Sobre a questão judaica

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BERNARDO RICUPERO*

Comentário sobre o livro de Karl Marx

Quando escreveu Sobre a questão judaica Marx não tinha ainda vinte e seis anos. Pouco antes, iniciando o “ajuste de contas com sua consciência filosófica”, empreendera uma cerrada crítica à Filosofia do direito, de Hegel. Pouco depois, em Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, encontra a “classe com cadeias radicais”, o proletariado, o que marca sua adesão ao socialismo.

Sobre a questão judaica deve, portanto, ser compreendida tendo em vista esse momento do desenvolvimento intelectual e político de Marx. Mais, um momento central, que, em linhas gerais, coincide com seu curto período em Paris. Nele, edita, junto com Arnold Ruge, o único número dos Anais Franco-Alemães, revista na qual aparece Sobre a questão judaica, a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel e um artigo que chama sua atenção, Esboço para uma crítica da economia política, de Friedrich Engels.

O livro versa sobre dois artigos de Bruno Bauer e não diretamente sobre a questão judaica. O ensaio é dividido em duas partes praticamente independentes. Na primeira, já com o estilo polêmico que o marcará, Marx realiza uma crítica detalhada das teses de Bauer; na segunda, procura, num momento em que está começando a desenvolver a concepção materialista da história, entender “não o judeu de sábado, objeto da consideração de Bauer, mas o judeu de todos os dias”.

O problema de seu antigo companheiro “jovem hegeliano” seria precisamente o de manter-se preso a uma concepção puramente religiosa da emancipação política dos judeus. Em outras palavras, ao criticar a reivindicação da emancipação política dos judeus, transforma uma questão secular em religiosa, sugerindo que o problema ainda se encontra na religião.

O erro seria acreditar que os judeus para se emanciparem politicamente deveriam se libertar do judaísmo. A emancipação política possibilitaria, ao contrário, que os homens, fossem eles judeus, protestantes, católicos, etc. professassem a religião que quisessem. Em outras palavras, a libertação do Estado da religião não seria um sinônimo da libertação do homem da religião, a emancipação política não correspondendo, de maneira alguma, à emancipação humana.

Numa orientação oposta, Marx procura mostrar que o Estado, ao não se identificar com os que professam uma determinada religião ou com os que são proprietários, procuraria precisamente garantir, para além de elementos particulares, sua universalidade. A partir daí, a vida genérica do homem pareceria ocorrer no espaço do Estado, sua vida privada subsistindo na sociedade civil.

Haveria, conseqüentemente, uma cisão do homem enquanto cidadão, ser genérico atuante na comunidade política, que visaria o interesse geral, e o burguês, indivíduo privado, membro da sociedade civil que procuraria realizar seu interesse privado.

Bauer também erraria ao considerar que os homens, a fim de terem acesso aos direitos humanos, deveriam se libertar da religião. No entanto, não seria isso que se constata examinando as Declarações dos direitos do homem da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Em particular, é comum nos documentos franceses aparecer a distinção entre os “direitos do homem” e os “direitos do cidadão”.

No entanto, nenhum dos direitos do homem – igualdade, liberdade, segurança e propriedade – iria além do homem como burguês, membro egoísta da sociedade civil. Os direitos do cidadão, por seu turno, seriam entendidos como simples meios para a realização dos direitos do homem.

Segundo Marx, não deixa de ser significativo que o “o membro da sociedade civil lhe chamam homem, simplesmente homem”, ao passo que o cidadão, o homem político é o homem abstrato, “artificial, o homem como pessoa alegórica, moral”. Isto é, se o homem político, cidadão, não teria verdadeira existência, o homem egoísta, membro da sociedade civil, seria identificado com o homem natural.

Para Marx, a preservação dos direitos do homem, presentes na sociedade civil, seria a razão de ser do Estado. Numa formulação que continuará a ser central no restante da sua obra, considera que ao invés de pôr fim às contradições da sociedade civil, como acreditara Hegel, o Estado existiria como instrumento para a manutenção dessas contradições, ou seja, a política não resolveria os problemas da sociedade civil, mas como que os refletiria.

Nesse sentido, da mesma maneira que Ludwig Feuerbach notara a existência da alienação religiosa – na qual os homens projetam suas potencialidades numa suposta entidade superior, Deus – haveria uma espécie de alienação política, em que se acredita que as particularidades constitutivas da sociedade civil seriam superadas na universalidade do Estado.

Nessa referência, é possível considerar que Marx está iniciando, em Sobre a questão judaica, a crítica às aparências invertidas da sociedade burguesa. Pouco depois, nos Manuscritos econômicos-filosóficos, começa a realizar a crítica da alienação do trabalho. Continua a ter motivação similar a análise realizada em O capital sobre o “fetichismo das mercadorias”, onde relações entre pessoas e os produtos de seu trabalho aparecem como “relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas”.

Mas se a crítica de Marx aos direitos dos homens chama a atenção principalmente para seu caráter ideológico – falsa aparência de igualdade, liberdade, segurança e propriedade que obscurece as contradições da sociedade civil – ela não percebe o potencial emancipatório desses direitos. Ou melhor, que mais do que refletirem as condições da sociedade civil eles podem também entrar em tensão com a sociedade burguesa e pressionar para sua transformação. Nesse sentido, para além dos direitos civis, que Marx conhecia, foram criados, por pressão do movimento operário e feminista, direitos políticos e sociais, que, hoje, se encontram sob ataque…

*Bernardo Ricupero é professor no departamento de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Romantismo e a ideia de nação no Brasil (WMF Martins Fontes)

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 5, agosto de 2009.

Referência


Karl Marx. Sobre a questão judaica. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 140 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alysson Leandro Mascaro Marcelo Guimarães Lima Marcos Silva José Machado Moita Neto João Lanari Bo Antonio Martins Valerio Arcary Lincoln Secco Marjorie C. Marona André Márcio Neves Soares Rodrigo de Faria Thomas Piketty Jorge Luiz Souto Maior Boaventura de Sousa Santos Ronald León Núñez Gerson Almeida José Costa Júnior Luiz Werneck Vianna Claudio Katz Ladislau Dowbor Andrew Korybko Michael Löwy José Geraldo Couto Luiz Marques Chico Alencar Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Caio Bugiato Eleutério F. S. Prado Vladimir Safatle Bernardo Ricupero Walnice Nogueira Galvão Daniel Costa Atilio A. Boron Valerio Arcary José Luís Fiori Rafael R. Ioris Alexandre de Freitas Barbosa Luis Felipe Miguel Eduardo Borges Luiz Renato Martins Remy José Fontana Bento Prado Jr. Marcus Ianoni Jorge Branco Antônio Sales Rios Neto Vinício Carrilho Martinez Milton Pinheiro Chico Whitaker Liszt Vieira Gilberto Maringoni Henri Acselrad Fábio Konder Comparato Benicio Viero Schmidt Luiz Bernardo Pericás José Micaelson Lacerda Morais Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vanderlei Tenório Igor Felippe Santos Fernando Nogueira da Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva Eugênio Trivinho Daniel Brazil Julian Rodrigues Heraldo Campos Otaviano Helene Maria Rita Kehl Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Sergio Amadeu da Silveira Paulo Capel Narvai Tales Ab'Sáber Fernão Pessoa Ramos Airton Paschoa Luiz Eduardo Soares Eliziário Andrade Renato Dagnino João Carlos Loebens Leonardo Avritzer Tadeu Valadares João Paulo Ayub Fonseca Berenice Bento Luiz Carlos Bresser-Pereira Carla Teixeira Marilia Pacheco Fiorillo Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Eleonora Albano Dênis de Moraes Tarso Genro Everaldo de Oliveira Andrade Luís Fernando Vitagliano Alexandre Aragão de Albuquerque Lucas Fiaschetti Estevez André Singer Michael Roberts Mariarosaria Fabris Slavoj Žižek Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Boff Ricardo Antunes Carlos Tautz Marilena Chauí Celso Favaretto João Carlos Salles Ari Marcelo Solon Afrânio Catani Juarez Guimarães Marcelo Módolo Armando Boito Mário Maestri Andrés del Río Bruno Machado Elias Jabbour Denilson Cordeiro Jean Pierre Chauvin Francisco Pereira de Farias Dennis Oliveira José Raimundo Trindade Eugênio Bucci Manchetômetro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Sacramento Ricardo Musse Henry Burnett João Feres Júnior Sandra Bitencourt Ricardo Fabbrini Samuel Kilsztajn Salem Nasser Jean Marc Von Der Weid Matheus Silveira de Souza Paulo Martins Anselm Jappe José Dirceu Priscila Figueiredo Rubens Pinto Lyra João Adolfo Hansen Ronald Rocha Paulo Fernandes Silveira Flávio Aguiar Celso Frederico Alexandre de Lima Castro Tranjan Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Antonino Infranca Paulo Sérgio Pinheiro Michel Goulart da Silva Annateresa Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Francisco de Oliveira Barros Júnior João Sette Whitaker Ferreira Luciano Nascimento Gabriel Cohn Flávio R. Kothe Érico Andrade Leda Maria Paulani Gilberto Lopes Lorenzo Vitral

NOVAS PUBLICAÇÕES