Por MARIAROSARIA FABRIS*
Considerações sobre o escritor e artista plástico italiano Dino Buzzati
Em 1970, o dono da galeria Il Naviglio de Veneza, encomendou a Dino Buzzati uma série de quadros, os quais, distribuídos pelos quatro pavimentos do pequeno lugar, constituiriam uma espécie de narrativa. Ao pensar em como traduzir, numas trinta obras, uma história com começo, meio e fim, o artista acabou por decidir-se em contar, em trinta e quatro quadros concebidos como tábuas votivas, milagres atribuídos a Santa Rita de Cássia. Nascia assim a mostra I miracoli di una santa, cujo catálogo (mil exemplares) foi impresso em preto e branco.
Embora Dino Buzzati seja mais conhecido como escritor, atividade que exerceu paralelamente à de jornalista, sua incursão no campo da pintura não era novidade. A abertura de sua primeira exposição, na Galleria dei Re Magi, em Milão, se deu em 1º de dezembro de 1958, ocasião em que apresentou também um livro com o mesmo título da mostra, Le storie dipinte, cujas histórias foram escritas praticamente com o pincel, uma vez que os textos literários funcionavam como corolários das obras pictóricas. Em maio de 1966, tornou a expor em Milão, na galeria Gian Ferrari, e, em janeiro do ano seguinte, na galeria Il Portichetto, em Rho (cidadezinha nas imediações da capital da Lombardia). A última exposição foi realizada em novembro de 1971, pouco antes de sua morte (28 de janeiro de 1972), na galeria Lo Spazio de Roma, quando foi lançado Buzzati pittore, volume sobre sua atividade de artista plástico.[1]
Depois da exposição de Veneza (inaugurada no dia 3 de setembro), o conjunto de obras foi reunido numa publicação, I miracoli di Val Morel, com acréscimos e mudanças na ordem dos quadros, cada um deles agora acompanhado de uma pequena história, como em Le storie dipinte. Lançado em novembro de 1971, o livro teve novas edições: a de 1983 (intitulada Per grazia ricevuta) e a de 2012, na qual se baseia o presente texto. Nesta edição, que retoma a de 1971, com uma explicação do próprio escritor e prefácio do amigo Indro Montanelli – que considerou o pequeno volume “um de seus contos mais mágicos” –, foram acrescentados um posfácio de Lorenzo Viganò e o retrato de Santa Rita, pintado para um oratório, o qual atualmente se encontra na sede da prefeitura de Limana, pequena comunidade próxima de San Pellegrino (distrito de Belluno, no Vêneto), onde Dino Buzzati nasceu, em 16 de outubro de 1906. [2]
O diálogo entre artes visuais e literatura na obra buzzatiana também não era novidade, pois se havia instaurado desde as primeiras publicações do autor: as novelas enviadas ao periódico Il popolo di Lombardia (1931), Barnabo delle montagne (1933) e Il segreto del Bosco Vecchio (1935). Ao falar dos desenhos desses dois romances, escreveu Viganò numa introdução de obra posterior “Pequenos e simples, quase do tamanho de selos, usados também como letras capitulares, os de Barnabo delle montagne – para mostrar o rosto do jovem guarda-florestal, protagonista da história, o paiol onde tem de montar guarda, os cenários serranos –, mais elaborados e pictóricos os de Il segreto del Bosco Vecchio”.
A combinação texto-imagem caracterizou também La famosa invasione degli orsi in Sicilia (A famosa invasão dos ursos na Sicília), publicado cinco anos depois de seu romance mais famoso Il deserto dei tartari (O deserto dos tártaros, 1940).[3] A história contada nessa fábula vinha acompanhada de desenhos em preto e branco e ilustrações coloridas, complementadas de legendas, em que eram resumidos dados fornecidos no texto principal. Aparentemente destinada a um público infantil, a história dos ursos retomava temas e atmosferas caros ao autor desde o início. Como assinalou Francesca Lazzarato: “o relato que se desenrola através dos doze capítulos da Famosa invasão é também uma representação das idades da vida. Das montanhas da infância se passa ao rico vale da adolescência, e depois à cidade em que se conhecerão as desilusões da maturidade, para voltar, enfim, para o lugar de onde se veio e desaparecer num ilimitado, definitivo silêncio”.
A Sicília descrita na obra não era real, mas inventada, e suas “majestosas montanhas”, “cobertas de neve” (conforme o texto), remetiam às paisagens dolomíticas da infância de Dino Buzzati, aquelas “montanhas pontiagudas, reino do mistério e da pureza” (assim descritas na apresentação de La boutique del mistero). Como anotou o autor, em trecho citado por Giulio Carnazzi na “Cronologia”: “As impressões mais fortes que eu tive quando criança pertencem à terra em que eu nasci, o Vale de Belluno, as selvagens montanhas que o rodeiam e os Alpes Dolomíticos tão próximos. Um mundo nórdico, em seu conjunto”.
As paixões que o acompanharão pelo resto da vida são a montanha, a escrita e o desenho, paixões que se haviam manifestado na adolescência, quando começou a excursionar pelas serras e escreveu seu primeiro texto literário, a prosa poética La canzone alle montagne (1920), e já na infância, ao encantar-se com as obras do aquarelista inglês Arthur Rackham, ilustrador de obras infanto-juvenis, como os contos dos irmãos Grimm (1900, 1909), As viagens de Gulliver (1900, 1909), de Jonathan Swift, Peter Pan in Kensigton Gardens (1906), de James Matthew Barrie, Alice no país das maravilhas (1907), de Lewis Carroll, Os cavaleiros da távola-redonda (1917), de Howard Pyle, e Cinderela (1919), de Charles Perrault. Como afirmou Dino Buzzati, em palavras reportadas por Viganò na referida introdução: “Sua capacidade de representar atmosferas misteriosas, os espíritos das montanhas e dos bosques, as velhas casas encantadas, as nuvens, os nevoeiros, os sortilégios do Natal foi […] amor à primeira vista. Era a plena realização das […] fantasias mais íntimas”.
ll libro delle pipe, apesar de publicado no mesmo ano de La famosa invasione degli orsi in Sicilia, havia sido elaborado em 1935 e nele o escritor contou com a colaboração de seu cunhado Eppe Ramazzotti. Nessa espécie de catálogo detalhado de todo tipo de cachimbo, real ou inventado, mais uma vez, desenhos (executados no estilo do século anterior) se integravam às descrições das peças de tal forma, que as enriqueciam. Como foi apontado na apresentação de Sessanta racconti: “Depois de ter dado voz humana aos ventos, às coisas da natureza, agora Dino Buzzati tenta incutir vida também nos objetos aparentemente inanimados. O modo hiper-real de descrever os cachimbos torna-se então signo da visionaridade de Buzzati, de seu modo de converter a arte, em cada sua manifestação, num juízo sobre os homens e sobre o mundo”.
Em 1966, nas páginas do Corriere d’Informazione, o escritor dava início a I misteri di Milano – Vecchie cronache raccontate da Dino Buzzati, uma série de histórias em quadrinhos, interrompida depois da publicação dos três capítulos iniciais da primeira trama.[4] Apesar de frustrada, a tentativa abriu caminho para Poema a fumetti (1969), romance em que desenhou mais do que escreveu a saga de Orfeu e Eurídice, ambientada numa “grande e neurastênica cidade” (conforme a designou), a Milão moderna, com os recantos frequentados pelo autor no dia a dia. Como observou Viganò (na supracitada introdução), incorporando expressões do próprio escritor na obra em tela: “Cada página, tanto nas palavras quanto nos desenhos, contém todos os ingredientes que Dino Buzzati disseminou nos romances e contos escritos até então, em seus desenhos, nas crônicas jornalísticas. Lá estão as ‘lembranças de menino, as noites, os fantasmas, os pensamentos estranhos, o funil do tempo, os primeiros pressentimentos do que o aguarda no fim do caminho mal começado, por enquanto iluminado pelo sol’; lá estão as ‘divinas angústias mortais’, ‘o medo, o temido baque, as palpitações […], o promissor roçar do vento ao longo do velho cemitério’; lá estão os ‘barulhos estranhos’, vindos dos ‘antigos cômodos desertos’, e as grandes sombras dos ‘magos do outono’. Lá estão as ânsias metafísicas, os medos, as fantasias, a solidão, a morte”.
“Poema a fumetti é um hino à vida por meio do retrato da morte”, resumiu Viganò, na mesma introdução, e, de fato, deveria ter-se chamado La cara morte (A querida morte) – para lembrar que é ela que dá sentido à existência do ser humano –, mas o editor achou o título demasiado lúgubre. Classificá-lo é uma tarefa difícil, pois não se trata nem de uma história em quadrinhos (apesar dos raros balõezinhos) nem de um romance stricto sensu, mas de uma obra em que texto e ilustração se amalgamam, se fundem, se integram.[5] Como salientou o próprio autor, em afirmações reportadas por Viganò – “Pintar e escrever, no fundo, são para mim a mesma coisa. Ao pintar ou ao escrever, eu persigo o mesmo objetivo, que é o de contar histórias.” – e por Ruggero Adamovit: “É sempre literatura. Conta-se algo com a caneta e conta-se algo com os pincéis. É igual. Eu, nas telas, faço também crônica”.
Essa simbiose entre palavra e imagem, que irá caracterizar boa parte da produção futura do escritor, já havia se afirmado na infância e na adolescência, em seu diário, nas cartas que trocava com um amigo e com a primeira namorada e num desenho executado em consonância com o caráter gótico e fantástico do poema que o inspirou, O palácio assombrado (1839), de Edgar Allan Poe, cujo texto ele copiou à mão na mesma folha, inserindo-o na ilustração (1924). Dino Buzzati começou a interessar-se por Poe e Ernst Theodor Amadeus Hoffmann por volta dos treze-catorze anos, antes de embrenhar-se na leitura de Fiódor Dostoievski, enquanto só em 1934 descobrirá Franz Kafka, autor com o qual sua literatura tem sido constantemente comparada.
Se Albert Camus, em 1955, por ocasião da montagem parisiense de Un cas intéressant (Un caso clinico, 1953), que ele havia adaptado para o francês, relativizava a presença de Kafka ou Dostoievski na produção buzzatiana[6], o poeta Eugenio Montale foi mais explícito ao referir-se à obra-prima do escritor (em passagem reportada na introdução de Un amore): “Quem lembrou o nome de Kafka em relação a Il deserto dei tartari merece ser perdoado se não conhecia o romance anterior, Barnabo delle montagne, que desenvolve mais ou menos o mesmo tema (a grandeza e a dignidade da vida na solidão), e que apresenta o primeiro personagem verdadeiramente original de Dino Buzzati: uma gralha. A partir de então, deveria ter sido claro que os animais (e os homens) de Dino Buzzati pertencem ao mundo interior de um homem para o qual existe uma verdade, embora recôndita, e existe uma vida, embora traída pelo homem, que merece ser vivida”.
Em março de 1965, durante uma viagem a Praga, Dino Buzzati visitou a residência do autor de O processo, para “exorcizar” a suposta presença deste em sua obra, e lhe dedicou o artigo Le case di Kafka, publicado no Corriere della Sera, no qual declarou: “Desde que comecei a escrever, Kafka foi minha cruz. Não teve conto, romance, comédia de minha autoria em que alguém não achasse semelhanças, derivações, imitações ou até mesmo plágios descarados à custa do escritor boêmio. Alguns críticos denunciavam culposas analogias mesmo quando eu enviava um telegrama ou preenchia o formulário da declaração de imposto de renda” (trecho extraído da apresentação a Sessanta racconti).
Invocar Kafka, Dostoievski, Hoffmann, Poe, Rackham ou histórias em quadrinhos significa adentrar no vasto cipoal de referências presentes na produção buzzatiana, que, com suas citações (explícitas ou reelaboradas) à própria obra ou de outros autores, põe à prova o repertório de cada leitor-espectador. Ícones da cultura de massa e clássicos da literatura convivem em seu universo. Se, em Dino Buzzati, o confronto entre o bem e o mal pode deitar raízes também na leitura das aventuras de Diabolik[7], o anti-herói criado pelas irmãs Angela e Luciana Giussani, em 1962 – “o nosso oposto, o Mister Hyde escondido em cada um de nós, aquele lado escuro que ele sempre contou, buscou, arrancou das sombras, mostrou (na pintura, no teatro, na poesia), sem cair jamais no moralismo fácil” (segundo Viganò) –, o fantástico, que permeia toda a sua obra, com as mais diversas gradações e nuances, surge associado à vida do dia a dia, à crônica, como em A divina comédia: “Porque Dante, no Inferno, não tinha encontrado apenas monstros inauditos ou incríveis condições de morte, mas amigos e vizinhos de casa, personagens de seu tempo e conhecidos políticos, religiosos e civis de sua contemporaneidade histórica”, como salientou Claudio Toscani, reportando uma entrevista do escritor. A combinação de real e imaginário é uma constante em Dino Buzzati, que declarou ainda: “Eu, ao contar uma coisa de caráter fantástico, devo tentar torná-la possível e evidente ao máximo. A coisa fantástica deve aproximar-se o mais que puder da crônica”.
A opção por uma língua clara, simples, sem termos rebuscados, quase perto da fala, às vezes levou a crítica a relacionar a escrita de Dino Buzzati com a linguagem jornalística, fato que, conforme reportou Toscani, não incomodava o autor, por considerar que o jornalismo era apenas uma das facetas de seu ofício: “Certas experiências de crônica, aliás, acredito que sejam extremamente vantajosas para efeitos artísticos”. Como sublinhou Francesca Lazzarato, a língua empregada pelo escritor não era “pobre, estática e uniforme; é possível vê-lo com clareza na Famosa invasão, onde Dino Buzzati se mostra capaz, mesmo sem abdicar do critério de uma simplicidade rigorosa, de indubitáveis coloridos líricos”.
Na verdade, o autor conseguia atribuir às palavras uma aura de ambiguidade, de mistério, de ilogismo, de algo de indecifrável e incompreensível para o intelecto à primeira vista, como se cada camada de significado ocultasse outra, e mais outra, e mais outra, a fim de despertar no leitor sentimentos fortes, desconhecidos e perturbadores. Para Toscani: “Basta um adjetivo intenso e oportuno, basta um gosto apropriado pelo ritmo para transformar uma frase de viés jornalístico, rápida e espontânea, numa expressão capaz de evocar imagens, impressões, pressentimentos e indícios. […] Dino Buzzati escreve medo, se se trata de medo, mas sabe combinar ou aproximar disso termos que tornem precisa, por exemplo, sua sensação de angústia ou de pesadelo, de obsessão ou de vertigem, de magia ou de fábula”.
Em que pese essa escrita aparentemente em tom menor, o domínio das palavras lhe permitia uma profundidade investigativa – seja nos textos de maior fôlego, seja naqueles sintetizados ao extremo –, mas sem cair ou arrastar o leitor para abismos insondáveis, preferindo soltar as amarras da razão pelo viés da imaginação e da fantasia, sem nunca perder o contato com a realidade.
Em sua carreira de escritor, Dino Buzzati não desdenhou textos breves, alternando a publicação de romances com a de artigos, crônicas, poesias, libretos, peças teatrais e contos. Em relação ao romance, o conto não era para ele uma obra menos significativa, era apenas um texto mais sintético, no qual, rápida mas incisivamente, delinear situações, personagens, atmosferas que arrancassem o leitor da cotidianidade para defrontá-lo tanto com a “existência do extraordinário” quanto com a “extraordinariedade da existência” (como disse Toscani), para mostrar-lhe que, do lado de lá da “aparente normalidade das coisas” (conforme reportado na apresentação de Sessanta racconti), o mistério e o surreal estavam à espreita.[8]
E é isso que caracterizou também seu último livro verbo-visual, I miracoli di Val Morel, composto de trinta e nove textos curtos e curtíssimos (de quatro a dezesseis linhas, com exceção de um de uma linha e outro de vinte e sete, em verso e prosa) e da gênese da obra, na realidade, o mais longo dos contos fantásticos (seis páginas) que o povoam, o qual serve de moldura e amarração aos demais. Nele, Buzzati relata ter descoberto, em 1938, na biblioteca paterna, um caderno sobre os milagres realizados até 1909 por Santa Rita em sua região natal e a presença de um oratório, que ele desconhecia. Consegue localizá-lo e lá encontra um homem idoso, sintomaticamente chamado Toni Della Santa, autor dos relatos do caderno e conhecedor de vários outros milagres, o qual, como seus ancestrais desde tempos imemoráveis, era o guardião do pequeno santuário e de seus objetos e tábuas votivas, que ele pintava a pedido dos peregrinos. Ao retornar à região em 1946, Dino Buzzati, não encontrando mais o oratório nem a casinha de seu guardião, a partir do caderno e dos outros relatos dos quais lembrava, resolveu pintar os quadros sobre milagres inéditos de Santa Rita.
Os milagres realizados pela santa entre 1500 e 1936, na verdade, não eram desconhecidos, mas inventados pelo escritor, e embora ele se valha de uma expressão artística extremamente popular, o ex-voto, o resultado final é bem diferente e muito instigante. Ex-voto é a forma abreviada da locução latina ex voto suscepto, ou seja, “o voto realizado”, fórmula colocada em objetos ofertados a Deus, a Nossa Senhora ou a santos, como agradecimento, conforme a promessa feita, por uma graça alcançada. Representa a renovação de um pacto de fé. Em sua versão pictórica, o ex-voto retrata o fato que motivou o pedido – quase sempre uma enfermidade, um incidente, uma calamidade natural –, a prece e a intervenção divina (presente num recorte geralmente suspenso), e pode vir acompanhado de uma cartela que resume o acontecido.
O que está presente nos ex-votos de Dino Buzzati? As calamidades naturais e os incidentes, que são fantásticos quando não a projeção de uma perturbação interior: há uma baleia voadora que provocava enchentes (“2. La balena volante”, 1653); uma torre cortada ao meio por um raio (“14. La torre dei dottori”, 1543); uma erupção vulcânica de gatos (“17. I gatti vulcanici”, 1737); formigas que penetram cérebro adentro, enlouquecendo as pessoas (“19. Le formiche mentali”, 1871); zangões que se atiram sobre uma mocinha (“31. I vespilloni”, século XIX); uma nuvem de serpentes, que dizima plantações e gado (“37. La nube di bisce”, 1881); ou um navio atacado por um monstro (“1. Il colombre”, 1867); uma invasão de discos voadores (“3. I dischi volanti”, 1903); um gato-papão que ataca uma mulher (“4. Il gatto mammone”, 1926); uma cobra-grande que ameaça uma canhoneira (12. Il serpenton dei mari, 1915); uma senhorita que precipita de sua casa em chamas (“21. Caduta dalla casa Usher”, 1832); marcianos que invadiam uma cidade (“39. I marziani”, 1527). Apenas a tábua que representa a mulher do guarda-linha que evita um incidente de trem (“24. La casellante”, 1914), se reporta a ex-votos mais canônicos.
Quanto às enfermidades, elas são de origem psicológica, pois dizem respeito às angústias do ser humano e à manifestação de desejos ocultos, de natureza sexual, principalmente femininos: um conde perdido no labirinto de sua mansão (“8. Il labirinto”, 1933); um homem que foge, perseguido por uma figura indecifrável, que remete ao bicho-papão (“9. Uomo in fuga, 1522); um velho marquês processado pelos rinocerontes que matou em suas caçadas (“10. I rinoceronti”, 1901); o velho da montanha que ameaça uma aldeia alpina (“13. Il vecchio della montagna”, 1901); o desespero que toma conta de um grupo de amigos numa noite de festa (“15. Serata asolana”, 1936); um homem preto que, com sua sombra ameaçadora, provoca a morte de quem se depara com ele (“25. L’uomo nero”, 1836); um urso que persegue um homem a vida inteira (“32. L’orso inseguitore”, 1705); um dormitório público em que a santa debela o desespero e os pesadelos noturnos (“34. Il pio riposario”, 1860); um padre tentado por um diabólico porco-espinho, que lembra uma vagina dentada (“5. Il diavolo porcospino”, 1500); a tentativa de rapto de uma garota (“6. Una ragazza rapita”, s.d.); a histeria coletiva num colégio interno feminino (“7. Fattacci al collegio”, 1890); um bando de diabos que tenta um bispo (“11. Attacco al vescovo”, 1511); um homem que perde a cabeça pelo sorriso sedutor de uma moça (“16. Il sorriso fatale”, 1912); gnomos que atacam uma jovem que regressa para casa depois de uma noite de amor (“18. I ronfioni”, 1892); um pintarroxo que se torna gigantesco para raptar uma noiva pela qual está apaixonado (“20. Il pettirosso gigante”, 1867); uma enorme formiga que tenta seduzir uma garota (“22. Il formicone”, 1872); um guia alpino escravizado pelo amor de uma mulher (“23. Schiavo d’amore”, início do século XX); uma moça violentada por um robô (“26. Il robot”, anos 1920 ou 1930); Chapeuzinho vermelho prestes a ser atacada pelo lobo (“27. Cappuccetto rosso”, s.d.); a santa que extrai diabinhos do corpo de uma mulher possuída (“28. I diavoli incarnati”, 1901); uma jovem raptada por um diabo montado num bode (“29. Il caprone satanico”, 1899); um demônio que tenta uma garota (“30. Il tentatore”, s.d.); uma condessa e sua filha que encontram um bando de lobos enquanto viajam numa carruagem (“33. I lupi”, 1827); uma moça escravizada por piratas mouros, que é libertada por um mercador siciliano (“35. Schiava dei mori”, 1892); uma mulher vítima de um vampiro (“36. Il vampiro”, 1770); a santa que cura um alcoólatra (“38. La bottiglia”, 1935) – com um adensamento do erotismo na parte final do livro.
A efígie da intercessora foi pintada em quase todos os quadros, na maioria das vezes de forma estática conforme a tradição dos ex-votos, acompanhada pela sigla P.G.R. (per grazia ricevuta, isto é, pela graça alcançada) e pela cartela que resume o acontecimento, embora estejam ausentes a representação da prece e a da invocação. Dessa forma, enquanto cada ex-voto constitui uma unidade narrativa em si, os contos que acompanham as pinturas acabam funcionando mais como um paratexto, pois precisam delas para completarem seu sentido e nem sempre fazem referência à intervenção de Santa Rita: são casos mais ligados a lendas e tradições populares, principalmente da região de Dino Buzzati, quando não divertissements intertextuais ou relatos eivados de erotismo (implícito ou explícito), quase todos tratado com fina ironia, que se opõem à representação domesticada de um acontecimento.
Em muitas tábuas, Santa Rita aparece agindo, como quando, suspensa nas alturas, com seu hábito protege um sítio da enchente provocada por uma baleia; agarra a lua no céu, evitando que os gnomos ataquem uma moça; manda as formigas saírem do cérebro de um homem; extrai diabinhos do corpo de uma senhora; afasta um homem de uma garrafa gigantesca de uísque; ou voa para interceptar os discos voadores que ameaçam uma jovem, para proteger um padre de um porco-espinho, para acudir um conde num labirinto, para afugentar o que assusta um homem que foge, para fustigar os demônios que atormentam um bispo, para enfrentar a cobra-grande, para bater no velho da montanha com uma vassoura, para segurar a torre que se partiu, para conter os felinos vulcânicos, para evitar a queda da senhorita Usher, para prender pelo rabo o lobo-mau, para convencer um urso a não perseguir um homem, para afastar a angústia noturna num dormitório, para barrar uma nuvem de serpentes, para salvar uma cidade da invasão de marcianos.
Dessa forma, Santa Rita mais do que ser a intermediária entre o homem e Deus é a que efetivamente realiza os milagres, dotada frequentemente de superpoderes, como se fosse uma heroína de história em quadrinhos. A dessacralização da santa se torna evidente no quadro destinado ao oratório, em que ela aparece de unhas pintadas (apesar da representação de quatro milagres e das rosas, elemento que remete à sua iconografia tradicional), e na erotização de sua imagem em duas tábuas e respectivos contos em que ela exorciza uma mulher (com a insinuação da excitação que deriva da prática do esconjuro) e quando dissuade um homem de beber (enquanto ele assalta uma enorme garrafa que se funde com o corpo da freira).
A referência às histórias em quadrinhos traz à tona, mais uma vez, a questão de citações e autocitações verbais ou visuais na obra buzzatiana, presente também em I miracoli di Val Morel. Como já havia acontecido anteriormente, neste livro também há a recuperação, integral ou parcial (a maioria das vezes), de obras do próprio Buzzati; estas, por sua vez, remetem a um repertório vastíssimo, cuja apreciação dependerá dos conhecimentos de cada leitor-espectador.
No campo visual, o diálogo do escritor com outros autores e expressões artísticas vai de Hieronymus Bosch[9] ao Surrealismo (André Breton, Salvador Dalí, Paul Delvaux, René Magritte), de Giuseppe Arcimboldo à Metafísica de Giorgio De Chirico e à Nova Figuração de Francis Bacon, “que ele admirava sem reservas” (segundo Carnazzi, numa introdução); de Francisco Goya à Pop Art, sobretudo Roy Lichstenstein e Claes Oldenburg; de Caspar David Friedrich a Edvard Munch; de Arthur Rackham a Achille Beltrame (ilustrador de La Domenica del Corriere), sem deixar de lado as histórias em quadrinhos, o universo publicitário[10], o de imagens bondage dos anos 1950 e de figuras eróticas da década seguinte.
Apontar esse diálogo em I miracoli di Val Morel não é tarefa fácil, pelo pouco material iconográfico à disposição, mas, assim mesmo, é possível arriscar algumas hipóteses, a partir do que pôde ser averiguado. Se, em algumas composições, as “evidências formais” saltam aos olhos, como apontou Alessandro Del Puppo, em outras, “o trabalho de recuperação e reelaboração das fontes é mais complexo e estratificado, e implica […] certa dose de malícia: a aceitação do desafio que o autor lança a seu público”.
A representação do colombre, animal marinho inventado por Dino Buzzati – a qual já havia integrado Miscellanea (1964) e ressurgido em Il colombre (1966), com a duplicação dos olhos do personagem, que caracterizará outras pinturas buzzatianas – evidencia também o contato com a obra de Katsushika Hokusai, em especial a estampa A grande onda (1830 ou 1831). A baleia voadora deriva diretamente de La balena volante (1957), enquanto são recuperados, com outras características, personagens como o gato-papão e a cobra-grande, presentes em La famosa invasione degli orsi in Sicilia, ou como o bicho-papão,[11] já retratado em “Il babau” (1967) e em Poema a fumetti. Do livro infantil derivam ainda o urso, que de bom se transformou em perseguidor, além da paisagem serrana em que vivem os gnomos assediadores e do agenciamento espacial da cidadezinha invadida pelos marcianos.
Ao bestiário desta obra de 1945 parecem remeter-se também o porco-espinho que tenta o padre, que pode ser confrontado com a figura do javali e com “Maiali volanti (1957) e os seres alados – sejam eles demônios que instigam o bispo a pecar, zangões que infestam uma casa, aves que acompanham discos voadores ou um bode que carrega um ser satânico e sua presa – que guardam semelhança com os pássaros que sobrevoam a cidadela endemoninhada e têm um ascendente ilustre nos animais voláteis que circundam um homem repousando em O sono da razão produz monstros (1797), de Goya. Outros seres constantes do bestiário buzzatiano, os lobos – que perseguem Chapeuzinho Vermelho ou a carruagem com as duas mulheres – têm afinidades com o retratado na obra de 1969 (assim como os cavalos), todos aparentados com o que bate à porta em “Toc, toc” (1957) ou os perseguidores de “I lupi nuotatori” (1958). As silhuetas pretas do lobo e das árvores no quadro citado parecem inspirar-se na ilustração Cinderela (1919), de Arthur Rackham, e, antes de surgirem em “Cappuccetto rosso”, já haviam retornado em Poema a fumetti, embora neste livro a composição dialogasse principalmente com Colina e campo lavrado perto de Dresden (1824), de Friedrich. Desta última obra de Dino Buzzati, parece derivar também “Il pio riposario”.
O homem negro, com sua sombra ameaçadora e funesta, extraído de Poema a fumetti, já havia surgido na história sobre os ursos, na qual também aparece a subdivisão de uma composição em imagens menores para dar conta de uma sequência narrativa de maior fôlego, expediente presente na reunião de amigos na mansão da região de Asolo e, anteriormente no livro de 1969 e em várias das histórias pintadas: “Il delitto di Via Calumi” (1962), “Il visitatore del mattino” (1963), “La vampira” (1965), “La casa dei misteri” (1965), “I misteri dei condomini” (1967), “Il pied-à-terre dell’on. Rongo-Rongo” (1969), por exemplo.
Em todas estas obras, assim como em “Il circo Kroll” (1965), “Uno strano furto” (1966), “L’urlo” (1967) e “Un utile indirizzo” (1968), a temática de mulheres subjugadas sexualmente se faz presente. O corpo contorcido, que ressurge em Poema a fumetti, é a reelaboração de um desenho bondage de Adolfo Ruiz, Kidnapped and enslaved (anos 1950). No caso de “Il visitatore del mattino”, o diálogo se estabelece de novo com a obra citada, com “Un invadente parlamentare” (1964) e com “Il formicone” e “Il robot”, em que os predadores sexuais se assemelham antes a artefatos mecânicos do que a animais; enquanto a “Il circo Kroll” e a “Un utile indirizzo”, bem como a algumas páginas do livro de 1969 se remete diretamente “Schiava dei mori”. O sadismo permeia todas essas obras.
A representação da mulher vítima do vampiro, transladada de Poema a fumetti – assim como a da jovem escravizada pelos mouros e a de “La vampira”, nas quais há uma insinuação de lesbianismo – guarda ainda semelhança com várias heroínas sexy das histórias em quadrinhos da década de 1960, pelas quais o escritor se interessou: Barbarella, criada por Jean-Claude Forest, Valentina, de Guido Crepax, Satanik, de Max Bunker (Luciano Secchi) e Magnus (Roberto Raviola), Selene, de Paul Savant (Marco Rostagno) e Victor Newman (Corrado Farina).
Adentrar o universo das histórias em quadrinho significa referir-se também à Pop Art, que tanto fascinou Dino Buzzati. No início de 1964, depois de uma visita aos Estados Unidos, o escritor se entusiasmou com essa manifestação artística, que sairá vitoriosa da Bienal de Veneza naquele mesmo ano. Uma nova viagem a Nova Iorque, em dezembro de 1965, o levou a conhecer os estúdios de vários de seus expoentes, entre os quais Andy Warhol. É escusado lembrar que o escritor era um adepto ferrenho da arte figurativa.[12]
O rosto da irmã da moça raptada, em primeiro plano, revela a admiração por Lichstenstein, já manifestada em “La vampira”, “Un utile indirizzo” e “Un amore” (1965), enquanto o casaco vazio do homem escravizado pelo amor de uma jovem é uma homenagem a Oldenburg, prestada anteriormente no último quadro citado, em “Laide” (1966) e “Ritratto di un vecchio nobile austriaco” (1967). Não são raras as mulheres buzzatianas surpreendidas em poses lascivas (derivadas do langor da Madonna de Munch em suas várias versões), como a da citada “Laide” e as que ocupam inúmeras páginas de Poema a fumetti (algumas das quais inspiradas em periódicos eróticos franceses dos anos 1960, ou que oferecem seus lábios tentadores, como os que predominam na ilustração de “Il sorriso fatale”.[13]
No campo da literatura, a menção aos romances Moby Dick (1851), de Herman Melville, e O fogo (1900), de Gabriele D’Annunzio, em “Il colombre” e “Il labirinto”, respectivamente; ao conto “A queda da casa Usher” (1839), de Poe, em “La caduta dalla casa Usher” [14]; à fábula de Chapeuzinho vermelho, em “Cappuccetto rosso”, e ao pensamento de Pierre Klossowski, em “Il formicone”[15], é explicitada pelo próprio autor, embora possa ser uma falsa pista. Dentre as obras literárias, poderiam ser arroladas ainda A invenção de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, no título do livro, O rinoceronte (1959), de Eugène Ionesco, em “I rinoceronti”, e Servidão humana (1915), em “Schiavo d’amore”, uma vez que essa foi a tradução do título do romance de William Somerset Maugham em italiano.
Em todo caso, o tema do homem que sucumbe diante dos encantos de uma mulher, presente também em “Il sorriso fatale”, já havia sido abordado por Dino Buzzati em Un amore (1963), romance que, para parte da crítica, se filiava a Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, ao narrar a história de um arquiteto maduro e bem sucedido, o qual se apaixona por Laide, uma jovem do povo que se prostitui numa casa de encontros.
A alusão ao teatro do absurdo se daria não pela trama em si, mas pelo mesmo clima de estranhamento, criado por uma situação inusitada (como na peça), fato reforçado pelo emprego de caracteres hieroglíficos nos balõezinhos que registram os pensamentos dos rinocerontes, nos quais Dino Buzzati recuperava uma das paixões da adolescência: a descoberta da egiptologia. Não seria a primeira vez em que o nome de Dino Buzzati estaria associado ao de Ionesco e de Samuel Beckett, se formos lembrar que Martin Esslin, criador do conceito de teatro do absurdo, incluiu também Un caso clinico entre as peças representativas da “dramaturgia da crise” (informação fornecida por Carnazzi na “Cronologia”).[16]
Embora os mapas geográficos italianos registrem Valmorel (um povoado nas imediações de Belluno) e não Val Morel, que na “ficção literária, abarca, na realidade, os territórios do Vale de Belluno” (segundo Viganò em seu posfácio), poderia ser aventada a hipótese de que, no topônimo que integra o título do livro, Buzzati quis prestar uma homenagem ao romance argentino, lançado na Itália em 1966, em virtude da mesma sensação de deslocamento em relação à percepção comum de realidade que os dois livros suscitam.
Dentre as obras literárias citadas, a fábula talvez seja a que oferece uma chave de leitura para I miracoli di Val Morel. A aventura de Chapeuzinho vermelho, recolhida por Charles Perrault no século XVII e reelaborada pelos irmãos Grimm em 1812, antes de ser metaforizada, foi uma lenda comum a várias culturas europeias nas quais os lobos eram uma presença real. E é isso que Buzzati parece ter feito ao propor sua “versão” de histórias ligadas basicamente ao folclore de sua região: forjar uma série de pequenas fábulas, introduzidas por uma maior, a partir de relatos que, como o de Chapeuzinho vermelho, fazem parte de uma tradição da cultura popular[17]: a transmissão oral de causos e acontecimentos extraordinários ou não, que se perde na bruma dos tempos.
Nesse sentido, I miracoli di Val Morel acaba sendo uma espécie de súmula de toda a obra do escritor, uma vez que ele volta idealmente à terra de origem, às montanhas da infância, para despedir-se da vida, depois de ter percorrido as outras etapas de sua existência (a planície da juventude e a cidade da maturidade), como os protagonistas de La famosa invasione degli orsi in Sicilia.
Apesar da temática aparentemente religiosa, que se revela antes popular e fantasiosa, o que o autor buscou não foi tanto uma aproximação de Deus diante da iminência do desfecho fatal, quanto um modo de exorcizar os próprios temores, superar a angústia da espera metafísica e ir serenamente ao encontro daquela que aguarda inelutavelmente todo homem no fim de sua jornada: a que ele denominou “la cara morte”.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O Neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).
Versão revista e ampliada da comunicação apresentada no VI Encontro Nacional Insólito em Questão na Narrativa Ficcional, Rio de Janeiro, UERJ, 30 de março-1 de abril de 2015.
Referências
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AQUILA, Giulia Dell’. “Cronaca di una visione: Dino Buzzati e Hieronymus Bosch”. Italianistica: rivista di letteratura italiana, Pisa-Roma, ano 38, n. 3, set.-dez. 2009.
BUZZATI, Dino. A famosa invasão dos ursos na Sicília. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 2001.
BUZZATI, Dino. I miracoli di Val Morel. Milano: Mondadori, 2012.
BUZZATI, Dino. Poema a fumetti. Milano: Mondadori, 2010.
CARNAZZI, Giulio. “Cronologia”. In: BUZZATI, Dino. Poema a fumetti, cit.
CARNAZZI, Giulio. “Introduzione”. In: BUZZATI, Dino. Opere scelte. Milano: Mondadori, 2002.
COGLITORE, Roberta. “Il dispositivo dell’ex voto ne I miracoli di Dino Buzzati”. Revista Sans Soleil – Estudios de la imagen, v. 5, n. 2, 2013.
“Dino Buzzati”. In: BUZZATI, Dino. Un amore. Milano: Mondadori, 1985.
“Dino Buzzati”. In: BUZZATI, Dino. La boutique del mistero. Milano: Mondadori, 2015.
“Dino Buzzati”. In: BUZZATI, Dino. Sessanta racconti. Milano: Mondadori, 2015.
FABRIS, Mariarosaria. “A fabulosa incursão de Dino Buzzati na literatura infantil”. Pensares em revista, São Gonçalo, n. 9, 2016.
FARIA, Almeida. A paixão. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
LAZZARATO, Francesca. “Um livro para todos”. In: BUZZATI, Dino. A famosa invasão dos ursos na Sicília, cit.
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PUPPO, Alessandro Del. “Fonti visive e intezioni narrative nel Buzzati illustratore” (2013). Disponível em <https://www.academia.edu.8287751t/Fonti_visive_e_intenzioni_narrative_nel_
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VIGANÒ, Lorenzo. “Introduzione – La discesa nell’Aldilà: l’ultimo viaggio di Dino Buzzati”. In: BUZZATI, Dino. Poema a fumetti, cit.
VIGANÒ, Lorenzo. “Postfazione – Dino Buzzati e il miracolo della vita”. In: BUZZATI, Dino. I miracoli di Val Morel, cit.
Notas
[1] Buzzati foi também cenógrafo e figurinista para o balé Jeu de cartes (1936-1937), de Igor Stravinsky, apresentado no Teatro alla Scala de Milão, em fins dos anos 1950; e cenógrafo de duas óperas líricas num ato, com libreto de sua autoria e música de Luciano Chailly: Il mantello (Florença, Teatro della Pergola, 1960) e Era proibito (Milão, Piccola Scala, 1962-1963).
[2] Em relação à exposição, foram acrescentados Il colombre, Il gatto mammome, Il pettirosso gigante, Caduta dalla casa Usher e I marziani. Para Roberta Coglitore, às tábuas votivas “deveria ser acrescentada também a pintada no verão de 1971 para o doutor Giovanni Angelini, que cuidou do autor em seus últimos meses”.
[3] A primeira versão, intitulada La famosa invasione degli orsi, foi parcialmente divulgada em capítulos no periódico infantil Corriere dei piccoli, entre 7 de janeiro e 29 de abril de 1945, quando a publicação foi interrompida em virtude do fim da guerra. Para ser editada em livro, a fábula foi reelaborada pelo autor. Para mais informações sobre esta obra, ver texto de minha autoria publicado em Pensares em revista, disponível na internet.
[4] A história completa de Alberto Olivo – o qual se deslocou de Milão para Gênova, a fim de atirar ao mar o corpo esquartejado da esposa, transportado numa mala (1903) – foi publicada integralmente no volume Delitti, que integra a obra La “nera” di Dino Buzzati (2002).
[5] O livro de Buzzati ajudou na afirmação da graphic novel, gênero que se popularizou em fins dos anos 1970.
[6] Carnazzi anotou na “Cronologia”, os dizeres de Camus: “Mesmo quando os italianos passam pela porta estreita que lhes mostram Kafka ou Dostoievski, passam com todo o peso de seu corpo. E sua escuridão, todavia, resplandece. Encontrei essa simplicidade trágica e familiar na peça de Buzzati e, enquanto adaptador, procurei estar a seu serviço”. Para Francesca Lazzarato também, no autor vêneto “não cabem direito, afinal de contas, as roupas de um Kafka em ponto pequeno (uma aproximação insistente e justamente desagradável para o escritor, bem distante da negação sem saídas que se encontra na base da obra kafkiana)”.
[7] Em 1967, Buzzati havia pintado o personagem na tela Diabolik, sob o impacto da obra de Roy Lichstenstein (o artista que tinha reinventado as histórias em quadrinhos), apreciada, daquela feita, na Bienal de Veneza do ano anterior.
[8] Para atestar a importância dos textos breves do autor, bastaria lembrar que, ao referir-se aos escritos daquela espécie de diário que Buzzati foi atualizando desde sua primeira edição em 1950, In quel preciso momento, Eugenio Montale os definiu “confetes de poesia” (expressão citada por Viganò).
[9] Em 1966, Buzzati escreveu o conto fantástico “Il maestro del Giudizio Universale”, que serviu de apresentação ao volume dedicado a Bosch na coleção “Classici dell’arte” da editora Rizzoli de Milão. Segundo Giulia Dell’Aquila: “A obra do pintor do século XV – tão ligada a um amplíssimo leque de fontes eruditas e populares (livros de sonhos e visões, tratados alquímicos e astrológicos, até textos propriamente literários) – concilia-se bem com a escrita buzzatiana, ela também, desde sempre, sustentada por interesses e fontes bastante variados”.
[10] Como a casa do cantoneiro em “Il vecchio della montagna”, extraída da etiqueta do licor digestivo Braulio.
[11] “Gatto mammone” e “babau” correspondem, em português, a “bicho-papão”. No primeiro caso, preferiu-se optar por “gato-papão”, em virtude da presença do felino na história.
[12] Buzzati não escondia sua aversão pela arte abstrata, chegando a escrever até contos para debochar de seus seguidores, como “Battaglia notturna alla Biennale di Venezia” e “Il critico d’arte”, que integram Sessanta racconti (1958).
[13] As obras citadas neste parágrafo bem como no penúltimo e no antepenúltimo anteriores fazem parte do volume de 2013 de Le storie dipinte: “Il delitto di Via Calumi”, “Il visitatore del mattino”, “Un invadente parlamentare”, “La vampira”, “La casa dei misteri”, “Un amore”, “Il circo Kroll”, “Uno strano furto”, “Il babau”, “Ritratto di un vecchio nobile austriaco”, “Laide”, “I misteri dei condomini”, “L’urlo”, “Un utile indirizzo” e “Il pied-à-terre dell’on. Rongo”. Pelas datas, apenas “Toc, toc”, “Maiali volanti” e “I lupi nuotatori” devem ter integrado também a publicação de 1958.
[14] “Il colombre”, na verdade, deriva de outro conto com o mesmo título publicado em La boutique del mistero (1968). Buzzati descarta a comparação com a baleia imortalizada por Melville, pois seu monstro marinho não é mau. Quanto a “La caduta dalla casa Usher”, trata-se de uma brincadeira do narrador: no próprio texto, ele especifica que o que aconteceu à senhorita Usher, ao precipitar de sua casa em chamas, não tem nada a ver com o conto do escritor norte-americano. Com efeito, o que se liga à obra de Poe é “Il crollo della Baliverna” (1954), posteriormente publicado em Sessanta racconti. Nele é narrada a história de um prédio construído no século XVIII, moradia de sem tetos, que um transeunte desavisado faz ruir ao arrancar, sem querer, uma barra de ferro. A descrição da fachada posterior da Baliverna, com suas janelas que mais pareciam seteiras, recuperada por Buzzati na ilustração da casa em chamas, já havia sido aproveitada em “Ragazza che precipita” (1962), elaboração pictórica do conto homônimo, que integra La boutique del mistero, de onde o autor parece ter extraído a queda de Bernardina Usher (seguida pela santa), ao longo de um edifício que lembra um arranha-céu.
[15] Principalmente o ensaio O banho de Diana (1956).
[16] Em Le storie dipinte, “Le sedie” (1965) já fazia alusão à obra de Ionesco e, mais especificamente, à peça de 1952, que o próprio autor definiu “farsa trágica”: Les chaises (As cadeiras), representada pela primeira vez na Itália em julho de 1956, no Piccolo Teatro de Milão. As cadeiras buzzatianas alinhadas em cima de um tablado, a cujos pés jaz uma figura humana que já não pode falar, enquanto elas sussurram entre si velhas histórias, remete ao cenário da montagem teatral, em que o silêncio do orador surdo-mudo é cortado, no fim, pelo murmúrio crescente e decrescente de uma multidão invisível.
[17] Os ex-votos também são uma manifestação da cultura popular. O escritor português Almeida Faria, em seu romance A paixão (1965), os denominou “quadros feitos de povo”: “a ermida é um silêncio do sol, tão próximo do céu como dos homens […]; todos os dias ali pessoas pagam promessas a um Deus que as não ouve e que perseguem; na sacristia há tranças, mãos de cera, pés, retratos de família, efígies de soldados e quadros feitos de povo, com a cama, o doente (uma mulher às vezes, sofrendo as dores de parto, a barriga subindo debaixo dos lençóis, grande matriz de plebe, orbe fecunda e pródiga da terra) e enfermeiras de coca e a bela Virgem envolta numa nuvem, descendo num voo fácil pelos muros do quarto, ante a família aflita e cheia de surpresa, e em verso legendas com erros e verdade: à santanossasenhora por me ter livrado de finar estando desinfeliz penando as dores do parto”.
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