Politicamente incorreto

Imagem: Vlad Kovriga
image_pdf

Por RENATO ORTIZ*

O politicamente correto padece da tentação do Bem e de uma certa ilusão de ótica, aspira a um mundo no qual a sombra dos objetos se projeta sobre sua própria essência

Numa de suas viagens imaginárias Gulliver visita a Academia de Lagado; nela várias experiências eram feitas para se encontrar a felicidade plena. Os sábios, convictos de suas certezas, tinham abolido a linguagem. Cansados dos equívocos que as palavras encerram – apenas travestiam a realidade –, resolveram comunicar-se através dos objetos a que se referiam. Andavam com sacos e carroças repleto de coisas e, ao serem interpelados, as mostravam para dizer exatamente aquilo que desejavam exprimir. Entretanto, dizem os linguistas, mesmo se fosse possível reunir em único lugar um número expressivo de baleias, seria impossível dizer “todas as baleias”. O significado de “todas” transcende a materialidade empírica daquilo que denota. Há uma longa história do devaneio da língua perfeita, idioma do Paraíso (Umberto Eco se dedicou a decifrá-la); sua estrutura celestial seria capaz de apreender o mundo com justeza e precisão, entre as palavras e as coisas não existiria o hiato da inexatidão. A cada objeto ou ideia haveria um único termo para denominá-los; assim, qualquer ambiguidade de sentido seria eliminada.

Porém, a língua é uma representação, ela não se esgota na mensagem que enuncia. O politicamente correto acredita que os termos de um idioma contêm a essência daquilo a que se refere, entre as palavras e o mundo haveria uma conjunção harmônica e íntegra. Assim, dizer algo errado é equivocar-se em relação à essência, a correção é necessária para ajustar o desvio pressuposto entre linguagem e realidade. O “cancelamento” decorre desta intenção: isolar o verdadeiro do falso.

Nada há de novo nisso, existem vários exemplos de disciplinarização da língua; é o caso da Revolução Francesa. Os revolucionários procuraram extirpar todos os traços da tradição cristã da vida francesa, a reforma do calendário gregoriano tinha justamente esse objetivo. Os doze meses do ano foram rebatizados (Brumário, mês das brumas; Nivoso, da neve; Pluvioso, das chuvas; Florial, das flores; etc.), os dias da semana redefinidos (primidi, duodi, tridi, quartidi, etc.) e não mais seriam dedicados a nomes de santos (foram trocados por elementos da terra: açafrão, uva, castanha, etc.). Algumas palavras foram também banidas do vocabulário quotidiano, “senhor” e “senhora” sendo substituídos por “cidadão”, manifestação do espírito de igualdade entre as pessoas. Entretanto, o “terror linguístico” (assim foi denominado na época) tinha uma amplitude maior, a emergência do Estado-nação republicano exigia a manifestação da unicidade da língua; os vários dialetos existentes no país foram, portanto, censurados e perseguidos, todos deveriam se expressar em um único idioma: o francês. Afirmava-se a totalidade da nação para se contrapor ao diverso que a ameaçava; como no mito de Babel, a diversidade era uma maldição. No caso do politicamente correto tem-se algo irônico: o ideal da diversidade exige o controle da língua, porém, o diverso é o fundamento da homogeneidade almejada.

Jakobson dizia que uma língua se define pelo que pode e não pelo que permite ou deve dizer, por isso nenhum idioma é superior ou inferior aos outros (muito se escreveu sobre a superioridade do inglês, ele seria capaz de expressar coisas que outras línguas desconheceriam). Na verdade, os idiomas representam o mundo à sua maneira, cada um deles contém uma verdade na qual a linguagem se assenta. Entretanto, toda língua se realiza em contexto (essa é a diferença entre linguagem e língua); nela, o significado das palavras se transforma e se desdiz. A entonação da voz, indicando suavidade ou rispidez, a ironia, a expressão facial de quem fala, constituem elementos que modificam o sentido expresso do que é dito. O contexto é a situação na qual as palavras (diz-se que uma frase foi retirada de contexto) ou os indivíduos se encontram. A linguagem, enquanto estrutura, não garante imediatamente a inteligibilidade da fala (ou da escrita), é necessário que ela se insira numa determinada rede de interação social. A mesma coisa dita em lugares distintos, com entonação distinta, tem significado diferente. Imaginar a existência de um manual da utilização correta das palavras, reduzindo-as a um determinismo militante, é uma quimera. O contexto é história e a história é um destino coletivo, não o monopólio da definição das boas intenções. A riqueza de uma língua exprime-se na multiplicidade de sentidos que ela possibilita dizer, a ternura ou o ódio, a frustração ou a tristeza, a dominação ou a liberdade.

Sempre me intrigou a obra de Botero, com suas gordas e gordos. Não entendia sua intuição estética até visitar o museu de Medellin. Nele existem várias esculturas, mulheres gordas, padres gordos, gatos gordos, burgueses gordos, mesas e cadeiras com bordas arredondadas, vasos redondos, etc. Percebe-se que seu interesse é pelas curvas, o volume das coisas, enfim, aquilo que é esférico, roliço. O universo de Botero é sem arestas, tudo está sinteticamente integrado na sinuosidade das formas. Diante das agruras do real, das contradições, da amargura, o artista imagina uma configuração de elementos que idealmente contrasta sua aspereza. Porém, como todo artista, ele sabe que sua ficção é distinta daquilo que o cerca, o real é ponto de partida para sua imaginação. O politicamente correto padece da tentação do Bem e de uma certa ilusão de ótica, aspira a um mundo no qual a sombra dos objetos se projeta sobre sua própria essência. Suprime-se, assim, o hiato entre a verdade e a dúvida, ser e estar.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]

Publicado originalmente no blog da BVPS.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES