Redes sociais e sofrimento psíquico

Imagem: Kaboompics.com
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Por JOÃO PEDRO MARQUES*

Romper com o ciclo de validação digital implica repensar formas de reconhecimento que não dependam da lógica do mercado

A crise do capitalismo global não se manifesta apenas em reconfigurações econômicas e políticas, mas também nas transformações da subjetividade e da cultura. Em um contexto marcado pela precarização do trabalho e pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação, as redes sociais emergem como espaços centrais para a busca por reconhecimento e pertencimento. No entanto, essa dinâmica não se dá à margem das contradições do capitalismo contemporâneo. Ao contrário, a lógica neoliberal que estrutura essas plataformas reforça a individualização, mercantiliza a identidade e aprofunda desigualdades sociais.

Neste ensaio, investigo como as redes sociais não apenas modulam a percepção do reconhecimento, mas também se tornam um elemento central na organização da vida econômica e subjetiva da classe trabalhadora. Se, por um lado, prometem visibilidade e autonomia, por outro, intensificam formas de exploração e alienação, reforçando a dependência de métricas algorítmicas para a construção da identidade e da própria empregabilidade.

Entre a promessa de reconhecimento e as novas formas de precarização, as redes se tornam arenas de disputa, onde tanto a reprodução da lógica neoliberal quanto formas de resistência e contestação se encontram. Como fio condutor, destaco um trecho da sinopse da HQ “O grande vazio”, da francesa Léa Murawiec, que apresenta um mundo no qual as pessoas desaparecem ao serem esquecidas – ou melhor, ao perderem o reconhecimento social.

“Neste mundo, se as pessoas não pensam mais em você, você morre, simples assim. Pensar em alguém é dar-lhe presença. Nessa cidade colossal, o horizonte é bloqueado por milhares de nomes, e tudo o que os mendigos pedem é um segundo de atenção. Sobreviver para alguns, tornar-se Imortal para outros – é a Presença que faz essa cidade girar. Manel adoraria virar as costas para tudo isso; mas lá, além dos arranha-céus, há apenas o grande vazio, de onde ninguém jamais voltou”.

Na HQ de Léa Murawiec, a existência de um indivíduo depende diretamente da atenção que recebe dos outros. Se ninguém mais pensar em você, você desaparece. A premissa, embora fantástica, ilustra uma angústia profundamente humana, isto é, a necessidade de ser reconhecido. Pertencer a um grupo, validar-se diante de si mesmo e ser validado pelos outros são processos centrais na construção da identidade.

A busca por pertencimento não é um desejo isolado, mas uma necessidade estrutural. Desde o nascimento, somos inseridos em ambientes que moldam nossa percepção sobre quem somos e qual é o nosso lugar no mundo. A psicanálise freudiana nos ensina que o primeiro grande espelho da identidade é o olhar do outro – inicialmente, a mãe ou o cuidador. É por meio desse olhar que a criança começa a compreender sua própria existência. Mais tarde, esse processo se estende para a sociedade, onde grupos e instituições assumem esse papel de espelho.

Na HQ, acompanhamos Manel Naher, uma jovem que vê sua existência ameaçada ao descobrir que outra pessoa com o mesmo nome – uma cantora famosa – passa a monopolizar a atenção pública. Como todos associam “Manel Naher” à celebridade, a protagonista começa a desaparecer. Essa premissa ressoa com a ideia de Axel Honneth sobre a luta por reconhecimento: a identidade de um sujeito se constrói na interação social, e a negação desse reconhecimento equivale à anulação de sua existência simbólica.

A busca por reconhecimento é uma preocupação fundamental da existência humana, podendo ser analisada sob diferentes perspectivas. Na sociedade capitalista, por exemplo, o consumo surge como uma das formas mais acessíveis de validação social. Não se trata apenas de ostentação ou fetichismo da mercadoria no sentido marxiano, mas de um mecanismo pelo qual indivíduos afirmam sua presença e pertencimento em um mundo onde ser visto é essencial.

Axel Honneth, ao elaborar sua teoria do reconhecimento, mostra como essa necessidade se manifesta em diferentes níveis. No plano afetivo, buscamos reconhecimento no amor e na amizade. No plano jurídico, queremos ser tratados como sujeitos de direitos. No plano social, ansiamos por respeito e valorização por nossas contribuições. A ausência de qualquer um desses reconhecimentos pode gerar angústia e conflito, pois coloca em xeque nosso senso de pertencimento.

O filósofo Charles Taylor aprofunda essa questão ao discutir a “política do reconhecimento”. Para ele, a identidade não se constrói apenas internamente; ela é moldada pela interação com os outros. Quando um grupo ou indivíduo é sistematicamente ignorado ou desvalorizado, sua própria identidade pode ser fragilizada. Isso explica a centralidade dos movimentos sociais que reivindicam visibilidade e respeito.

A necessidade de validação, no entanto, não se limita a grandes lutas sociais. No cotidiano, cada postagem em redes sociais, cada escolha de vestimenta, cada palavra dita em público carrega uma tentativa – consciente ou não – de afirmar um lugar no mundo. A era digital potencializou essa dinâmica, tornando o reconhecimento um bem escasso e intensificando a angústia da invisibilidade.

A busca por pertencimento e validação, encontra nas redes sociais um novo campo de disputa. O desejo de ser reconhecido não é um fenômeno novo, mas sua mediação por algoritmos e métricas de engajamento altera profundamente as formas pelas quais ele se manifesta. No entanto, essa dinâmica não pode ser compreendida isoladamente. Ela está inserida em um contexto histórico e econômico mais amplo, marcado pelo avanço do neoliberalismo, pela fragmentação dos laços comunitários e pela imposição de uma lógica individualizante e competitiva que redefine a subjetividade contemporânea. A relação entre pertencimento, redes sociais e adoecimento mental não pode ser dissociada das estruturas materiais que sustentam a sociedade capitalista.

O impacto do capitalismo sobre a saúde mental tem sido amplamente debatido por pensadores e críticos da sociedade contemporânea. A mercantilização da vida, característica central desse sistema, transforma todas as esferas da existência em bens consumíveis e mensuráveis. Isso inclui não apenas o trabalho, mas também a subjetividade, a sociabilidade e a própria identidade.

Byung-Chul Han, em A sociedade do cansaço, argumenta que a transição do capitalismo disciplinar, descrito por Foucault, para o capitalismo de desempenho impôs um novo regime de controle subjetivo. Se antes a sociedade era estruturada em torno da disciplina, da vigilância e da repressão externa, agora a dominação se dá pela internalização de exigências de produtividade, desempenho e autoaperfeiçoamento contínuo.

O sujeito contemporâneo não é mais coagido por uma autoridade externa, mas se autoexplora voluntariamente, convertendo-se em empresário de si mesmo. A busca por pertencimento nas redes sociais está diretamente inserida nesse processo: a necessidade de validação constante transforma a própria identidade em um produto a ser vendido e consumido no mercado digital. Assim, a alienação, um conceito central na tradição marxiana, assume novas formas na era digital. Se, no capitalismo industrial, a alienação se manifestava principalmente na separação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho, no capitalismo contemporâneo, essa dinâmica se aprofunda à medida que a própria subjetividade se torna mercadoria.

Byung-Chul argumenta que vivemos sob um regime de autoexploração, onde o sujeito neoliberal não é apenas o explorado, mas também o agente de sua própria exploração. Esse fenômeno se expressa na necessidade incessante de validação digital, na qual o indivíduo passa a se perceber não como um ser autônomo, mas como um perfil, uma marca pessoal que precisa ser constantemente otimizada para gerar engajamento.

Essa lógica se desdobra em um processo de alienação subjetiva: os indivíduos deixam de se relacionar com os outros de maneira autêntica e passam a se enxergar através da lente do reconhecimento digital. A busca por curtidas, compartilhamentos e comentários transforma a sociabilidade em um campo de competição e comparação, aprofundando a sensação de inadequação e esvaziando a experiência do pertencimento.

Além disso, essa alienação não se restringe ao ambiente virtual, mas reverbera na vida offline. A constante necessidade de performar e se ajustar aos padrões de visibilidade das redes sociais cria uma fragmentação interna, na qual os indivíduos oscilam entre a ansiedade de serem vistos e o medo do julgamento público. Paradoxalmente, quanto mais buscamos reconhecimento dentro dessa estrutura, mais nos distanciamos de nós mesmos e das formas genuínas de conexão interpessoal. O pertencimento, ao invés de ser um vínculo real, torna-se uma métrica, mensurada em números que jamais são suficientes para preencher o vazio produzido por essa lógica. Portanto, a alienação digital não é apenas um efeito colateral do uso das redes, mas um mecanismo estrutural do capitalismo contemporâneo.

Mark Fisher, em Realismo capitalista, reforça essa ideia ao argumentar que o neoliberalismo destruiu a crença na possibilidade de alternativas ao sistema vigente. O resultado é um estado de exaustão psicológica coletiva, onde o aumento exponencial de transtornos mentais – depressão, ansiedade, síndrome do pânico – não é uma anomalia, mas uma característica estrutural do capitalismo tardio. As redes sociais, em vez de oferecerem um espaço de pertencimento genuíno, intensificam esse processo ao submeter as relações sociais a uma lógica de performance e avaliação quantitativa.

O neoliberalismo não apenas impõe novas formas de exploração, mas também desmantela as bases da solidariedade social. A ideologia neoliberal se sustenta na destruição de formas coletivas de organização e na imposição de uma lógica de hiperindividualização. Como argumenta David Harvey em Uma breve história do neoliberalismo, o projeto neoliberal não se resume a reformas econômicas, mas busca transformar a própria subjetividade, promovendo uma cultura do individualismo extremo e da competição desenfreada.

Essa fragmentação tem consequências diretas na forma como as pessoas constroem seus laços sociais. Comunidades tradicionais, espaços de convivência coletiva e redes de apoio são progressivamente substituídos por interações mediadas por plataformas digitais, que reduzem a sociabilidade a trocas superficiais e efêmeras. Se antes o pertencimento era forjado em relações concretas e interações diretas, hoje ele depende da visibilidade e do engajamento nas redes.

A quebra dos laços comunitários não é um efeito colateral do neoliberalismo, mas um de seus pilares fundamentais. Como aponta Wendy Brown em Nas ruínas do neoliberalismo, a destruição do senso de coletividade enfraquece a capacidade de resistência política e social, tornando os indivíduos mais vulneráveis à exploração. Esse isolamento se manifesta no aumento dos transtornos psíquicos e na crescente dependência das redes sociais como espaços de reconhecimento e validação.

Outro dos aspectos centrais do neoliberalismo é a individualização do corpo social, ou seja, a transformação de questões coletivas em responsabilidades estritamente individuais. O desemprego, a precarização do trabalho, a crise habitacional e os transtornos mentais são tratados não como problemas estruturais, mas como falhas individuais. Essa lógica, descrita por Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo, sustenta-se na ideia de que cada indivíduo é o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso, desconsiderando completamente as condições materiais que determinam essas trajetórias.

Nas redes sociais, essa individualização se manifesta na exigência de constante autoaperfeiçoamento e curadoria da própria imagem. A identidade se torna um projeto interminável de otimização, onde cada sujeito deve construir e vender sua própria marca pessoal. Esse processo gera uma sensação permanente de insuficiência, pois a comparação com os outros é inevitável e a validação nunca é definitiva.

O resultado é um ciclo interminável de autoexploração e frustração. A validação momentânea proporcionada pelas redes sociais oferece um alívio temporário, mas nunca satisfaz completamente. A necessidade de reconhecimento se torna um vício, reforçando a lógica da precarização subjetiva. Como adverte Christian Dunker em Mal-estar, sofrimento e sintoma, essa dinâmica leva a uma forma de sofrimento psíquico caracterizada pelo esgotamento emocional e pela sensação de isolamento, mesmo em meio à hiperconectividade.

Logo, se o pertencimento é mediado pela lógica do mercado, a competitividade se torna um aspecto central da sociabilidade contemporânea. O neoliberalismo não apenas incentiva a competição, mas a torna o princípio organizador da vida social. A busca por reconhecimento, antes baseada em relações de reciprocidade e troca simbólica, se transforma em um jogo de soma zero, onde a ascensão de um implica necessariamente na exclusão de outro.

Nas redes sociais, essa lógica se manifesta na cultura da performance e da viralização. O sucesso não depende apenas do mérito, mas da capacidade de se destacar em um ambiente saturado de estímulos. Como argumenta Maurizio Lazzarato em O capitalismo cognitivo, a atenção se torna um recurso escasso e disputado, criando um mercado onde cada indivíduo deve lutar incessantemente por visibilidade. Essa disputa constante gera um ambiente de hostilidade e ressentimento, onde o outro é visto não como um parceiro de interação, mas como um concorrente que ameaça sua relevância.

Esse processo também afeta os movimentos sociais e as lutas identitárias. Se, por um lado, as redes sociais oferecem uma plataforma para reivindicações políticas, por outro, elas tendem a transformar a militância em um espetáculo, onde a legitimação depende do engajamento digital. O resultado é a fragmentação da luta coletiva, substituída por disputas internas por reconhecimento e prestígio. Como alerta Nancy Fraser em Fortunes of feminism, o neoliberalismo cooptou as pautas identitárias, esvaziando seu potencial transformador e reduzindo-as a demandas individuais de representatividade.

Assim – retornando à nossa HQ – a existência de um indivíduo, depende diretamente do olhar do outro. Se ninguém pensa em você, você desaparece. Essa ideia, que poderia parecer absurda em outros tempos, como vimos, encontra uma ressonância inquietante na era das redes sociais, onde a visibilidade se torna um critério de existência e o reconhecimento se transforma em um jogo de métricas, algoritmos e representações filtradas.

O pertencimento, antes construído em espaços físicos e relações concretas, torna-se mediado por telas. Redes sociais como Instagram, TikTok e Twitter (X) operam como arenas onde indivíduos buscam validação e reconhecimento. A interação social, antes restrita a círculos mais delimitados, expande-se para um público vasto e abstrato. O “outro” que reconhece ou ignora deixa de ser uma figura específica e se transforma em um conjunto difuso de seguidores, curtidas e compartilhamentos.

Se antes o reconhecimento era um processo relacional, agora ele passa a ser, muitas vezes, performático. A validação não depende apenas de um círculo social próximo, mas de um algoritmo que decide quem será visto e quem permanecerá invisível. A identidade se molda em função do que gera engajamento. Para ser notado, é preciso adaptar-se às exigências da plataforma, produzindo versões de si mesmo que maximizem alcance e aprovação.

Essa nova forma de busca por reconhecimento gera um paradoxo. Se, por um lado, as redes sociais oferecem visibilidade para grupos historicamente silenciados, por outro, criam novas formas de exclusão e ansiedade. A luta por reconhecimento se dá em um espaço que premia a hipervisibilidade, mas pune a divergência. O que não viraliza, muitas vezes, é descartado. Isso se traduz na pressão por uma representação que seja, ao mesmo tempo, autêntica e palatável ao público. As redes incentivam a criação de marcas pessoais, transformando a subjetividade em um produto a ser consumido.

Além disso, a lógica da gamificação da interação – onde curtidas, compartilhamentos e seguidores funcionam como indicadores de valor social – intensifica o sentimento de inadequação. O pertencimento torna-se frágil, condicionado a um fluxo constante de validação. A ausência de engajamento equivale à invisibilidade, ao esquecimento, à exclusão. Como na narrativa de O grande vazio, há o medo de desaparecer se ninguém estiver olhando.

Retomemos Axel Honneth, cuja teoria do reconhecimento se inspira na dialética do senhor e do escravo, presente na Fenomenologia do espírito de Hegel. Segundo essa dialética, o senhor busca sua identidade por meio da dominação, enquanto o escravo, ao se submeter, desenvolve uma consciência própria e se emancipa através do trabalho. Hegel argumenta que o verdadeiro reconhecimento só ocorre de forma recíproca: sem esse reconhecimento mútuo, a relação se mantém desigual e conflitante.

No entanto, essa busca por validação pode se tornar uma armadilha. Asad Haider, em Armadilha da identidade, argumenta que, quando o reconhecimento se torna um fim em si mesmo, ele pode levar à fragmentação e à coação de identidades fixas. Se a identidade passa a ser definida exclusivamente pelo olhar do outro, há o risco de se perder a autonomia na construção do próprio eu.

Asad Haider argumenta que a ênfase excessiva em identidades fixas pode fragmentar os movimentos políticos e desviar o foco das estruturas de poder e exploração econômica. Em outras palavras, quando a luta pelo reconhecimento se dá de maneira isolada e individualista, ela pode ser cooptada por instituições que reforçam desigualdades em vez de superá-las.

A questão central, então, é como equilibrar o desejo de pertencimento com a necessidade de uma autovalidação genuína. Afinal, a identidade se constrói na tensão entre o espelho interno e o olhar externo. Se ninguém pode existir plenamente sem o reconhecimento do outro, também é verdade que nenhuma validação externa será suficiente se não houver um senso interno de valor próprio.

Essa crítica dialoga diretamente com a HQ de Murawiec. Em O grande vazio, a identidade é tratada como um bem escasso: apenas uma Manel Naher pode ser lembrada, enquanto a outra desaparece. Esse cenário espelha a lógica da competição individualista, onde o reconhecimento não é um processo coletivo, mas um privilégio conquistado por aqueles que conseguem monopolizar a atenção.

Contudo, o desafio está em evitar que essa luta se restrinja à validação individual, desconsiderando as relações estruturais que perpetuam a exclusão. A crítica de Haider nos lembra que a identidade não deve ser uma armadilha que nos isola, mas um ponto de partida para construções coletivas.

Diante desse cenário, é necessário repensar o papel das redes sociais na construção da identidade e do pertencimento. É possível utilizá-las como ferramentas de reconhecimento sem cair na armadilha da validação vazia? Como criar espaços que valorizem a existência para além dos números?

Em última instância, a luta por reconhecimento é, simultaneamente, a luta pela memória e pela permanência na história. Afinal, se ser lembrado significa existir, garantir o reconhecimento de todas as identidades é também garantir que suas histórias jamais se percam. Nesse sentido, o desafio contemporâneo é encontrar formas de pertencimento que não aprisionem, mas que fortaleçam.

Se o capitalismo digital sequestra o pertencimento ao transformar o reconhecimento em uma mercadoria, é necessário investigar as formas de resistência que emergem contra essa lógica. Uma delas é a criação de comunidades offline, que buscam recuperar o sentido de vínculo social fora das plataformas digitais. Grupos culturais, coletivos de bairro e movimentos sociais desempenham um papel fundamental na reconfiguração do pertencimento, pois oferecem espaços de troca que não dependem da mediação algorítmica.

Nancy Fraser argumenta que a luta por reconhecimento não pode ser dissociada da luta por redistribuição, e essas experiências comunitárias muitas vezes estão atreladas a reivindicações concretas por direitos e justiça social. Ao reduzir a dependência das plataformas, os indivíduos podem reconstruir relações baseadas na presença real, resgatando a qualidade da interação humana.

Essas estratégias demonstram que a alienação e a precarização das relações sociais não são fatalidades inescapáveis. Há brechas no sistema que permitem a reconstrução de vínculos genuínos e a ressignificação do reconhecimento. Para além da lógica da validação digital, a resistência se concretiza na retomada de espaços coletivos onde o pertencimento é vivido de forma concreta e solidária.

Ao longo da história, diferentes grupos sociais buscaram formas de afirmar sua identidade e conquistar visibilidade em sociedades estruturadas por relações de dominação. No século XIX, o movimento operário lutava pelo reconhecimento da classe trabalhadora como sujeito político, reivindicando direitos que iam além da mera existência econômica dos trabalhadores. No século XX, os movimentos feministas e antirracistas ampliaram essa luta, articulando o reconhecimento com demandas por redistribuição de poder e recursos. Hoje, na era digital, essa disputa assume novas configurações, onde a visibilidade nas redes sociais se torna um campo de batalha para a afirmação de identidades, mas também um espaço de controle e exploração.

Ao historicizar essa questão, podemos compreender que o reconhecimento não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de transformação social. Logo, é fundamental pensar em novas formas de pertencimento que escapem da lógica da mercantilização da identidade. Isso envolve fortalecer espaços coletivos onde o reconhecimento não esteja subordinado à lógica do mercado, resgatando a experiência do encontro como base da construção do vínculo social.

Assim, a luta por pertencimento e validação nas redes sociais é um reflexo das dinâmicas mais amplas do capitalismo neoliberal, que impõe um modelo de sociabilidade baseado na hiperindividualização, na mercantilização da subjetividade e na competitividade desenfreada. A precarização dos laços sociais, o adoecimento mental e a transformação da identidade em mercadoria são sintomas de um sistema que reduz a existência humana a uma constante busca por aprovação e desempenho.

Diante desse cenário, o enfrentamento passa pela reconstrução de vínculos comunitários e pela recusa da lógica da autoexploração. Romper com o ciclo de validação digital implica repensar formas de reconhecimento que não dependam da lógica do mercado e resgatar espaços de pertencimento que valorizem a experiência humana para além dos números e algoritmos. A transformação da sociedade não virá das redes, mas da reconstrução das bases materiais que sustentam a vida coletiva. Se a existência é, de fato, um jogo entre ser visto e ver a si mesmo, talvez o caminho esteja em ampliar os espelhos e diversificar os olhares – garantindo que ninguém desapareça no Grande Vazio.

*João Pedro Marques é graduando em Ciências Sociais na UFRJ.

Referências


BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia, 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

FISHER, Mark. Realismo capitalista: não há alternativa? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

FRASER, Nancy. Fortunes of feminism: from state-managed capitalism to neoliberal crisis. London: Verso Books, 2013.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

HAIDER, Asad. Mistaken identity: race and class in the age of Trump. London: Verso Books, 2018.

HARVEY, David. Uma breve história do neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2008.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003.

LAZZARATO, Maurizio. O capitalismo cognitivo: saber, cultura e valor na época da economia pós-fordista. Lisboa: Edições Pedago, 2001.

MURAWIEC, Léa. O Grande Vazio. São Paulo: Mino, 2022.

TAYLOR, Charles. Multiculturalismo e a política do reconhecimento. Rio de Janeiro: Record, 1998.


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