Por BRUNO PAES MANSO*
Ela morreu por não se sujeitar à tirania armada dos que agem movidos pela cega e criminosa busca por lucro e poder
O assassinato de Bernadete Pacífico é um dos principais crimes políticos da história recente do Brasil. Apesar de ainda não sabermos quem a matou, mandou matar e por que, não existem dúvidas de que ela morreu por não se sujeitar à tirania armada dos que agem movidos pela cega e criminosa busca por lucro e poder. Assim como ocorreu com Marielle Franco, assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro, os matadores atacaram sobretudo sua figura pública, para tentar destruir os valores que ela representa para a sociedade baiana e brasileira e silenciar as discussões e os debates que sua liderança provoca.
Mãe Bernadete era ialorixá, matriarca de terreiro e mestre de samba de roda. Mantinha vivo o conhecimento que herdou de sua mãe, Maria Alvina do Nascimento, parteira e sambadeira. As ações de Bernadete também eram políticas e estavam voltadas à organização de sua comunidade, localizada numa área de 840 hectares do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho.
Ela ajudou a criar uma associação que permitiu a 120 agricultores e 290 famílias viverem da agricultura familiar, pela produção de farinha para vatapá, verduras e frutas. Bernadete representava, pela sua ação, cultura e visão de mundo, a resistência contra a ganância de diferentes grupos que a viam como um obstáculo.
Para tornar o assassinato de Bernadete ainda mais revoltante, o crime ocorreu seis anos depois da execução de seu filho, Flavio Gabriel Pacífico, que nunca foi esclarecida pela polícia. Desde então, assim como aconteceu com outras mães que perderam seus filhos para a violência nas periferias do Brasil, ela passou a lutar por justiça.
As inúmeras hipóteses para o crime revelam o estágio de degradação do quadro político e institucional baiano. Bernadete relatava ameaças de grileiros e de madeireiros, interessados em se apropriar dos recursos e das terras do quilombo que ficam em área de preservação ambiental. As ameaças tinham se intensificado e Bernadete, segundo testemunhas, chegou a relatar que um homem estava vendendo lotes na região. Moradores disseram que um desses negociadores era policial. A demora na titulação definitiva do quilombo acabava promovendo pressões de grileiros e de madeireiros sobre os que moram nessa área, situação que se repete em diversas áreas de proteção ambiental nos Estados da Amazônia Legal.
Além das motivações ligadas ao extrativismo e grilagem, o governador baiano Jerônimo Rodrigues apontou para a possibilidade de o crime estar ligado ao tráfico de drogas. As possíveis razões seriam duas. A ialorixá impedia a venda de entorpecentes na área do quilombo, o que atrapalhava o lucro e desafiava o poder de traficantes, que passaram a fazer parte de uma rede nacional de gangues, com grupos mais armados, articulados e gananciosos. Também não está descartada a intolerância religiosa. No Rio de Janeiro, traficantes passaram a atacar terreiros e integrantes de religiões de matrizes africanas, influenciados por visões distorcidas do pentecostalismo.
A Bahia viveu uma desconcertante escalada de violência nos últimos 40 anos. Na década de 1980, quando foram coletados os primeiros dados de homicídios pelo Ministério da Saúde, os casos no Estado variavam entre 3 e 5 por 100 mil habitantes, uma das taxas mais baixas do Brasil. Passou à casa dos dois dígitos somente em 1993, rompendo o patamar de 20 por 100 mil em 2005. O crescimento, a partir de então, acelerou-se e depois se manteve em níveis elevados. Ao longo da década passada até os dias atuais, os homicídios no Estado ficaram sempre acima dos 40 homicídios por 100 mil habitantes.
Apesar do crescimento da população prisional e dos investimentos na polícia, o movimento do mercado de drogas se intensificou. Pequenas facções locais passaram a travar disputas violentas no Estado, associando-se a grupos criminosos nacionais, penetrando nas pequenas e médias cidades baianas. A reação do governo foi ineficaz, atabalhoada e contraproducente, soltando as rédeas para a truculência da polícia.
O resultado foi o crescimento da letalidade, que explodiu na última década. Se, em 2014, 278 pessoas haviam sido mortas pela polícia, oito anos depois, em 2022, o total de vítimas foi de 1.464, crescimento de 427%, superando em números absolutos até mesmo as polícias do Rio de Janeiro. A taxa de letalidade da polícia da Bahia alcançou 10,4 mortos por 100 mil habitantes, o que significa que, proporcionalmente, eles mataram mais do que toda a população de São Paulo, estado cuja taxa de homicídio no mesmo ano foi de 8,3 por 100 mil habitantes.
Assim como ocorreu no Rio de Janeiro, o descontrole da polícia baiana – cujo sintoma concreto são as taxas escandalosas de letalidade – fortaleceu a participação de integrantes da corporação no crime e em grupos milicianos, que passaram a atuar tanto na região metropolitana, como em áreas rurais e indígenas. O mesmo modelo de tiranias armadas controlando territórios, respaldado pela farda ou pelo capital bilionário do tráfico de drogas, vem se tornando um flagelo em diferentes estados do País, passando por cima de lideranças que agem politicamente na luta pelo fortalecimento do Estado de direito e de uma sociedade democrática mais justa, como Bernadete e Marielle.
No caso da Bahia, a situação é ainda mais desconcertante pelo fato de a violência ter escalado ao longo de mais de 16 anos de governos do PT, que se revelaram incapazes de pensar em formas mais efetivas para reduzir o drama do fortalecimento do mercado de drogas e do descontrole das polícias. Ao longo das gestões petistas, o que se viu foi a reprodução dos mesmos erros dos partidos populistas, que exploram o medo da população e apostam no patrulhamento ostensivo e truculento nos bairros pobres, reproduzindo a violência contra os grupos mais estigmatizados.
Em vez de garantir o direito e a segurança das pessoas que vivem nesses bairros, parte de sua população passou a ser considerada inimiga e a ser eliminada. Basta dizer que 98% das vítimas da violência policial na Bahia são negras. Em vez de reduzir o crime, as autoridades entraram em guerra contra a própria população. A estratégia acelerou o aprisionamento em massa, que fortaleceu as facções criminais e as milícias, acirrando a revolta de parte dos moradores e fragilizando a legitimidade das instituições democráticas.
O quadro pode parecer insolúvel, mas não é. Basta ter vontade política para definir prioridades: libertar esses bairros das tiranias armadas que os oprimem e levar o governo a exercer seu papel de garantidor de direitos e de justiça; evitar que figuras como Marielle e Bernadete se sintam ameaçadas e corram o risco de serem assassinadas. Não se trata apenas de um problema de segurança, mas de um desafio político fundamental para o futuro da democracia.
A vontade política precisa vir junto com a racionalidade. Existem políticas bem-sucedidas ao redor do mundo e no Brasil que já mostraram sua eficácia e que podem ser replicadas por gestores públicos dispostos a liderar essas mudanças. Um primeiro passo para conhecê-las e compreender como funcionam está no livro recém-lançado Manual de segurança pública baseada em evidências, de Alberto Kopittke, um compêndio com mais de 800 páginas que analisa 170 tipos de programas e seus resultados, obtidos ao longo dos últimos 50 anos.
Alberto Kopittke foi diretor do Departamento de Políticas e Projetos na Secretaria Nacional de Segurança Pública durante o governo de Dilma Rousseff. Já havia sido secretário municipal de Segurança da cidade de Canoas, quando conseguiu bons resultados na redução de homicídios. Como gestor público, sentiu falta de ter acesso a dados sobre o resultado de programas para a área, já que precisava decidir como investir o limitado dinheiro público e tinha diversas possibilidades. Passou sete anos debruçado sobre o tema.
Mesmo não tendo a pretensão de dar respostas definitivas, o livro é um excelente começo para os governos progressistas, que têm se omitido ou falhado na busca de garantir a segurança e os direitos da população, sem atentar contra o Estado de direito e a democracia. Os governos federais progressistas, em vez de liderar o debate e direcionar as políticas bem-sucedidas, por enquanto, vêm lavando as mãos e evitando debater com a direita populista.
*Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Publicado originalmente no Jornal da USP.
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