Por ANDRÉ RONCAGLIA*
Neoliberais fundamentalistas como Guedes usam um “prazo aceitável” elástico para a realização de suas previsões. Este prazo é sensível ao tempo necessário para suas “reformas” finalmente terem efeito; seis meses, um, dois… até quatro anos
Os números do desemprego são alarmantes. No último mês, mais de um milhão de pessoas perderam seus empregos no Brasil e pelo menos 44% das empresas já sofreram perdas significativas de receita por conta das medidas de contenção do contágio da COVID-19.
A desorganização do governo federal em comandar esta campanha mostra os limites da estratégia de Bolsonaro. Desde sua posse, aplica-se um laissez-faire gerencial. Ideias são jogadas de forma primária em projetos de lei que caducam ao sabor dos humores da base de apoio do governo na Câmara. A capacidade de iniciativa do governo só serve para alimentar propagandas na bolha das redes sociais. Quando um projeto dá com os burros n’água, culpa-se a “velha política” ou a “esquerda” que não quer ver o país avançar. Os “sucessos” mais claros deste governo foram todos herdados do Governo Temer (reforma da previdência e lei de liberdade econômica).
Não surpreende, portanto, que a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 seja tão vazia de projetos para construção de qualquer noção de futuro. A reunião mostra claramente o projeto Casa Grande com Cassino, de preferência no fazendão amazônico que Ricardo Salles quer fundar ao “passar a boiada” das desregulamentações ambientais.
A fala de Guedes é das mais fantasiosas em toda a reunião. Desde a ideia de que estudar muito equivale a ler “oito livros” até a propaganda de que a economia estava prestes a decolar antes da pandemia. Neoliberais fundamentalistas como Guedes usam um “prazo aceitável” elástico para a realização de suas previsões. Este prazo é sensível ao tempo necessário para suas “reformas” finalmente terem efeito; seis meses, um, dois… até quatro anos. Afinal, segundo esta visão, as “restrições” são a melhor disciplina para turbinar a inventividade dos indivíduos, sejam eles empresários ou funcionários públicos.
O problema é que Guedes tem a caneta de Bolsonaro ao seu dispor. Por isso, o descolamento de sua visão com relação à realidade concreta do Brasil é um perigo. Se é encenada ou autêntica, jamais saberemos. O que importa é a sua teimosia com infantilidades teóricas já abandonadas há décadas pela escola de economia que inflaciona o valor de seu currículo. E ele está disposto a ir longe para impor sobre a realidade esta visão de mundo. A primeira forma é o atraso nos repasses a famílias e micro e pequenos empresários vulneráveis por meio de barreiras burocráticas insuperáveis pela maior parte da população necessitada. O segundo é a opção em repassar o dinheiro às empresas por meio dos bancos comerciais. Mesmo oferecendo, via Tesouro Nacional, uma garantia de 85% de um empréstimo para manutenção das atividades comerciais, os bancos comerciais utilizarão a mesma régua de avaliação de risco que usam em tempos de normalidade. O sarrafo da aprovação dos novos empréstimos ficará inalcançável, em particular quando o solo da economia vai afundando em torno dos bancos. Afinal, estes últimos estão sempre protegidos pelo acesso exclusivo ao passivo do Banco Central, o qual compra os “ativos podres” dos bancos e os coloca em seu ativo.
Vou ilustrar com um exemplo “fabuloso”. Você tomou dinheiro emprestado em um banco para abrir um negócio poucos meses antes da pandemia. Montou a loja, contratou pessoas, montou estoque e tudo o mais. Veio a pandemia e sua loja naufragou. O banco te pressiona para pagar, mas ninguém quer comprar sua loja; ela se tornou um ativo podre, isto é, sem qualquer chance de prosperar num prazo compatível com a paciência do credor. Você vai ao Banco Central e ele adquire este ativo invendável e te retorna dinheiro vivo. Sua loja que era um “ativo ilíquido” tornou-se “líquida”. Você paga o banco e se livra da dívida. Fim da fábula.
Este é o espírito da PEC do Orçamento de Guerra: garantir acesso exclusivo à liquidez gerada pelo Banco Central… mas apenas aos bancos comerciais e ao mercado financeiro. Sua “loja” hipotética continuará “ilíquida”, mas o banco comercial poderá vender ao Banco Central o “crédito podre” (empréstimo feito a você). O banco se livra do problema e você passa a dever para o Banco Central. Eis o privilégio exorbitante conferido a quem é parceiro do Estado na criação de meios de pagamento. Mais tarde, quando a economia se recuperar, o Banco Central vende este “crédito” para outra pessoa e retira da economia o “excesso” de dinheiro vivo que repassou ao banco. Você continua com a dívida, só que deve para outro credor.
O pavor de Paulo Guedes é que o povo descubra este acesso aos cofres do Estado. A crise sanitária é, para Guedes, um “cavalo de troia” levando o cidadão médio para dentro do orçamento público. A expansão necessária dos gastos do governo poderia ser imediatamente financiada por meio de emissão de moeda por parte do Banco Central.
É exatamente o que os países desenvolvidos decidiram fazer: correr o risco de desnudar o rei ao abrirem as comportas financeiras do Estado. Guedes não capitula tão fácil. Desde o início, a estratégia do governo tem sido postergar medidas, demorar-se em formular complexas condições de acesso a recursos por parte de empresas, famílias, estados e municípios, bem como empurrar para o Congresso e para os governadores a responsabilidade por obstruir suas intenções de “melhorar o Brasil” ao seu jeito.
Durante o final de semana passado, começou a circular a notícia de que o governo demandaria US$ 4 bilhões de organismos multilaterais para custear os impactos da pandemia. Segundo a reportagem de O Globo, a operação em análise pelo governo envolveria seis bancos, com prazos de até 20 anos: a Agência Francesa de Desenvolvimento, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial, a Corporação Andina de Fomento, o banco de desenvolvimento estatal alemão KfW e o Novo Banco de Desenvolvimento, dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). A esta taxa de câmbio, os recursos somariam mais de R$ 20 bilhões, divididos da seguinte forma:
- R$ 9 bilhões para o auxílio emergencial;
- R$ 5 bilhões para o Bolsa Família;
- R$ 2,88 bilhões para o programa da manutenção do emprego; e
- R$ 4 bilhões para o seguro-desemprego.
É verdade que a operação está protegida financeiramente. Além do valor irrisório, se houver depreciação cambial adicional, o país está blindado, pois o crescimento das obrigações financeiras com o exterior será compensado pela valorização dos nossos ativos (as reservas internacionais). Se houver apreciação cambial, a dívida fica mais barata quando medida em reais.
Apesar da aparência da racionalidade financeira, este recurso a credores externos é mero jogo de cena. Vejamos. O Brasil tem US$ 340 bilhões de dólares em suas reservas internacionais. Além disso, conta com as linhas de Swap de Moeda de US$ 60 bilhões que o Banco Central dos EUA (FED) estendeu ao Brasil e a vários outros bancos centrais emergentes. O FED estende liquidez imediata em dólares ao Banco Central em troca do valor equivalente em reais. Para deixar claro: US$ 4 bilhões < US$ 60 bilhões.
Para tornar a situação ainda mais estranha, de janeiro a maio deste ano, o Brasil acumulou quase de R$ 600 bilhões com ganhos cambiais das reservas, devido à depreciação cambial. O governo considera usar este dinheiro para pagamentos referentes à dívida pública. Como já expressei junto a outros colegas, esta reserva fiscal poderia ser muito útil neste momento. Um projeto de lei encaminhado ao Congresso pelo Deputado Federal Paulo Teixeira (PT-SP) permite acesso excepcional a estes recursos apenas enquanto durar a pandemia. Não tenho esperanças quanto à sua aprovação.
Portanto, se não falta dinheiro, por que lançar mão de um empréstimo junto a órgãos multilaterais?
Tenho uma hipótese. Usando a fala de Salles, por onde passa boia passa boiada. Primeiro, este empréstimo simbólico pode abrir espaço para outros com valores crescentes, se as taxas de juros continuarem baixas e o câmbio continuar a depreciar. Segundo, o benefício financeiro é acompanhado por uma proteção política de restabelecimento futuro da ordem: trata-se de uma estratégia para terceirizar a responsabilidade pela imposição de uma agenda de austeridade no pós-pandemia.
Na Odisseia de Homero, Ulisses se acorrentou ao mastro do navio para não cair no canto da sereia. O Ministério da Economia é o Ulisses da trama e o “canto da sereia” é a “finança funcional”. Esta última é a ideia de que o Estado tem um orçamento flexível, não estando sujeito às regras rígidas de orçamento equilibrado de famílias e empresas.
É preciso salientar que a divisão entre Banco Central e Tesouro Nacional é uma autoimposição administrativa. Ela gera compartimentos contábeis para fins de controle financeiro. Em essência, não há limites operacionais à emissão de moeda. Com efeito, o limite para esticar o orçamento público é a capacidade produtiva da economia. Trata-se de uma “restrição inflacionária” (muito dinheiro correndo atrás de poucos bens). Até lá, emissão monetária e endividamento não ferem a estabilidade macroeconômica, mas fere interesses muito profundos dos credores da dívida pública.
O temor é que se a inflação ficar fora controle, o valor do patrimônio financeiro do setor privado nacional sofrerá perda real, uma vez que é fortemente aplicado em dívida pública. Por isso, é preciso proteger-se deste canto da sereia. Mas, como? Bolsonaro fala um “liberalês” com forte sotaque estatista que não convence os grupos de interesse que Guedes representa. Melhor fazer um hedge político com um ou mais credores externos. Afinal, o FMI já não é mais o mesmo e não defende a austeridade com tanto fervor como antes.
Esta jogada de Guedes mostra que ele está disposto a dar esta imensa volta financeira para não revelar que a democracia brasileira cabe no orçamento público. Mesmo em meio a uma calamidade desta magnitude, enquanto ele for ministro, este segredo permanecerá guardado sob o jargão hermético da economia e do direito administrativo. E nisso ele tem o apoio de muitos economistas e do próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Esta jogada de Guedes é a caricatura de um governo que, incapaz de avançar ao futuro, tem o passado como destino final.
*André Roncaglia é professor de economia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Publicado originalmente no Jornal GGN.