A política fiscal no Brasil

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANDRÉ RONCAGLIA*

O sonho tecnocrático é organizar a sociedade por meio de regras impessoais que canalizem a energia dos indivíduos para a cooperação social e econômica. Contudo, nenhuma regra é neutra do ponto de vista do poder

Vinicius de Moraes ficaria surpreso. O debate sobre a política fiscal no Brasil vai parecendo cada vez com sua folclórica canção “A Casa”. Até 2016, nosso orçamento não “tinha teto” de gastos, não tinha nada.

Até a implementação do plano real, os conflitos pela renda se davam de maneira difusa por toda a sociedade. Empresários elevavam preços, pressionados por correções de tarifas públicas e pressões de sindicatos por aumentos de salários. Estes últimos lutavam por atualizar seus rendimentos desde o último reajuste pela inflação acumulada, resultante da elevação dos preços dos empresários. O círculo vicioso se repetia, movido por forças “inerciais” próprias que chegavam até a “acelerar”. A inflação brasileira refutara a física newtoniana.

A teoria da inflação inercial era uma novidade brasileira que parecia explicar um aspecto importante da nossa experiência inflacionária. O fracasso do Plano Cruzado e dos subsequentes planos de estabilização deu centralidade ao equilíbrio fiscal. Este passou a ser entendido como condição fundamental para manter as expectativas ancoradas e impedir a retomada da inflação após a tentativa de estabilização.

Um dos objetivos do Plano Real foi centralizar no orçamento público os conflitos distributivos da sociedade. O esforço começou na primeira etapa do Plano Real, com a criação do Plano de Ação Imediata (PAI) e o Fundo Social de Emergência (FSE). Este último foi a semente da desvinculação orçamentária que o ministro Paulo Guedes hoje tenta disseminar, com a virulência do sarampo, para o restante das contas do orçamento. A Lei de Responsabilidade Fiscal do ano 2000 foi a consagração deste esforço de infundir vigilância e transparência ao processo orçamentário público.

O objetivo era tornar estes conflitos mais “transparentes” e, via processo legislativo, discipliná-los de acordo com as correlações de força no Executivo e no Legislativo. Tornando o orçamento menos “fictício”, revelaríamos à sociedade como “nosso dinheiro dos impostos” é aplicado. A golpes de indignação mobilizadora, a sociedade removeria os privilégios e os gastos excessivos e de áreas menos importantes. Tudo por meio do jogo democrático, aos olhos de toda a sociedade.

Este é o sonho tecnocrático por excelência: organizar a sociedade por meio de regras impessoais que canalizem a energia dos indivíduos para a cooperação social e econômica. As regras dosariam a temperatura dos conflitos sociais e, de forma ordenada e pacífica, direcionaria o processo de reforma gradual do Estado e de suas relações com a sociedade civil e o mercado. Eis um mundo em ordem!

Contudo, nenhuma regra é neutra do ponto de vista do poder. Afinal, é a constituição deste último que a produz. E o poder quer sempre mais poder. As Leis de Potência protegem as hierarquias de sua dissolução. Se riqueza gera mais riqueza, seu oposto também se aplica (com raras exceções): pobreza gera mais pobreza. E sem uma mudança nas estruturas de poder, não se pode controlar a temperatura social. Os extremos se afastam.

A civilização tenta manter lacrada a caixa dos instintos primitivos que levam à resolução violenta de conflitos. A polarização econômica e social eleva a temperatura e a pressão. As moléculas se chocam com mais frequência. A desorganização avança. Eis a sociedade em entropia.

Ainda que limitado como projeto de desenvolvimento de longo prazo, a “capitalização das classes pobres” durante os governos do PT exigiu maior espaço social e orçamentário para as classes emergentes da pobreza. A sociedade e o orçamento público expuseram a nervura do real enrijecimento de suas estruturas. A pressão subiu. Sintoma desta ebulição social que explicitou a hierarquia da sociedade brasileira, os protestos de junho de 2013 deram o pontapé na agitação social que culminaria com a eleição de 2018.

Neste caminho, o anseio de parte do eleitorado por ordem foi ganhando contornos mais claros. O impeachment de Dilma foi o primeiro passo. O golpe parlamentar com pretexto fiscalista mostrou suas cores rapidamente. Em menos de seis meses, um Congresso Nacional extasiado aprovou, em tempo recorde, a Emenda Constitucional 95 ou a regra do teto de gastos.

A metáfora do teto é aflitivamente precisa. Trata-se de mais uma etapa na realização do sonho tecnocrático de ordem: impedir que os conflitos distributivos escapem da “caixinha” orçamentária e contaminem a sociedade com o vírus inflacionário. Se o teto ruir, segue a narrativa, a sociedade explode em hiperinflação.

Segundo esta narrativa, para que a catástrofe não ocorra, é imperativo “explicitar” os conflitos por fatias do orçamento. Isso gerará mais conscientização por parte da sociedade, a qual se organizará para defender os gastos que realmente importam.

A ideia não é errada em si. O problema é saber se as estruturas de poder permitem sua viabilização tal como idealizada. Como Guedes vem mostrando, há várias formas de “fugir” às imposições da regra, usando o Fundeb inclusive. No conflito entre a tecnocracia e as elites políticas, quem usualmente sai perdendo é a coisa pública, variável de ajuste do sistema.

Uma vez “projetado” o teto de gastos, precisamos construir suas vigas de sustentação… Primeiro passo desta agenda: acabar com as desonerações fiscais das grandes empresas que custam anualmente cerca de R$ 300 bilhões por ano aos cofres públicos.

Calma, é só brincadeira… Primordial é a redução do Estado balofo e ineficiente. É aí que entra aquele apoio da imprensa alinhada com o que chamei de projeto Casa Grande com Cassino no imenso Fazendão Amazônico. Todo “mito” precisa de uma nêmesis; o “messias” carece de um “fariseu”.

A reforma da previdência foi o primeiro capítulo desta novela. Uma luta árdua de pelo menos três anos contra as aposentadorias generosas dos servidores públicos (assim, no agregado). A segunda pilastra do teto é a reforma administrativa. Como na primeira, o inimigo é o “servidor público”, este ente nobiliárquico médio que vive com privilégios nababescos. Mas, desigualdades multidimensionais complicam enredos binários que fomentam a indignação social necessária.

Neste segundo capítulo da novelização das desigualdades sociais, a sociedade brasileira sofre homogeneamente as dores da pandemia enquanto os servidores públicos trabalham remotamente de seus palácios nas Bahamas. As desigualdades que separam os valentes entregadores de aplicativo Matheus e Paulo Galo das “naturais” proteções que as riquezas sub-tributadas oferecem a Bia Dória e companhia também se manifestam no serviço público.

Fonte: Revista Piauí. Quem ganha mais no serviço público.

 

Como a da previdência, a reforma administrativa a qualquer custo manterá os privilégios que a motivam no plano do discurso. Afinal, as estruturas de poder validarão a tal reforma ao preço de ficarem imunes a ela. No bom e velho toma-lá-dá-cá no topo da pirâmide social, o custo das reformas se distribuirá no andar de baixo, na forma de precarização dos serviços públicos, em particular em saúde, educação e ciência e tecnologia.

Por todos estes motivos, quando visto pelas lentes da realidade, o sonho tecnocrático é algo como arrebanhar as moléculas de vapor d’água e aprisioná-las no copo para matar a sede. Explicitar a luta entre elas não muda nada. É a redução da “temperatura” do ambiente “social” que torna as moléculas visíveis e estáveis. Tapar o copo vai provocar uma explosão.

Em face dos efeitos socioeconômicos da pandemia, a manutenção do teto de gastos e a reforma administrativa tem tudo para elevar a pressão social em seus múltiplos recortes. É igualmente possível que o custo social deste equilíbrio seja enorme. A história talvez registre, num futuro não tão distante, que a democracia brasileira virou uma casa “muito engraçada”, em que “ninguém podia entrar nela, não, porque na casa não tinha chão”. Mas, pelo menos, o orçamento estará equilibrado.

*André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Publicado originalmente no Jornal GGN

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Berenice Bento Luiz Marques Celso Favaretto Marjorie C. Marona Heraldo Campos Ricardo Musse Anselm Jappe Benicio Viero Schmidt Vinício Carrilho Martinez Daniel Costa José Machado Moita Neto Ladislau Dowbor Salem Nasser Leonardo Boff Jean Pierre Chauvin Matheus Silveira de Souza Elias Jabbour Marilena Chauí Gabriel Cohn Sergio Amadeu da Silveira Walnice Nogueira Galvão Fernão Pessoa Ramos Otaviano Helene Everaldo de Oliveira Andrade Jorge Luiz Souto Maior Fábio Konder Comparato Flávio Aguiar Daniel Afonso da Silva Rubens Pinto Lyra Vladimir Safatle Antonio Martins Marilia Pacheco Fiorillo Slavoj Žižek Caio Bugiato Eugênio Bucci João Feres Júnior Alexandre de Lima Castro Tranjan Flávio R. Kothe Juarez Guimarães Luiz Bernardo Pericás Jean Marc Von Der Weid José Luís Fiori Tadeu Valadares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luís Fernando Vitagliano Afrânio Catani Maria Rita Kehl Liszt Vieira Luis Felipe Miguel Érico Andrade João Lanari Bo Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco Pereira de Farias Lorenzo Vitral Igor Felippe Santos João Adolfo Hansen Rodrigo de Faria Armando Boito Jorge Branco Alexandre Aragão de Albuquerque José Costa Júnior Mariarosaria Fabris Alexandre de Freitas Barbosa Claudio Katz João Carlos Loebens Kátia Gerab Baggio Ari Marcelo Solon Daniel Brazil Bento Prado Jr. Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Denilson Cordeiro Thomas Piketty Luiz Carlos Bresser-Pereira Gerson Almeida Paulo Fernandes Silveira Tales Ab'Sáber Paulo Nogueira Batista Jr Dennis Oliveira Michael Löwy Boaventura de Sousa Santos Leonardo Avritzer José Micaelson Lacerda Morais Eleutério F. S. Prado Luiz Werneck Vianna Tarso Genro Bernardo Ricupero Manchetômetro Marcos Aurélio da Silva Julian Rodrigues Ronald León Núñez José Dirceu Vanderlei Tenório Marcos Silva Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Fernandes Ladeira Celso Frederico Henry Burnett Ricardo Antunes Priscila Figueiredo Sandra Bitencourt Henri Acselrad Carlos Tautz Ricardo Abramovay Gilberto Maringoni Paulo Martins Ricardo Fabbrini Airton Paschoa Leda Maria Paulani Annateresa Fabris João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Sacramento Osvaldo Coggiola Chico Whitaker Fernando Nogueira da Costa Andrew Korybko Michael Roberts Yuri Martins-Fontes Eliziário Andrade Eleonora Albano Michel Goulart da Silva Andrés del Río Gilberto Lopes Paulo Capel Narvai André Márcio Neves Soares Marcelo Módolo Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado Eduardo Borges Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho Lincoln Secco Alysson Leandro Mascaro Carla Teixeira Luiz Renato Martins Lucas Fiaschetti Estevez João Sette Whitaker Ferreira Rafael R. Ioris Luciano Nascimento Ronaldo Tadeu de Souza Renato Dagnino Samuel Kilsztajn Marcus Ianoni Mário Maestri Remy José Fontana Valerio Arcary Luiz Roberto Alves Atilio A. Boron Ronald Rocha José Geraldo Couto José Raimundo Trindade Milton Pinheiro André Singer Antonino Infranca Chico Alencar João Carlos Salles Dênis de Moraes Manuel Domingos Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES