Eleição e distopia: além da bolha, a crença

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Por LISZT VIEIRA*

A campanha de Lula deve procurar atingir o eleitorado de Bolsonaro, com mensagens capazes de neutralizar ou destruir suas crenças e opiniões irracionais

“Os fatos não penetram no mundo onde vivem nossas crenças” (Proust).

Em 1995, Carl Sagan publicou o livro O mundo assombrado pelos demônios: A ciência vista como uma vela no escuro. O astrofísico americano previa um futuro distópico em que prevaleceria a desinformação e a pseudociência, levando ao “emburrecimento” dos EUA e a uma “celebração da ignorância” através da mídia.

A agência de imprensa Deutsche Welle relembra um trecho deste livro, em artigo de Felipe Wang, publicado em 25 de agosto de 2022: “A ciência é mais do que um conjunto de conhecimentos, é uma forma de pensar. Tenho um pressentimento sobre uma América, na época dos meus netos ou bisnetos, quando os EUA serão uma economia de serviços e informação; quando quase todas as principais indústrias de manufatura terão escapado para outros países; quando impressionantes poderes tecnológicos estarão nas mãos de alguns poucos, e ninguém que represente os interesses públicos conseguir compreender os problemas; quando os seres humanos tiverem perdido a capacidade de estabelecer seus próprios objetivos ou de questionar com conhecimento de causa os que detêm a autoridade; quando, apegados aos nossos cristais e consultando nervosamente nossos horóscopos, com nossas faculdades mentais em declínio, incapazes de distinguir entre o que nos faz sentir bem e o que é verdade, retrocedemos, quase sem perceber, à superstição e às trevas”.

E mais adiante: “O emburrecimento dos Estados Unidos é mais evidente na lenta degradação dos conteúdos substanciais na mídia enormemente influente, nas frases de efeito de 30 segundos (agora reduzidas a dez segundos ou menos), as programações baseadas no mínimo denominador comum, apresentações crédulas sobre pseudociência e superstição, mas, sobretudo, numa espécie de celebração da ignorância”.

Parece que estava adivinhando o que viria com as novas redes sociais, onde centenas de milhões de pessoas se informam apenas por meio das fake news que recebem sem nenhuma preocupação de confronto com os fatos da realidade. Toda nossa civilização baseada na investigação científica e na busca da verdade – desde o Renascimento, nos séculos XV e XVI, e o Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX – está ameaçada.

Essas considerações são oportunas quando enfrentamos agora os desafios que temos pela frente nessa reta final da campanha eleitoral de 2022. Tenho percebido que boa parte da comunicação eleitoral da esquerda se dirige aos já eleitores de Lula. Nesse mês e meio que nos resta de campanha, deveríamos priorizar, não os já convencidos, mas aqueles que não votam ou, pelo menos, ainda não votam em Lula.

Para atingir o eleitorado bolsonarista, pouco ou nada valem argumentações racionais baseada em fatos, princípios ou programas políticos. Eles se conduzem não por argumentos racionais, mas por crenças e opiniões que se encontram fora do mundo racional. Essas opiniões não se baseiam em fatos, nem buscam comprovação na realidade objetiva. São crenças subjetivas, proveniente de preconceitos, dogmas e superstições.

Apesar da dificuldade, a campanha de Lula deve atingir esse eleitorado, com mensagens capazes de neutralizar ou destruir suas crenças e opiniões irracionais. Serão necessárias mensagens dirigidas não à razão, mas à emoção desses eleitores, ferindo os dogmas por detrás de suas opiniões. Por exemplo, seria desejável que a campanha de Lula tivesse canais específicos para atingir o eleitorado evangélico com vídeos de 1 minuto, não mais, ou minitextos, dirigidos a este segmento.

Afinal, Jesus Cristo morreu torturado na cruz, e existem cristãos que votam em quem defende a tortura. Jesus Cristo pregou a paz entre os homens, e existem cristãos votando em candidato que apoia armas para todos e a guerra civil. Seria importante usar a linguagem dos evangélicos, e dizer que os cristãos estão sendo enganados pelo Anti Cristo que fez pacto com o diabo. Claro que não seria Lula a dizer isso, mas não faltaria gente disposta a dizer coisas desse tipo. E, na falta de canais especiais para atingir os crentes evangélicos, alguém poderia dizer isso no horário eleitoral.

Para justificar essa proposta, creio ser necessário relembrar algumas distopias, anunciadas no século passado, e confirmadas no século XXI.

Em seu ensaio Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder, o sul coreano Byung-Chul Han mostra que a psicopolítica neoliberal busca induzir em vez de oprimir. Ainda em 1990, em seu ensaio Post-Scriptum sobre a sociedade de controle, o filósofo Gilles Deleuze vislumbrou, antes da internet, o advento da era digital. Ele preconizou que o indivíduo seria definido pela senha numérica, transformado em dados mensuráveis e quantificáveis. Constatou que o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do então chamado Terceiro Mundo. Vende serviços e compra ações. Está focado na venda e no mercado. A empresa substituiu a fábrica. As massas tornaram-se amostras, banco de dados, mercados. O marketing tornou-se instrumento de controle social.

Hoje, o capitalismo financeiro tornou-se dominante, com modos de produção imateriais e pós-industriais. O trabalhador, muitas vezes, vira “empreendedor”, explora a si mesmo, é ao mesmo tempo carrasco e vítima. E o cidadão se dissolve no consumidor.

Tudo isso faz lembrar o neoliberalismo grosseiro que vigora no Brasil. A famosa frase de Jair Bolsonaro – “Vim para destruir, não para construir” – é inspirada diretamente nos escritos de Olavo de Carvalho, provavelmente influenciado pela Doutrina do Choque do psiquiatra canadense Ewen Cameron que administrava choques elétricos para erradicar o mal do cérebro humano e produzir novas personalidades. A ideia era colocar os pacientes em estado caótico para serem “apagados” e “regravados” como cidadãos-modelo e anticomunistas. O cérebro seria reformatado e reescrito. Os pacientes ficavam um mês numa verdadeira câmara de tortura, eram tratados com fortes choques elétricos para apagar a memória e recebiam drogas que alteravam a consciência.  As “pesquisas” de Ewen Cameron foram financiadas pela CIA e ocorreram durante a Guerra Fria.

Em seu livro A doutrina do choque, Naomi Klein associa essa técnica à doutrina do famoso economista Milton Friedman, pai do modelo neoliberal. Friedman propôs aproveitar o caos criado pelo furacão Katrina em Nova Orleans para reformar radicalmente o sistema educacional no sentido neoliberal de privatização. O capitalismo do desastre usa o choque para aumentar a desigualdade e enriquecer a elite. Milton Friedman propunha um estado social de choque para a reprogramação neoliberal da sociedade. Jair Bolsonaro tentou, mas não conseguiu emplacar inteiramente seu projeto original – armas para todos, guerra civil, caos, fechamento do Congresso e do STF, ditadura militar para restabelecer a ordem.

Tendo em vista a disputa eleitoral em curso, vale relembrar aqui as duas distopias consideradas mais significativas do século XX: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. O “Grande Irmão” (Big Brother) de Orwell, com sua opressão vigiada, se aproxima mais da biopolítica da sociedade de vigilância típica do capitalismo industrial, e o “Mundo Novo” de Huxley, com seu bem-estar artificial e psicotrópico poderoso, fica mais próximo da psicopolítica da sociedade de controle vigente no capitalismo financeiro neoliberal.

Orwell temia um regime totalitário que abolisse os livros. Huxley dizia que isso não seria necessário, porque as pessoas não iam mais querer ler livros. Para Orwell, seremos arruinados pelo que tememos. Para Huxley, seremos arruinados pelo que desejamos. A servidão satisfeita prevista por Huxley tem mecanismos diferentes da “servidão voluntária” conceituada por Étienne De La Boétie no século XVI, mas a lembrança é inevitável.

No Brasil de hoje, vigora uma mistura da antiga biopolítica da sociedade disciplinar com a nova psicopolítica da sociedade de controle. Nesta última, não há o Big Brother que arranca informações contra nossa vontade. Em vez disso, nós nos revelamos por iniciativa própria. Se as catedrais do século XX foram os Museus, feitos de pedra e mostrando o passado, as catedrais do século XXI são digitais, mostrando informações, sejam verdadeiras ou falsas. É a internet com todos os seus templos: facebook, twitter, instagram, whatsapp, tik tok etc.

Em vez do Big Brother de George Orwell, temos um pan-óptico digital descentralizado onde se misturam o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário. É um pan-óptico mais eficiente do que o original proposto por Jeremy Bentham em 1785, considerado por Foucault a metáfora perfeita para a sociedade de vigilância do século XIX em torno da família, escola, quartel, fábrica, hospital, prisão. Segundo Zygmunt Bauman, em Vigilância líquida, o que temos hoje é um “ban-óptico” que identifica e exclui como indesejadas ao sistema as pessoas de baixa renda, consideradas lixo.

A opinião baseada em fake news enfrenta com firmeza e às vezes sobrepuja a análise fundada na realidade. A psicopolítica do neoliberalismo se apoia cada vez mais na opinião e na emoção em detrimento da análise e da razão. É uma técnica que mantém o sistema dominante através da programação e controle psicológico. Este é um dos pontos cegos da sociedade de conhecimento, além da quantificação da realidade que afasta o espírito do conhecimento, pois os big data são desprovidos de conceito ou espírito.

A psicopolítica do neoliberalismo ajuda a explicar a tragédia que vivemos hoje no Brasil, onde um presidente corrupto e autoritário negou a pandemia, sabotou a vacina, gastou centenas de milhões para produzir a panaceia da cloroquina, desprezou os mortos pela Covid, agrediu parceiros comerciais, destruiu a educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente, direitos humanos, política externa soberana, e apesar disso, ou talvez por isso, consegue manter seu apoio eleitoral entre 30 e 35%.

Com a morte de mais de 680 mil pessoas pela pandemia, com a crise econômica, o aumento nos preços dos alimentos, combustíveis, eletricidade e o retorno da fome e da insegurança alimentar, bem como pelo enfraquecimento e até mesmo destruição das instituições democráticas pelo Governo, o princípio da realidade enfrentará um duro teste nesta eleição. O marketing populista e fascistóide do presidente, dirigido exclusivamente à emoção, se choca com a dura realidade que o país enfrenta este ano. A opinião subjetiva, baseada em fake news, está sendo obrigada a enfrentar os fatos da realidade. Contra eles, ergue-se o marketing da psicopolítica neoliberal, ancorada na base de apoio do governo, principalmente boa parte do mercado, dos militares, dos evangélicos, além dos bolsonaristas fanatizados.

Tendo em vista os inúmeros crimes cometidos pelo presidente B., desde a política genocida da pandemia às tentativas de destruição da democracia, é escandaloso e inaceitável que as instituições judiciais do país não tenham processado o presidente pelos seus crimes e suas constantes ameaças de golpe. A Procuradoria Geral da República foi transformada em escritório de advocacia criminal de Jair Bolsonaro, desmoralizando a reputação do Ministério Público, já enlameada pelos procuradores da Lava Jato. E muitos juízes, a exemplo de Moro, condenaram adversários políticos, mesmo sem provas, e absolveram aliados, mesmo com provas.

O saudoso cientista político Wanderley Guilherme dos Santos dizia que, no Brasil, 30% votam na direita, 30% votam na esquerda, e 40% constituem o eleitorado flutuante. São esses últimos que hoje estão mais sujeitos à influência da enxurrada de fake news lançadas diariamente nas redes sociais e até na mídia. Este deveria ser um dos segmentos a serem priorizados nas comunicações da campanha eleitoral, em vez de tentar convencer os já convencidos.

Já que “os fatos não penetram no mundo onde vivem nossas crenças”, temos de atacá-las com outros argumentos.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

 

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