Por LUIZ MENNA-BARRETO & ÂNGELA M. MACHADO DE LIMA HUTCHISON*
Uma pergunta que não quer calar
É dessas perguntas que costumam nos assombrar dada a ausência de explicações convincentes nas conversas e nas publicações, sejam acadêmicas ou de difusão mais ampla. Neste caso, o preço das vacinas não costuma ser mencionado, por que será? Exploraremos algumas hipóteses para começar a entender esses silêncios que gostaria de compartilhar neste espaço democrático de A Terra Redonda, até porque as bordas da Terra plana estão superlotadas.
Observamos que durante a pandemia por COVID-19 ressaltaram-se as desigualdades de acesso a serviços, cuidados de saúde e vacinas em todos os países do mundo, sendo evidente que os mais atingidos são os grupos populacionais em maior vulnerabilidade tais como os pobres das grandes cidades, os afrodescendentes e as populações indígenas. Essa situação de vulnerabilidade social aumentou o risco desproporcional dessas pessoas de se expor ao vírus, de adoecer, de ficar com sequelas, de morrer por complicações ou de não ter assistência adequada para se tratar ao adoecer dessa doença que, já temos evidências, pode ser evitada. Vale dizer, se contaminar ou adoecer de COVID-19 não significa fatalidade ou incompetência individual dessas pessoas, senão nos indica uma tragédia coletiva previsível e que poderia ter sido evitada e/ou mitigada. Países como a China e o Vietnam comprovam essa hipótese. E, também sabemos, sistemas universais, como o SUS, são fundamentais para garantir que todos tenham acesso a serviços de saúde, aos cuidados de prevenção, promoção e recuperação da saúde que são oferecidos nos diversos níveis da rede pública de atenção a saúde no Brasil. Em outras palavras, pessoas sem acesso, ou com acesso precário, a serviços de saúde se encontram em situação de vulnerabilidade programática, ou seja, em situação de iniquidade. Essa situação já é bem conhecida, desde os anos 1990, a partir do desenvolvimento do programa de atenção às pessoas portadoras de HIV/AIDS do Ministério da Saúde do Brasil. A quem interessar saber mais sobre esse ponto recomendamos a vasta literatura disponível que explora a relação entre vulnerabilidades e respostas à pandemia por HIV/AIDS. Destacamos principalmente as pesquisas de Ayres; França-Júnior e colaboradores1.
Sendo a vacinação uma das principais medidas de proteção específica historicamente disponível em Unidades Básicas de Saúde do SUS, e que, comprovadamente garante a assim chamada imunidade de rebanho, com efetivo controle de doenças transmissíveis e pandemias, por que observamos tamanha iniquidade na cobertura vacinal nessa pandemia por COVID-19? Vale perguntar também, por outro lado, por que o Brasil outrora premiado por desenvolver um excelente programa de prevenção e controle da pandemia por HIV/AIDS, e que em 2007 para alcançar esse sucesso teve como importante medida a “quebra de patentes”, nesse momento figura entre os países com as piores respostas à pandemia por COVID-19?
E aqui colocamos a pergunta central deste ensaio: por que os custos envolvidos no desenvolvimento e compra das vacinas contra o SARS-CoV-2, algumas disponíveis no Brasil, não são divulgados? Será que a transparência nesse quesito não é essencial para identificar a lógica que instrui o poder público, suas políticas, estratégias ou a ausência dessas ações? Ou a transparência não é essencial para que possamos entender e combater os eventuais “obstáculos” que impedem a equidade no acesso às vacinas para toda a população? Haveria alguma ação ilícita que justificaria essa omissão?
Ensaiamos uma resposta a essa pergunta, e que motiva esta nossa reflexão: apostamos que a falta de transparência nos custos dos mecanismos de produção e distribuição das vacinas contra o SARS-CoV-2, na realidade omite que regras de mercado, embutidas no manejo dessa pandemia, levaram e continuarão a levar à iniquidade de acesso às vacinas, com consequente maior número de adoecimentos e mortes de pessoas pertencentes às populações mais vulneráveis no Brasil e em todo o mundo. Nesse sentido, concordamos com o médico sanitarista Jarbas Barbosa, vice-diretor geral da OPAS, que diz em um dos seus pronunciamentos públicos que “a iniquidade no acesso é um problema moral, ético e sanitário”. Precisamos apontar que há uma iniciativa por parte da OMS/OPAS para tentar minimizar a iniquidade de acesso, o programa denominado COVAX. E, salientamos aqui também, a tentativa por parte de um parlamentar brasileiro (Senador Paulo Paim, PT), proponente de um PL que busca aprovar o licenciamento compulsório (“quebra de patente”) das vacinas contra o SARS-CoV-2 no Brasil. Comentamos essas duas iniciativas, a seguir.
A imprensa mundial divulgou amplamente que para enfrentar a emergência sanitária do SARS-CoV-2, governos e cientistas conseguiram desenvolver em menos de um ano plataformas de vacinas baseadas em diferentes tecnologias e que já no início de 2021 eram aplicadas um total de sete formulações de vacinas. Essa resposta contrasta com o interesse limitado que a indústria farmacêutica tem demonstrado em desenvolver medicamentos contra as chamadas “doenças negligenciadas”. Como atingem populações muito pobres, tais remédios têm um potencial restrito de exploração econômica. Um levantamento feito em 2018 por pesquisadores da Universidade de Fudan, na China, mostrou que, entre 2000 e 2011, apenas 5 dos 850 medicamentos que obtiveram registro nos Estados Unidos e na Europa eram destinados a moléstias “da pobreza” – em todos os casos, tratava-se de novas aplicações de fármacos já existentes. “No século XXI, ainda não foi produzido nenhum medicamento inovador para as 20 doenças tropicais negligenciadas”, afirma o químico Adriano Andricopulo, do Instituto de Física de São Carlos da USP, que trabalha no desenvolvimento de fármacos contra Chagas e leishmaniose.2
Nesse cenário já complicado do ponto de vista das prioridades do que se produzir por parte da indústria de medicamentos e de insumos, o programa COVAX foi proposto com objetivo de buscar mitigar a dificuldade dos países pobres para acessar vacinas contra o SARS-CoV-2. E, no final de fevereiro de 2021, Gana se tornou o primeiro país do mundo a receber vacinas contra o novo coronavírus pela Iniciativa COVAX. Trata-se de um programa criado pela OMS/OPAS junto a entidades filantrópicas que visa ampliar a distribuição de imunizantes para combater o SARS-CoV-2 e, assim, garantir que nações de baixa renda não sejam negligenciadas, segundo nos dar conta o médico sanitarista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). “Apesar de parecer um projeto valoroso, não se previu que parte considerável dos países ricos reservasse um número de doses bem maior do que o necessário para seus habitantes em negociações diretamente com os fabricantes”, informa Reinaldo2 Desde os primórdios da iniciativa COVAX, já se previa que, em um primeiro momento, países ricos poderiam comprar a maioria das doses de vacinas fabricadas pelas produtoras farmacêuticas, mas não se tinha noção de que alguns países comprariam praticamente quase todos os produtos disponíveis.
Então, tratamos de um problema sem solução no nosso mundo de economia globalizada? Na visão de Guimarães, com a qual nos alinhamos, uma forma de “driblar” o problema seria “o licenciamento compulsório — chamado erroneamente de ‘quebra de patente’. A manobra consiste em suspender temporariamente o direito de exclusividade do dono de uma patente para permitir que seu item seja fabricado e vendido por terceiros durante uma emergência global. Na teoria, isso elevaria a quantidade de doses disponíveis e diminuiria os preços”. Neste mesmo sentido, defendemos que a política global das patentes estabelecida em bases da apropriação intelectual de natureza privada deve ser modificada tendo em vista o horizonte ético da solidariedade internacional, essencial para que todas as pessoas tenham acesso de modo universal às vacinas e a todas as medidas de controle da pandemia por COVID-19. Até porque, a se estender a vacinação errática vigente no Brasil, por exemplo, o vírus poderá sofrer mutações e talvez se torne resistente aos imunobiológicos já disponíveis nesse momento. Esse cenário nos parece bastante preocupante no que se refere ao controle da pandemia incrementando ainda mais os adoecimentos e mortes entre as populações mais vulneráveis.
Finalmente, consideramos que as iniciativas COVAX e esforços pela “quebra das patentes” são louváveis no sentido de buscarem mitigar as iniquidade de acesso às vacinas, mas não nos respondem à pergunta sobre os efetivos custos envolvidos na produção e distribuição desses imunizante pelos governos e produtoras farmacêuticas em nenhum país do mundo!
Uma possível explicação é bem simples, os preços são omitidos por serem, por assim dizer, secretos, mas isso é um segredo de polichinelo, pois quando um país compra milhões de doses, os custos se tornam evidentes, tanto para quem gasta como para quem recebe. Aí vem um segundo argumento: a saúde da população não tem preço. Como assim? Claro que tem, mas quem deve pagar e de onde sai esse dinheiro todo? No suposto paraíso liberal paga quem pode, os que não podem, morrem. Dinheiro público acaba sendo o caminho, claro, e aí pobres e ricos são tratados como iguais. Mas a pergunta persiste: porque os valores não aparecem, as vacinas custam todas o mesmo? A terceira explicação que talvez faça algum sentido para explicar a falta de informações sobre os custos das vacinas – os lucros provavelmente astronômicos das empresas que as produzem, informação tanto mais chocante quanto o crescimento da fome naquela parte do mundo que não produz vacinas. Um quarto caminho, já bem trilhado aqui em A Terra é Redonda e em outros canais democráticos, é o da crítica aos compromissos sempre atualizados da grande mídia no ocultamento dos bastidores da pandemia; nessa mídia vemos no máximo constatações de tristeza com o meio milhão de pessoas mortas e têm sido publicadas algumas críticas, agora menos veladas, ao desgoverno obviamente genocida. Essa mídia hegemônica convive mais ou menos bem com o fato de morrerem mais pretos e pobres do que brancos e ricos, afinal porque aqueles são fracos e que de algum modo fracassaram na busca da riqueza salvadora, ao passo que esses são fortes e bem sucedidos.
De qualquer modo, os custos têm sido omitidos, tanto do lado das empresas produtoras como dos países compradores e as contradições persistem. Há notícias de tentativas de uma saída óbvia, a quebra das patentes, caminho evidentemente fértil em países com capacidade industrial instalada em órgãos públicos como o Instituto Butantã e a Fiocruz no nosso país. Será que o governo está aguardando a privatização desses institutos para eventualmente poderem competir com as gigantes multinacionais como a Pfizer, Johnson&Johnson, Astra-Zeneca e algumas outras? Doce ilusão que revela o entendimento rasteiro do que significa o desenvolvimento no mundo globalizado4.
A repercussão tímida das tentativas de “quebrar as patentes” das vacinas anti-COVID, além de evidências do silêncio constrangedor que nos assola, revela também uma debilidade das oposições que vem se limitando a cultivar as atitudes grotescas do governo. A nossa CPI da pandemia vem correndo um sério risco de se tornar programa humorístico se não aprovar punições fortes das mentiras ao apurar os crimes do atual governo.
*Luiz Menna-Barreto é professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
*Ângela M. Machado de Lima Hutchison é professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Notas
1O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios / The vulnerability concept and the practices of health: new perspectives and challenges. Ayres, José Ricardo de Carvalho Mesquita; França Júnior, Ivan; Calazans, Gabriela Junqueira; Saletti Filho, Heraldo César. In. Czeresnia, Dina; Freitas, Carlos Machado de. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2003. p.117-139, tab.
2 https://saude.abril.com.br/medicina/o-que-e-a-iniciativa-covax-contra-a-covid-19-e-como-ela-funciona.
3Artigo disponível em https://www.nexojornal.com.br/externo/2021/04/11/Uma agenda para as doenças esquecidas?fbclid=IwAR0zgtbZTay9rrer8dAYEOqNKt0heRMwJqJeYp f277Cd64BM9OiQKgL7G4
4ver “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, artigo de Andre Gunder Frank reproduzido recentemente n’A Terra é Redonda (edição de 28 de março de 2021, a partir do original publicado em Monthly Review, v. 18, no. 04, setembro 1966.