escolha ao mesmo tempo. Uma aula prática sobre o verdadeiro significado de alienação, diria o velho Marx.
Porque o Motora ignora o quão trágico para ele e todos os jovens negros de São Paulo será se Pablo Marçal ganhar. Mas ao mesmo tempo ele conhece os argumentos e se posiciona com segurança.
Por isso a conversa pareceu muito representativa e profunda, com muitos elementos pra análise e digna de registro. Uma verdadeira crônica de uma tragédia anunciada. Com muitos pontos para debatermos.
De antemão preciso dizer que colocar Lula e Pablo Marçal no mesmo lugar, o de única opção para mudar o indesejável, tolerando uma ficha criminal, é algo intragável. Mas que precisamos analisar.
A simplificação da luta política na forma de polarização é outra questão difícil. Não são dois polos, é o fascismo versos o socialismo. De um lado quem aceita dominação e morte, de outro quem promove solidariedade e justiça social.
Mas esta é a tal da alienação, uma neblina forte que impede que se enxergue mais de 10 metros.
Mesmo que Pablo Marçal perca a eleição, ter ganhado espaço na mente deste jovem, da forma como ganhou, já é algo que merece nossa atenção, e ação.
*Sergio Godoy é doutorando em Relações Internacionais no PROLAM- USP.
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