Política de ciência, tecnologia e inovação

Imagem: Steve Johnson
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Por RENATO DAGNINO*

A relação universidade-empresa e a orientação “empreendedorista”

Eu tenho dito e escrito que a nossa Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (PCTI), só irá mudar quando o ator que hegemonicamente a elabora (formula, implementa e avalia) estiver convencido de que isso é necessário.

Minha percepção, ao contrário do que pensam muitas companheiras e companheiros de esquerda que se dedicam ao tema, é que pouca consequência terão entre nós enfoques “de baixo para cima” como os que há muito vêm sendo implementados nos países centrais visando a democratizar a política cognitiva (conceito que por várias razões eu uso para enfeixar a política de Educação e a de CTI), como os associadas à alfabetização em ciência, à divulgação científica ou, mais recentemente, à participação pública na ciência, à ciência aberta, etc.

Fundamenta essa percepção a probabilidade de que, em nossa realidade periférica, os magros resultados que têm sido lá alcançados serão ainda menores. E que, por isso, seria mais profícuo o trabalho desses colegas caso estivesse orientado a seduzir o ator que hegemoniza a política cognitiva – a elite científica (e “seus” tecnocratas) –, para que ele efetue as mudanças capazes de alavancar o projeto político que possuem.

E, também, por que essa ação direta, e resignada, dado que essa hegemonia tenderá a se manter, me parece a mais eficaz. Ela está apoiada em dois pilares que se tornam mãos evidentes quando se foca a PCTI. O condicionado pela nossa condição periférica, que faz com que, ao contrário do que ocorre nos países centrais, onde outros atores (empresários, militares, verdes, etc.) participam na elaboração dessa política defendendo a satisfação de suas demandas tecnocientíficas, nossa teia social de atores é incompleta e rarefeita. Baseado no que tenho denominado “mito transideológico da neutralidade da tecnociência capitalista” (dado que é aceito tanto pelos liberais como pelos marxistas ortodoxos). O qual, embora condicione em todo o mundo essa política fazendo com que ela se afigure como uma policy sem politics, é ainda mais determinante de sua orientação na periferia do capitalismo.

O resultado da empreitada de elaborar o texto “Como tem sido e poderá ser nossa Política de Ciência, Tecnologia e Inovação: pitacos para a 5ª Conferência Nacional” cuja primeira parte é apresentado neste artigo, expressa uma expectativa que decorre dessas percepções.

E, também de uma impressão. Pode estar em curso um significativo giro analítico-conceitual e, em consequência, metodológico-operacional (o que inclui o nível institucional), no ambiente em que transcorre a discussão “dura” e mais qualificada sobre o futuro da PCTI.

Espero que, ao acompanhar a narrativa da minha observação recente desse ambiente, quem a ler possa avaliar adequadamente os argumentos que embasam minha expectativa. E que, ao compartilhar a tomada de consciência que segundo o que estou observando estaria nele ocorrendo a respeito de coisas que vem sendo há muito repetidas em outros âmbitos sobre nossa “problemática”, possa avaliar positivamente a “solucionática”, ancorada no conceito de Tecnociência Solidária e na proposta de reindustrialização solidária, que neles vem sendo discutidos.

Introdução

O foco deste texto é o que entre nós tem sido denominado relação universidade-empresa; cuja incipiência, segundo o arraigado entender do ator que hegemoniza a PCTI, apareceu de modo recorrente nos inúmeros eventos preparatórios à 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Ele pode ser entendido como uma continuação de outros que tenho escrito. Em particular, de um, publicado em 24 de fevereiro, que contou com uma atilada epígrafe do editor: “Vou muito resumidamente explicar por que a quase totalidade de nossas empresas que inovam o fazem comprando máquinas e equipamentos”.

Nesse artigo, eu evidenciei por que me pareciam irrealistas algumas expectativas dos participantes desses eventos. Em particular, mostrei que era escassa a probabilidade de que as empresas “brasileiras”, atendendo à proposta da reindustrialização empresarial da Nova Indústria Brasil, viessem a emular os catch ups asiáticos e surfar a sexta onda de inovações para aproveitar o potencial tecnocientífico de nossas instituições de ensino e pesquisa. Cronicamente subutilizado pelas empresas, como sabem há muito o amplo espectro das trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento. E, como sabe (na acepção epistemológica de entender as razões que explicam um fato) uma comunidade muito menor, a dos analistas de esquerda da PCTI, que a subutilização se deve a um comportamento empresarial solidamente ancorado na racionalidade econômica privada vigente na periferia do capitalismo.

Depois desses eventos organizados pelo MCTI, assisti, por dever de ofício, outros em que os dois atores que comentei naquele artigo – o “cientista” e o “pesquisador empreendedor” – apresentaram seus tradicionais diagnósticos e formularam suas, também conhecidas, recomendações.

Na Conferência Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, patrocinado pela Fapesp em 08 de março, constatei mais uma vez a contumaz dificuldade dos participantes em explicar a realidade do nosso ambiente pesquisa-produção, que eu tenho há muito criticado e retomado no meu artigo de 24 de fevereiro.

E, em consequência, como permaneciam dominantes dois temas recorrentes. O primeiro, é da escassa propensão da empresa local a inovar e, em especial, fazer P&D. não vou tratá-lo aqui dado que o diagnóstico que, resumidamente, mas com um certo detalhe, apresentei no artigo citado, contribui para responder à pergunta dele decorrente sobre como fazer para aumentar essa propensão.

O segundo tema, que apareceu forte na Conferência Estadual é o da, também escassa, relação universidade-empresa (U-E). Ela igualmente gera a pergunta acerca de como aumentá-la. O modelo pelo qual a elite científica entende a área de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) e usa para elaborar sua política leva ao diagnóstico de que seu problema central é o que ela entende como a escassa relação universidade-empresa.[i]

Interpretado de um modo que entende essa relação como envolvendo o aproveitamento pela empresa do conhecimento produzido no ambiente da pesquisa para o da produção, ela tem, mais do que privilegiado, absolutizado, normativamente, o fluxo de conhecimento (desincorporado) gerado na universidade para o mundo empresarial. O que a tem levado a colocar no centro de suas preocupações a indução desse fluxo (entendido como oferta e demanda de conhecimento), principalmente, e inicialmente em termos históricos, pela via de sua oferta pela universidade. E, cada vez mais, pela indução de sua demanda por parte da empresa.

Em consequência, o enfrentamento disso que é visto como “o” problema de nosso ambiente de CTI – a baixa intensidade desse fluxo cognitivo – tem sido um dos elementos fundacionais, como mostro em seguida, da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (PCTI) latino-americana hegemonizada pela elite científica. Visando ao financiamento de atividades de pesquisa que gerem uma oferta mais adequada ao que se considera ser o interesse da empresa, a PCTI tem passado por sucessivas orientações normativas. Elas incluíram desde a simples expansão da função pesquisa na universidade pública até a criação de “incubadoras” de empresas ou de startups de professores e alunos das universidades (entendidas como capazes de exercer a esperada demanda tecnocientífica), passando pelos arranjos institucionais de mediação, os institutos públicos de pesquisa tecnológica.

Constatei na Conferência Estadual que um resultado desse insuficiente entendimento a respeito do nosso ambiente pesquisa-produção é o risco de que sugestões irrealistas, inócuas para as empresas e nocivas para a universidade, sejam encaminhadas sem questionamento à 5ª Conferência. E, como é o objetivo por ela declarado, transformadas em medidas de política pública.

Essas observações me levaram a escrever um texto que continuava o artigo publicado em 24 de fevereiro expondo elementos derivados de uma visão, amparada na extensa exploração realizada por vários pesquisadores sobre nossa PCTI, que leva a uma percepção radicalmente (etimologicamente falando) distinta da hegemônica. Dessa forma, esperava contribuir para conferir mais realismo a esse entendimento e possibilitar que a Conferência mobilize os atores afetados pela PCTI na direção do objetivo democrático e participativo que declaram seus organizadores.

Em particular, que ela acolhesse a crítica feita às conferências que deixaram de ser realizadas há 14 anos, de que, ao contrário do que ocorria em outras áreas de política pública, onde atores com distintos valores, interesses e demandas cognitivas participaram na definição dos rumos a serem seguidos, elas teriam se limitado a expandir o lugar de fala daquele que elaboram a PCTI. Ou seja, para que ela viesse a ser mais do que um espaço para que a elite científica e “seus” tecnocratas possam falar do que fazem, mostrar a seus pares que isto é relevante, convencer a opinião pública de que o Estado deve apoiá-los, etc.

Em particular, que ela desse atenção à proposta encaminhada ao MCTI de criação de um espaço institucional para consulta às trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento que integram nossas instituições de ensino e pesquisa (responsáveis pela operacionalização do nosso potencial tecnocientífico) visando à identificação das demandas cognitivas embutidas nas necessidades materiais coletivas insatisfeitas e à sua incorporação ao processo decisório da PCTI.

No início da segunda semana de março, quando esse texto, que apresento no presente artigo, estava pronto para ser enviado para a publicação, me inteirei que um evento especificamente orientado ao tema da relação Universidade-Empresa (U-E) teria lugar na Fapesp na manhã de 19 de março. Preparado pelas mesmas autoridades que haviam organizado a Conferência Estadual onze dias antes, essa Conferência Temática Preparatória à 5ª Conferência, intitulada Cooperação Universidade-Empresa, prometia novidades. Afinal, o que se havia concluído na Conferência Estadual, corroborando a percepção historicamente consolidada, era que essa relação, compreendida como o escasso fluxo (oferta e demanda) de conhecimento era o problema central da nossa CTI. Fiquei surpreso uma vez que enfocar o tema novamente me parecia desnecessário…

Referindo-se ao tema da relação U-E não mais como uma relação, mas como uma interação, e anunciando uma programação que aparentemente optara por não convidar para o evento os costumeiros protagonistas da de reuniões dessa natureza, ele parecia assinalar algo novo. Por isso, esperei para ver o que ia acontecer e decidi não publicar o que havia escrito.

O que assisti confirmou essa expectativa. O evento marcou o que me parece ser um “ponto de viragem” na interpretação oficial (aquela que aparece nos eventos organizados pela elite científica e sua tecnocracia) acerca do que até agora é considerado o problema central de nossa CTI. E, em consequência, ao terem algumas pessoas que nele participaram se aproximado da visão crítica sintetizada no meu artigo publicado 24 dias antes, pode ser interpretado, como eu o faço, como um divisor de águas na elaboração da PCTI.

O texto que já estava pronto, adicionado ao que resultou da minha observação do evento sobre Cooperação Universidade-Empresa, cumpria meu objetivo de, mediante contraste, explicitar o alvissareiro “ponto de viragem” que me pareceu oportuno assinalar para chamar a atenção dos responsáveis pela 5ª Conferência. Não obstante o fato de essas duas partes representarem um antes e um depois da trajetória da corrente central da análise da PCTI, o tamanho do texto final aconselhava sua publicação em separado.

A primeira, contêm o que eu havia escrito nos eventos que assisti antes daquele sobre Cooperação Universidade-Empresa, de 19 de março.

A segunda parte, a ser publicada em seguida, deriva do que apreendi deste evento. O contraste entre elas explicita o alvissareiro “ponto de viragem” que me parece oportuno assinalar.

Retomando a explicação da pergunta da Conferência estadual

No artigo citado acima, publicado menos de um mês antes do evento sobre Cooperação Universidade-Empresa (que abordo no artigo que será publicado em seguida), menciono que a pergunta “a que se deve a escassa propensão da empresa brasileira a inovar e, em especial, em realizar pesquisa?” é percebida por alguns participantes desses eventos como algo inexplicável. O que é grave, uma vez que estão ali para discutir o segundo dos quatro eixos da Conferência Nacional; o que supõe o “apoio à inovação nas empresas”.

Não obstante, apesar do que se esperaria, haja vista a maratônica vasta série de eventos preparatórios que tem sacudido os envolvidos com a PCTI, procurado mostrar à sociedade civil organizada a importância do conhecimento tecnocientífico espezinhado pelo negacionismo e, implicitamente, convencê-la da pertinência do conteúdo e da forma como ela vem sendo elaborada pela elite científica, nenhum deles se propôs a fazê-lo.

Alguns, inclusive, declararam não ter elementos para respondê-la. O que não chega a surpreender. Nenhum dos dois atores que caracterizei no artigo – o “pesquisador empreendedor” (que abraça o inovacionismo) e o “cientista” (que se filia ao linear-ofertismo) – parecem dispor de um marco analítico-conceitual apropriado para realizar o segundo momento do processo que o instrumental de Análise de Políticas considera indispensável para o êxito de uma política pública. Esse momento, o explicativo, que segue o descritivo e precede o normativo, focado na identificação das causas do problema que se quer reverter (a subutilização pelas empresas do nosso potencial tecnocientífico) demanda um conhecimento que aqueles atores parecem carecer.

Por essa razão, e procurando não repetir a síntese que ali apresentei dos resultados daquela pesquisa, vou me concentrar naquilo que a apressada passagem do momento descritivo para o normativo faz com que a elite científica e “seus” tecnocratas, recomendem uma falsa solução para a subutilização do nosso potencial tecnocientífico. Por não entenderem os determinantes estruturais do comportamento empresarial, tributários do mercado imitativo engendrado pela condição periférica, e por ingenuamente acreditarem que ele pode ser alterado pela ação do Estado, eles seguem demandando recurso público para o fomento à relação universidade-empresa.

Um pouco de história para explicar melhor

No Brasil, o que hoje denominamos PCTI foi individualizada como tal no âmbito das políticas públicas, no final dos anos sessenta. Ao lado de outros objetivos que elas delegaram à PCTI, ela herdou um que passou a ser o seu leitmotiv: fazer com que a pesquisa realizada nos nossos enclaves universitários, que por terem emulado as universidades que no exterior haviam internalizado esta função, fosse aproveitada pelas empresas. As quais, devido à nossa condição periférica, não era capaz de motorizar, como lá ocorria, aquele fluxo cognitivo.

Para adequadamente explicar nossa realidade, cabe apontar o que vinha ocorrendo nos países centrais. Lá, o fluxo de conhecimento gerado na universidade para o mundo empresarial, dado que ocorria de modo natural, não era considerada objeto de fomento específico a ser providenciado pelo Estado. A empresa, influenciando as agendas de ensino e pesquisa universitárias e contratando os egressos para realizar a P&D que viabilizava sua lucratividade, estava desencadeando um fluxo cognitivo típico de numa economia capitalista.

Ao mesmo tempo que permitia a expansão do ensino e da pesquisa universitária, ela possibilitava que a função pesquisa fosse cada vez mais integrada à produção de bens e serviços demandada pela competição comercial intercapitalista e pelo jogo geoestratégico se estavam tornando cada vez mais importantes.

O que existia, então, era uma política de ciência ou uma política de pesquisa cuja função era alocar recurso público para a formação dos profissionais que, depois de egressados e contratados pela empresa possibilitavam que a resultante tecnológica da ação do Estado se materializasse como um fluxo de conhecimento.

Contrariando esse movimento que historicamente se apresenta como corriqueiro, ocorreram programas orientados por missão, normalmente requeridos por motivações geopolíticas e estratégicas que, excepcionalmente, demandaram um apoio específico a de equipes universitárias e a criação de organismos para providenciar um insumo adicional de conhecimento tecnocientífico.

A mais notável dessas exceções foi o Projeto Manhattan de fabricação da bomba atômica. Ela foi decisiva para alterar o modo como o Estado passou a atuar no campo que hoje conhecemos como PCTI.

Codificada no Relatório “Ciência a fronteira sem fim”, essa experiência estadunidense fez com que em quase todo o mundo a PCTI adotasse o que chamamos de modelo linear-ofertista. Ele recomendava (e, mesmo, assegurava) que à medida que a universidade fosse capaz de ofertar conhecimento à sociedade desencadear-se-ia uma cadeia linear que resultaria no desenvolvimento tecnológico, econômico e no bem-estar de todos.

A relação universidade-empresa e a orientação “transferencista”

Para voltar a enfocar o caso brasileiro, cabe explicar como a elite científica latino-americana entendeu a necessidade de aumentar aquele fluxo cognitivo; ou seja, como o modelo linear-ofertista devia ser aqui operacionalizado. Embora raramente explicitada havia no seu âmbito uma compreensão de que a empresa nacional e, ainda que por razões distintas, a estrangeira, não eram capazes de desencadear um fluxo cognitivo àquele que ocorria nos países centrais.

Como é usual, antes que fosse formalizada uma interpretação das diferenças de nossa realidade em relação à daqueles países (no caso, aquela que explicava nossa condição periférica), este ator já entendia seu rebatimento no seu campo de atuação, a pesquisa tecnocientífica. Derivou daí uma leitura periférica do linear-ofertismo, o que chamo de orientação “transferencista” e considero um movimento avant la lettre típico (em relação ao que veio a ocorrer depois nos países centrais) da intelectualidade latino-americana. Essa orientação entende que cabe ao Estado, para aumentar aquele fluxo cognitivo, estimular a transferência de conhecimento tecnocientífico desincorporado resultante da pesquisa realizada na universidade para a empresa.

É como se, em função do que era visto por uns como uma debilidade passageira da empresa nascente de um capitalismo ainda em consolidação, e por outros como uma característica estrutural de nossa formação social, fosse percebido que era necessário criar arranjos institucionais ligados à universidade, mas a ela externos, como os institutos de pesquisa que existiram em praticamente todos os países latino-americanos e em quase todos os estados brasileiros.

Foi tão generalizada essa percepção e tão vigorosa a ação do Estado que aquele fluxo cognitivo, que nos países centrais ocorria segundo aquele processo que caricaturei acima como natural e inerentemente capitalista, fosse aqui entendido, paradoxal, mas compreensivelmente, como limitado a uma transferência. Dada à escassa propensão da empresa local a exercer uma demanda de conhecimento, cabia ao Estado providenciar o ambiente de intermediação que levasse ao aproveitamento da capacidade de oferta que possuía a universidade. A orientação “transferencista” que conferia sentido ao interesse da elite científica e organizava o que passou a ser conhecido como relação U-E, foi até o início dos anos noventa, o elemento dominante da nossa PCTI.

O pensamento latino-americano em ciência, tecnologia e sociedade

Não obstante, na Argentina, que no final dos anos sessenta já contava com um considerável potencial tecnocientífico e onde o modelo linear-ofertista e aqueles arranjos estavam em pleno funcionamento, perdurava a escassa propensão da empresa à inovação e, mais ainda à P&D. Isso levou cientistas dedicados às ciências duras a preocuparem-se, como ocorreu logo depois em praticamente em toda a América Latina, a investigar a causa desse comportamento.

O resultado de seu trabalho fundacional e da investigação que ele originou pode ser assim sintetizado. Nossa condição periférica condicionava, por um lado, uma dependência cultural que engendrava um padrão de consumo imitativo que demandava bens e serviços já engenheirados nos países centrais. E, por outro, estabelecia uma situação em que, em consequência de vantagens competitivas naturais e das características do processo de conquista e ocupação do território, vigorava um relativamente baixo custo dos fatores de produção (matérias-primas, força de trabalho). Esses dois fatores possibilitavam à classe proprietária e suas empresas a obtenção de elevados lucros sem que fosse necessária a extração de mais-valia relativa. A opção economicamente racional pela extração de mais-valia absoluta condicionava uma escassa propensão à inovação e, menos ainda, à pesquisa empresarial.

Assim descrito e explicado pela corrente crítica da PCT implementada, aquilo que ficou conhecido como o Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade[ii], era como se o problema pudesse ser encaminhado no momento normativo, em que aparecem com toda a força considerações de natureza ideológica, de duas maneiras bem distintas.

A primeira, politicamente aderente àquela interpretação, era a reorientação das agendas de ensino e pesquisa para atender as demandas cognitivas de um “projeto nacional” de interesse da maioria da população. Embora sem questionar a importância da empresa, ela demandava uma considerável mudança na normativa linear-ofertista.

A segunda, não propunha uma reorientação no modelo de desenvolvimento e aceitava essa normativa. Ela satisfazia a direita por que sua concepção conservadora de desenvolvimento (capitalista) exigia capacitar a empresa. Mas satisfazia, também, a esquerda. Isso por que, por um lado, e coerentemente com o mito da neutralidade da tecnociência (capitalista) que o marxismo ortodoxo defende, o que tínhamos que fazer era emular os países líderes em pesquisa. E, por outro, por que o nacional-desenvolvimentismo que no plano ideológico se contrapunha ao imperialismo implicava que as empresas de capital efetivamente nacional deviam ser cognitivamente reforçadas mediante a ciência de fronteira e, por isto, da relação universidade-empresa. Também no plano ideológico estava a ideia de que a transição ao socialismo tinha como precondição o fortalecimento das empresas estatais que despontavam como atores importantes da CTI.

Amparada na ideia de que “para falar de ciência e tecnologia é necessário saber fazê-la”, até mesmo os integrantes da elite científica que chegaram a conhecer essa interpretação da nossa realidade pesquisa-produção (talvez por serem provenientes do território das ciências duras), não foram capazes de dela se apropriar.

A relação universidade-empresa e a orientação “empreendedorista”

A implementação do projeto neoliberal, no final dos anos de 1980, com o abandono da industrialização via substituição de importações que levou à extinção de quase todos dos institutos de pesquisa ocorreu, não por acaso, simultaneamente à privatização de estatais que haviam internalizado a função de P&D.

Em consequência, a orientação “transferencista”, aquela que entende que a cabe ao Estado aumentar o fluxo cognitivo entre a universidade e a empresa mediante aqueles arranjos institucionais de intermediação para, assim, viabilizar a transferência de conhecimento tecnocientífico desincorporado resultante da pesquisa universitária, foi perdendo força.

Foi crescendo a percepção de que a orientação “transferencista”, por estar praticamente inviabilizada pelo novo cenário, demandava uma outra mais adaptada aos novos tempos neoliberais: a orientação “empreendedorista”.

Sua inspiração parece ter sido a experiência aqui protagonizada pelos “guerrilheiros tecnológicos” da política de informática, que transitaram, eles mesmos, da universidade para o mundo empresarial, inaugurando aqui a figura do pesquisador-empreendedor. Eles foram capazes de substituir os empresários ou os tecnocratas nos arranjos em que, baseados no seu grande poder político ou econômico e possuidores de um projeto político que demandava conhecimento novo ou inacessível, explicam as contadas experiências de acoplamento pesquisa-produção bem-sucedidas entre nós. Ao conseguir replicá-las, ainda que por pouco tempo, eles se afiguravam com os protagonistas daquilo que estava sendo divulgado sobre o Silicon Valley como padrão de sucesso.

O avanço do neoliberalismo, que insiste que a solução dos problemas do capitalismo é menos Estado (que deve ser enxugado) e mais empresa (que deve ser crescentemente subsidiada), e seu rebatimento cognitivo, o inovacionismo fundamentado na visão neoshumpeteriana da Economia da Inovação cada vez mais aceita nos meios acadêmico e governamental, fizeram com que a orientação “empreendedorista” fosse ganhando força.

A percepção de que no campo do conhecimento o que chamamos de condição periférica impedia que a oferta criasse sua própria demanda, que havia levado à revisão do linear-ofertismo que levou à orientação “transferencista”, provocou mais um movimento na PCTI. Essa nova orientação, a “empreendedorista”, que como ocorre no na interface politics-policy quando atores portadores de novos valores e interesses ingressam no processo decisório, passou a conviver com a, até hoje em operação, “transferencista”. E, também com medidas de política tipicamente linear-ofertistas.

A orientação, a “empreendedorista” propõe que é função da universidade pública proporcionar aos seus pesquisadores-empreendedores, e àqueles que ela vai fazendo germinar entre seus alunos, mediante sua agenda empreendedorista de ensino, pesquisa e extensão, a oportunidade de se tornarem empresários. O insondável e crescente gasto de recurso material e humano que o Estado aloca junto às incubadoras, parques, aceleradoras, oficinas de patentes, NITs, agências de inovação, etc., e que seus professores duplamente nelas interessados agenciam é um indicador da pujança da orientação “empreendedorista”.

É crescentemente aceito o discurso autolegitimador dos professores-empreendedores de que se os empresários, por não perceberem a importância da inovação, desprezam os resultados da pesquisa universitária e sequer estão dispostos a aproveitar o estímulo governamental para fazer P&D, então nós vamos fazê-lo; nós sabemos como explorar os nichos de alta tecnologia e o quão importantes eles são para o desenvolvimento do País.

Essa convivência de orientações – linear-ofertista, “transferencista” e “empreendedorista” – para a viabilização da relação U-E, que envolve, respectivamente, a manutenção de agendas de ensino, pesquisa e extensão que visam a atender o que a elite científica julga que deveria ser a demanda cognitiva da empresa local, o financiamento de atividades conjuntas envolvendo a universidade e a empresa, e o custeio de empresas de base tecnológica e startups de professores e estudantes dotados de espírito empreendedor, que vão sendo gastos os recursos públicos alocados à PCTI.

Conclusão

Como avancei nas seções iniciais, este artigo deve ser entendido como primeira parte de uma totalidade maior; como uma espécie de introdução ao que será publicado sob o título de “Como tem sido e poderá ser nossa Política de Ciência, Tecnologia e Inovação: pitacos para a 5ª Conferência Nacional (parte 2). É nessa segunda parte que pretendo mostrar a você que chegou até aqui, que podemos estar em presença de um divisor de águas no que respeitar à forma como você analisa e opera a PCTI.

Nele, comentando o que ocorreu na Conferência sobre Cooperação Universidade -Empresa, possibilitar que, por contraste com o que escrevi aqui, configura esse alvissareiro “ponto de viragem” que me parece oportuno assinalar.

Aos que, ansiosos pela “solucionática”, gostariam que eu prometesse que iria apresentá-la na parte 2, lamento desapontar. Caso o que vou lá abordar, a tomada de consciência sobre o que vem produzindo aquela pequena comunidade dos analistas de esquerda da PCTI estiver de fato se iniciando, será deles a responsabilidade de concebê-la.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Tecnociência Solidária, um manual estratégico (Lutas anticapital).

Notas


[i] Tenho detalhadamente exposto e exaustivamente criticado o modelo mediante o qual a elite científica elabora nossa política cognitiva. Embora seja seu componente CTI o enfocado neste texto, muito do que aqui abordo pode ser estendido para a política cognitiva na sua totalidade.

[ii] Abro aqui uma exceção em relação ao procedimento que tenho usado de não indicar referências de artigos acadêmicos para citar um – DAGNINO, R.; THOMAS, H.; DAVYT, A. El pensamiento en ciencia, tecnología y sociedad en Latinoamérica: una interpretación política de su trayectoria. Redes, Buenos Aires, v. 3, n. 7, p. 13-51, 1996 – que, ademais de apresentar esse pensamento, explica a origem de muitas das afirmações feitas neste texto.


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