O cruel e inumano

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Por KATIA SANTOS*

A crueldade de Bolsonaro ensina, do modo mais doloroso, que não se pode dar poder político a pessoas que não têm compaixão

Em 22 de fevereiro, Marilena Chauí proferiu uma bela palestra de abertura no Segundo Congresso Virtual da UFBA, publicada depois no A Terra é Redonda com o título “O lugar da universidade brasileira”. Chauí reflete, de modo muito interessante, com base nas ideias de Montaigne e de La Boétie, sobre as relações entre a crueldade e a covardia. Ela argumenta que, no fundamento da crueldade, está o medo do outro, o qual, sendo visto pelo covarde como superior a si, deve ser eliminado nos âmbitos físico, moral, psicológico e político com o máximo de impiedade. O cruel representa perante os outros o papel de um indivíduo corajoso, ostentando uma força que não tem e, portanto, mentindo com relação ao que verdadeiramente sente, que é temor e fraqueza. Chauí extrai relevantes e importantes conclusões dessa noção de crueldade, e do fato de termos um presidente cruel e colérico no poder, com relação à nossa sociedade. Ela remete ao dito “E daí? Não sou coveiro” do presidente, à “vacina de vento”, ao ódio ao pensamento, à reflexão, à crítica e à universidade como sendo manifestações distintas do mesmo fenômeno, a crueldade, que se manifesta através de variadas covardias.

A palestra de Chauí “dá a pensar”, que é justamente uma das marcas mais importantes da pesquisa, como ela aponta, e eu gostaria de apresentar as reflexões que ela me suscitou. Creio que seja bem caracterizada a nossa sociedade como tirânica, como sendo pautada, de modo geral, não por relações entre pessoas iguais que possuem os mesmos direitos, mas sim por relações de mando e obediência em que todos aceitam servir, desde que esteja no horizonte, ainda que apenas virtualmente, virem a ser servidos um dia. Aqueles que estão no topo da cadeia de mando creem ter todo o direito de serem cruéis, e os que lhes estão abaixo aceitam os abusos como normais. A crueldade e a covardia, então, perpassam essa sociedade violenta e hierarquizada. Há, não obstante, um outro aspecto relativo à crueldade que eu gostaria de explorar, pois me parece contribuir para compreendê-la, bem como para compor nosso quadro social, no qual ela tem um papel importante. Esta abordagem não está em contradição com a exposição de Chauí, mas, tomando a crueldade por uma perspectiva metafísica, permite-nos ponderar sobre essas questões por um ângulo diferente, que acaba também tendo consequências sociais e políticas.

Assim como a palestra de Chauí, estas reflexões terão como emblema um ato cruel de Bolsonaro. Na sua “live” de 18 de março passado, ele imitou os sons de uma pessoa com falta de ar, debochando de um dos principais sintomas que sente alguém que é acometido de covid-19. Na data de hoje, mais de 290.000 brasileiros e brasileiras já perderam a vida para essa doença, e é absolutamente inacreditável que uma pessoa possa fazer chiste com a insuficiência respiratória, a causa imediata da morte desses milhares de seres humanos. É verdade que muitos se regozijam com o chiste, e sabemos que há uma porcentagem de indivíduos que se alegram com esse homem e mostram seus dentes para tudo o que ele faz. Mas é necessário chamar a atenção para um fato paralelo a esse, a saber, sua atitude é inteiramente repugnante a inúmeras pessoas. A crueldade desse deboche é sentida por outros tantos milhares de brasileiros, que ficam enojados pela completa ausência de compaixão que ele escancara, na medida em que a morte por asfixia, provocada pela infecção por coronavírus, é extremamente estertorante dolorosa. E não apenas para os que morrem, mas também para os que perdem entes queridos dessa forma terrível e para os que sobrevivem com sequelas graves.

Com base na metafísica de Arthur Schopenhauer, podemos compreender a compaixão como o fundamento da conduta moral e a crueldade como seu exato oposto[i]. A imediata contradição com a compaixão é o motivo pelo qual a crueldade nos horroriza e a razão de reputarmos o cruel como inumano. A filosofia schopenhaueriana pretende desvendar o enigma do mundo de um modo imanente a ele, sem apelar para elementos transcendentes, e sua ética se ocupa das condutas de fato existentes. Assim, quando ele se refere à compaixão e à crueldade, não é do devir que se trata, nem de prescrições éticas, mas deste mundo em que vivemos. A compaixão, portanto, é o fundamento da moral e é também real, embora muitas vezes tenha de se enfrentar com o obstáculo do egoísmo cotidiano. Ela representa, nos termos schopenhauerianos, um contrapeso à afirmação da Vontade de Vida, que é um ímpeto cego, sem telos, voraz e autocontraditório, que crava os dentes na própria carne.

A Vontade de Vida é essência metafísica do mundo. Constitui-se de um querer jamais satisfeito, que se manifesta em uma dor jamais curada, a qual os seres humanos irão afirmar ou negar. A afirmação da Vontade é o comportamento no qual, iludidos pelo véu de Māyā, não enxergamos através do principium individuationis, ou tempo e espaço, e consideramos a pluralidade dos indivíduos como essencial e real. O véu de Māyā, impede que se perceba a identidade metafísica de todos os seres e constitui a base do egoísmo, da maldade e, no limite, da crueldade. É uma cegueira quanto à natureza da coisa em si, à raiz de tudo que existe e à semelhança da origem e do destino de todos. Nesse caso, o indivíduo enxerga apenas as aparências, que percebe como múltiplas e diferentes, vendo-se então como essencialmente distinto dos outros e, na maioria das vezes, como portador de mais direitos. Ele busca contentamento, prazeres e bem-estar para si, olhando apenas para suas próprias necessidades, ou, quando muito, para seu círculo próximo. A afirmação da Vontade pode se dar por meio de leves afetos ou paixões violentas, em que os indivíduos vão além da afirmação da própria vontade e chegam à supressão da vontade dos outros.

Essa compreensão de si e do mundo é a base do egoísmo. O egoísta não compreende que sua essência é a mesma dos outros seres da natureza e dos outros seres humanos. Reconhece humanidade e direitos apenas em si mesmo e naqueles que escolhe, sente-se o centro do mundo, o único que deve ter a existência e o bem-estar preservados. O indivíduo egoísta é consciente dos outros de maneira mediata, como algo dependente de seu próprio ser e existência, enquanto percebe a si mesmo como se fosse como o em-si do mundo, a condição complementar do mundo como representação. Caso necessário, aniquilaria qualquer pessoa ou o próprio mundo para salvar-se[ii]. O egoísmo é generalizado e a injustiça é um fenômeno onipresente, no qual se manifesta uma afirmação veemente da Vontade em que uma ação ofende e causa dano à vontade de outrem. É interessante que Schopenhauer reconheça a força do egoísmo e da injustiça, e que por isso considere as éticas do dever apriorísticas, como a kantiana, como pouco efetivas contra um estímulo interno tão poderoso: “O egoísmo é assim a primeira e a mais importante força, embora não a única, que o impulso moral precisa combater. Já se pode ver aqui que este, para se apresentar novamente contra um tal oponente, deve ser algo mais real do que uma sutileza inteligente ou uma bolha de sabão apriorística”[iii].

No entanto, o ser humano é o fenômeno mais aperfeiçoado da Vontade e tem a possibilidade de alcançar um conhecimento mais elevado, isto é, é capaz de enxergar através do véu de Māyā[iv]. Nesse modo de conhecer, o indivíduo olha para seu interior e compreende sua identidade com os outros, reconhece que se trata de uma só Vontade de Vida em tudo o que existe. Então, ele consegue ver através do principium individuationis e entende que tudo tem a mesma essência. Esse conhecimento é a base das virtudes morais, que inibem o egoísmo e a injustiça, nascidos da afirmação da Vontade. Não se trata de um saber teórico, abstrato, para a aquisição do qual se necessite de estudo formal, mas sim de uma visão intuitiva e imediata da identidade metafísica de todas as coisas. Quando esse conhecimento é perfeito, uma visão completamente diáfana através do principium individuationis, o indivíduo é levado ao negar a Vontade e, com isso, chega ao ponto máximo da ética. As pessoas que alcançam esse estágio são raras, mas não são tão raras assim aquelas que sentem compaixão e se inclinam para a justiça e para a caridade[v]. O indivíduo justo, diz Schopenhauer, não busca aumentar seu bem-estar infligindo sofrimento a outros, cometendo crimes ou desrespeitando o direito alheio[vi]. A pessoa caridosa reconhece sua vontade naqueles que sofrem e se identificam com a dor do outro, sentindo-se compelida a ajudar[vii]. Por mais intensos que sejam os impulsos do egoísmo, as ações reais dotadas de valor moral existem e são frequentes, o que mostra que a compaixão é também um sentimento forte e presente. Na verdade, ela enraíza-se na natureza humana, é um fato da consciência e está presente de forma originária e imediata na história[viii].

Na obra Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer afirma que as três principais motivações das ações humanas são a maldade, o egoísmo e a compaixão[ix]. O egoísmo, que age para o seu próprio bem, a maldade, que age para o mal alheio e pode chegar à crueldade, e a compaixão. A maldade e a crueldade estão para além do egoísmo, porque nesse caso sofrimento e o mal dos outros são fins em si. É o mais alto grau de perversidade moral na prática, que acompanha o contentamento ou prazer pelo sofrimento do outro, algo completamente diabólico. “Não há sinal mais infalível de um coração totalmente mau e de profunda indignidade moral do que um traço de pura e genuína alegria com a infelicidade alheia (Schadenfreude).”[x]. As ações dotadas de crueldade são o oposto das ações morais, e mesmo indivíduos maus seriam providos de algum grau de compaixão. Assim, conforme Schopenhauer, sempre esperamos que apelar à compaixão deverá ser infalível, porque acreditamos que ela deve estar presente em todas as pessoas. “Em contrapartida, a quem parece dela carecer, chama-se inumano; assim como ‘humanidade’ é usada frequentemente como sinônimo de compaixão”[xi]. A crueldade repugna, revolta e enoja, justamente porque é o oposto exato da compaixão.

Qual o destino de um país, durante uma pandemia, nas mãos de um governante cruel e que se alegra com a tragédia coletiva? A lista de crimes e crueldades de Bolsonaro não pode ser escrita, porque aumenta a cada dia. Suas ações para inviabilizar o combate ao coronavírus são diligentes, céleres, ágeis e abundantes. Desde o início, reforçando e insistindo no que não resolve, gastando enormes somas de dinheiro público com medicações sem eficácia, minimizando as mortes, menosprezando a gravidade da doença e, ao mesmo tempo, desestimulando o uso de máscaras, desencorajando o lockdown e o afastamento social, rejeitando e ironizando as vacinas. Nem o aumento vertiginoso do número de mortos e o colapso do sistema de saúde do país inteiro foi capaz de levá-lo a rever seu modo de pensar: porque não é um modo de pensar, é um modo de ser. É indiferença total, ausência total de compaixão e crueldade pura contra o povo. O nosso abismo é que o destino do país, num momento crucial como este em que estamos, foi colocado nas mãos de alguém que não se importa absolutamente com a vida.

Bolsonaro se comporta como um personagem de programa de TV, construído como vilão. Não se preocupa se gostamos dele ou não, não se importa sobre o quanto falamos mal, pois sabe que é um papel que representa diante de outros. Mesmo quando investe contra alguém porque o criticou, é apenas de modo performático. O que importa é sua popularidade e por ela ele é capaz de tudo, de qualquer atrocidade: o chiste da falta de ar é um exemplo. Há sempre aqueles que vão ao delírio com suas demonstrações de selvageria, e assim ele alimenta seu personagem e o mantém ativo. Como chegamos a tamanha contradição? Colocamos na presidência da república, o maior cargo do Poder Executivo, ao invés de alguém com um grande espírito público e uma bela visão de futuro para o Brasil, um indivíduo repleto de ódio, de extrema crueldade e que se regozija da morte de milhares de brasileiros. Acredito que a tirania intrínseca à sociedade seja uma boa parte da explicação, mas há também uma questão estética, que é a de estarmos acostumados a essas personagens malignas de novela, meio cômicas, meio trágicas. Bolsonaro tem fãs, os quais esperam que ele os divirta com seus “ditos e feitos”. As coisas que ele diz e faz deveriam escandalizar a um tal grau de veemência que ele fosse defenestrado da presidência imediatamente, mas isso não acontece e, na prática, tudo é relevado. A TV nos amorteceu, e por mais que nos revoltemos, assistimos a seus espetáculos grotescos como quem vê uma novela ruim ou a um programa kitsch de auditório.

No entanto, inumano: não é outro o adjetivo que merece uma pessoa que não tem compaixão por compatriotas mortos asfixiados e faz piada com isso. Que não respeita a dor das famílias que perderam seus parentes. Um presidente da república que não faz nada, pelo contrário, atrapalha o enfrentamento à doença. Que não trabalha para ajudar as famílias pobres, os desempregados, pequenos empresários, trabalhadores informais e todos aqueles que estão precisando de um subsídio financeiro para sobreviver. Que não se preocupa em combater a fome que angustia mais de 10 milhões de pessoas no Brasil, hoje. Que vive de animar sua torcida e seus fãs, na esperança de manter a popularidade para disputar a presidência em 2022. Que, no fim de contas, não pensa no bem do povo, mas abertamente age com crueldade e nem sequer disfarça a satisfação que sente com a carnificina.

“O sentido daquela pergunta é, com certeza, somente este: como é possível ser tão completamente desprovido de compaixão? Assim, é a maior carência de compaixão o que carimba em uma ação a mais profunda torpeza e abominação morais”[xii].

A metafísica schopenhaueriana, ao desvendar a compaixão como algo inerente ao humano, permite que tenhamos um alento e uma esperança, mesmo nesses tempos sombrios em que vivemos. Isso porque ela é radical, originária, não depende de nenhum tipo de incentivo, pressuposto, religião ou conhecimento abstrato. A compaixão mitiga o egoísmo e permite o surgimento da justiça e da caridade, fundamentais na vida em sociedade. Por meio delas, as relações podem se fortalecer e as decisões na esfera pública ser direcionadas para o bem de todos, porque estará sempre claro que o objetivo de todas as instituições sociais, políticas, econômicas, científicas e técnicas é o bem-estar comum daqueles que compartilham a mesma essência: seres humanos, animais e natureza como um todo. Nenhum argumento técnico, econômico ou de natureza supostamente neutra poderá ser superior em força às necessidades do fenômeno da vida humana e animal, que é sempre precária e frágil. Por seu turno, a crueldade que, na figura do presidente da república, ganhou o protagonismo social, está ensinando, do modo mais doloroso possível, que não se pode dar poder político a pessoas que não têm compaixão. O poder nas mãos de um indivíduo cruel será usado para espalhar e multiplicar maldade e crueldade, e quanto maior a responsabilidade do cargo, maior a quantidade de pessoas que as terão de suportar.

*Katia Santos é professora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Referências


CHAUÍ, M. “O lugar da universidade brasileira”. A Terra é Redonda. Publicado em 26/02/2021. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-lugar-da-universidade-brasileira/. Acesso em: 17 mar. 2021.

SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung I. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band I. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015.

_____. Über die Grundlage der Moral. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band III. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012.

Notas


[i] SCHOPENHAUER, A. Über die Grundlage der Moral. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band III. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012, III, §15, p. 766.

[ii] Ibid., III, § 14, p. 727-728.

[iii] Ibid., III, § 14, p. 730. (grifos do autor)

[iv] SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung I. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band I. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015, §56, p. 422-423.

[v] SCHOPENHAUER, A. Über die Grundlage der Moral. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band III. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012, III, §17 e §18.

[vi] SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung I. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band I. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015, §66, p. 504.

[vii] Ibid., §66, p. 507-508.

[viii]SCHOPENHAUER, A. Über die Grundlage der Moral. Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Band III. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012, III, §17, p. 745.

[ix] Ibid., §16, p. 741-742.

[x] Ibid., §14, p. 731.

[xi] Ibid., §17, p. 745.

[xii] Ibid., §19, p. 767.

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