Realismo jurídico contra o opressor

Kazimir Malevich, Cabeça de um Camponês.
image_pdf

Por ARI MARCELO SOLON*

Comentário sobre livros de Tommaso Gazzolo

Qual é o melhor método jurídico para derrotar o opressor? Semana passada, quinta-feira à noite, na aula de Jewish Law, apresentei o livro de Tommaso Gazzolo.

Moisés pede a Deus: “quero saber como meus filhos interpretam as coroas místicas junto da revelação da Torá”. Com isso, percebe-se que Moisés não entende nada da lei como interpretação.

Com base nisso, Tommaso Gazzolo articula as raízes místicas e haláchicas do pensamento do comercialista Tullio Ascarelli. Se pudéssemos resumir em uma linha o pensamento de Ascarelli, seria: “a lei é a interpretação”. Eu esperei que a gênese jusfilosófica do caso jurídico iria prolongar a fusão entre hermenêutica e realismo jurídico, afinal, Jewish Law é um exemplo de realismo jurídico: “pela maioria vocês decidem”.

Interessado nessa leitura de Gazzolo, percebi que o autor, como eu, tem interesses comuns: Kelsen, Heidegger e o mundo operário. E, das coroas místicas, o autor fundamentou esta lei como hermenêutica com Gershom Scholem, a lei hebraica e sua interpretação com Benjamin, com Levinas, e mais vários trechos do Talmud que inspiraram Ascarelli, como o famoso caso do forno do Achnai, em que se diz que a lei não está no céu, a lei está na terra.

Então passei para a leitura do segundo livro. Qual foi a minha decepção inicial?

Nada de Ascarelli, nada de coroas místicas, só o realismo mais radical da escola de Genova.

Até interpretação/direito jurisprudencial é separado da hermenêutica. Ou seja, no embate entre filosofia analítica contra hermenêutica jurídica, quem ganha é a primeira.

Onde está Gadamer? Onde está Heidegger? Nada.

Isso me fez lembrar o embate violento que tive com o grande jurista da escola de Genova, Guastini. Também sou a favor do realismo jurídico. E, também, se bem que hereticamente, sou a favor de Kelsen, mas separo o realismo do positivismo. Nesse sentido: “O ponto de vista do professor Solon é claramente normativo. O não cognitivismo ético não suscita nenhuma teoria da interpretação jurídica, nem descritiva nem normativa. É uma posição que lida com o status lógico dos julgamentos morais e, como tal, não tem nenhuma implicação normativa. Refere-se à ética, não ao direito, muito menos à interpretação jurídica. O realismo jurídico pretende ser uma simples moldura para descrever a práxis jurídica atual. Não há nenhum lugar no realismo jurídico para afirmar o que os juízes ou intérpretes do direito devem fazer” (GUASTINI, 2014, p. 53-54).

Justamente, encantam-me em Kelsen as “derrapadas” cognitivistas do autor, porque defende, sem assim o querer, o socialismo revolucionário jurídico.

Este livro da escola genovesa não combate menos a opressão do que eu, mas a estratégia é outra: é enfatizar o não-cognitivismo dos nossos heróis, Kelsen, Ross e outros realistas.

Como defender o mundo operário com este silêncio ético? Como chegar ao fim da história revolucionária sem buscar os caminhos alternativos da criação do Direito? Se os genoveses descobriram a América, também tem um bom método para combater o jusnaturalismo católico conservador.

Sair do terreno valorativo e ficar apenas no terreno estritamente metodológico. Solapar o solo pantanoso do direito natural católico sem combatê-lo explicitamente, de fronte. Eu acho um erro.

Como Wittgenstein disse, os positivistas não veem que o direito é magia. Mas, afinal, quem não acredita na mística das coroas, da lei? Quem não acredita que existam letras brancas da lei ocultas sob as letras pretas, e apenas essas letras ocultas servem para defender os oprimidos?

Ficar mesmo no terreno universal do positivismo, esconder a ética, derrotar o inimigo reacionário e conservador no plano da metodologia.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

Referências


GAZZOLO, Tommaso. Il caso giuridico: una ricostruzione giufilosofica. Torino: Giappichelli, 2018.

GAZZOLO, Tommaso. Una doppia appartenenza. Tullio Ascarelli e la legge come interpretazione. Pisa: Pacini Giuridica, 2019.

GUASTINI, Riccardo. A (Short) Commentary to the Commentary. RBF, ano 62, v. 240, jan./jun. 2013.

GUASTINI, Riccardo. LA SEMANTICA DEL DISSENSO E I DIRITTI COSTITUZIONALI. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano: Giuffrè Editore, anno LIX, fasc. 2, 2016. p. 859-866.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES