Reforma do ensino médio

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Por CARMEN SYLVIA VIDIGAL MORAES*

A Educação não é apenas preparação para operar no mundo. Mas também para operar o mundo. O que é algo muito mais complexo e exigente

“Nenhum determinismo ideológico pode aventurar-se a prever o futuro, mas parece muito evidente que ele está marcado pelos signos opostos do apartheid ou da revolução social (Francisco de Oliveira).

O objetivo destas reflexões consiste em contribuir para a análise das políticas públicas de educação, em particular da Reforma e BNCC do Ensino Médio, a partir das contribuições do pensamento de Antônio Gramsci.1

É importante, em primeiro lugar, assinalar que em Gramsci, assim como na sociologia crítica da educação iniciada nos anos 1960 – “da qual os Cadernos do Cárcere consistem em antecipação notável de um programa de análise” (Frandji, 2015, p. 44) –, a “relação pedagógica”, em particular na sua forma escolar, constitui um lugar e uma prática de exercício do “poder”. Em segundo lugar, o exame dos avanços teóricos proporcionados pelas reflexões gramscianas significa, como veremos, defrontar-se ao mesmo tempo com alguns modos de apropriação e usos de suas concepções na análise das relações entre estruturas de dominação e práticas culturais e educacionais nos processos de reprodução social.

No trabalho de Gramsci, educação ou “relação pedagógica”, conforme ele a designa em sentido amplo, não se reduz à educação escolar. A apreensão das concepções gramscianas sobre educação e suas amplas implicações requer um estudo completo da produção do autor, dos escritos jornalísticos e políticos anteriores à prisão (1910-1926), das Cartas do cárcere e, fundamentalmente, de todo o corpus dos Cadernos (1929- 1935). Os questionamentos sobre a educação são indissociáveis de seu projeto global, do problema da hegemonia, da cultura, dos intelectuais, do Estado, das classes subalternas.

Na concepção de Gramsci, a educação expressa as relações fundamentais da hegemonia, mas nem a complexidade da hegemonia ou o significado da educação podem ser entendidos pela apreensão da educação apenas em termos escolares (Buttigieg, 2003, p.47). Se no quadro de sua reflexão, os dois temas – educação e hegemonia – são introduzidos juntos, a hegemonia, conceito relacional, é utilizado na dialética marxista de Gramsci para indicar as formas sociais de exercício da dominação pelas classes dominantes – hegemonia burguesa, sempre inconclusa – em relação permanente e contraditória com práticas sociais que se opõem a ela, no processo de construção de uma nova hegemonia pelas classes subalternas. O conceito de hegemonia permite pensar não apenas na dominação de certos grupos hegemônicos sobre outros, mas, sobretudo, “reescrever essas relações de poder em uma concepção de mudança histórica” (Rebuccini, 2015, p. 93). A ênfase sobre a concepção de mudança histórica, aspecto fundamental de seu método, permite que se reflita sobre estratégias de transformação social, e que não se restrinja a análise unicamente à crítica da reprodução social (Rebuccini, op. cit).

Nessa direção, outra formulação está enunciada: a escola como uma das organizações da hegemonia, estabelece relações complementares com as iniciativas de uma ampla rede de instituições sociais, culturais e políticas, os “sistemas ou aparelhos de hegemonia”: sindicatos, partidos políticos, igrejas, associações culturais, a imprensa, o rádio, a literatura, bibliotecas, teatro, etc. que difundem a concepção do mundo, os valores dominantes, mas se constituem ao mesmo tempo em espaço de conflito, de luta entre práticas sociais divergentes, entre interesses opostos representativos dos diferentes setores da sociedade.

Como questão de método e em consonância com os “cânones” teóricos do materialismo histórico/filosofia da práxis, a elaboração conceitual de Gramsci desenvolve-se nos quadros da análise da realidade social concreta em seu movimento histórico. O comportamento concreto da hegemonia depende, para Gramsci, das circunstâncias históricas sobre as quais ela está destinada a operar e modificar. O que significa um trabalho de problematização/ adaptação teórica e política das categorias analíticas gramscianas, pensadas a partir da realidade italiana no contexto das sociedades contemporâneas de massas, no estudo de novas configurações e conjunturas histórico-sociais. Exercício que mobiliza duas questões interligadas e centrais para Grasmci: aquele da tradutibilidade (CC11, X) e o da “ligação entre a análise científica e a pesquisa de uma estratégia política” (Rebuccini, 2015, p. 86).

É nessa perspectiva que as reflexões gramscianas mostram-se estimulantes e podem contribuir para uma leitura fértil da realidade educacional brasileira e da forma a ser assumida pela ação política, hoje.

 

A contra-reforma neoliberal na educação

De forma fortemente regressiva, o neoliberalismo investiu globalmente – como podemos verificar nos diferentes Relatórios que acompanham o planejamento educacional nos EUA, desde a era Reagan, passando pelo Livro Branco da União Europeia, e pelos Diagnósticos e orientações dos organismos multilaterais – BM, BID, OCDE, OMC etc – no rompimento, mais ou menos declarado, com o processo de universalização da educação como direito , na destruição da escola de ensino médio, de tronco longo, comum a toda a população, escola que se consolidara no período pós-guerra mundial. Isto é, rompimento com o processo de democratização da educação, de universalização do conhecimento.

No Brasil, as medidas atuais no campo educacional – Base Nacional Curricular Comum/BNCC e Reforma do Ensino Médio ( Lei . 13.415/2017), Diretrizes Curriculares para a Educação Técnica e Tecnológica e suas formas de implementação no país – são inseparáveis das políticas econômicas de contingenciamento de gastos, das reformas trabalhista e na previdência, dos ataques ao Fundeb.2

A reforma ou contra-reforma é parte integrante de um amplo projeto de vida e sociedade do capitalismo em crise, e surge, portanto, em um momento de desmanche radical das conquistas sociais, de desconstrução de um longo ciclo de expansão dos direitos e de consolidação do legado trabalhista, de instalação de uma cidadania salarial no país. Em nosso país, o enorme desemprego, a flexibilização, a informalização e precarização do trabalho têm redefinido as bases sociais das classes trabalhadoras, afetando de forma singular o futuro de amplos setores das juventudes trabalhadoras.

De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística /IBGE, entre 2003 e 2020 o país registrou sua maior população com idade entre 15 e 29 anos em números absolutos, cerca de 50 milhões de pessoas, equivalente a ¼ da população nacional. Nesse mesmo período, o percentual de jovens desempregados também é recorde: 41, 88% entre indivíduos de 14 a 17 anos e 26, 8% entre os que têm de 18 a 24 anos, em 2021.

Conforme o IBGE, no que se refere à escolaridade, 28, 6% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos estão fora da dessa etapa de ensino médio (1 milhão de jovens dessa faixa etária permanece sem qualquer vínculo escolar e 2 milhões aproximadamente estão ainda no ensino fundamental).

De modo paralelo e complementar, as políticas de empobrecimento do Estado e o questionamento dos serviços públicos pela “Nova Gestão Pública” enfraqueceram os sistemas educativos no mesmo momento em que estes se abriam para a escolarização dos jovens dos meios populares. A política do atual governo não é sensível às comparações internacionais indicativas de que países nórdicos como a Finlândia, bem como outros países, “com setor público extenso e elevada taxa de impostos, podem ser altamente competitivos” (ANTIKAINEN, 2008, p. 42). Sua opção é a de sujeitar-se às agendas educacionais, econômicas e políticas dominantes da globalização, um projeto de integração econômica que vem reforçar a segregação e a marginalização social (MORAES, 2017).

Tal como ocorreu na Inglaterra, por exemplo, a Reforma e a BNCC do Ensino Médio determinam o estabelecimento de um currículo mínimo no ensino médio baseado no modelo das competências, cujas disciplinas, como definido pela OCDE, respondem aos interesses declarados do mercado globalizado e flexível, impedindo o exercício do direito ao conhecimento propiciado pela educação de base, comum a todos, universalizada.

Ao mesmo tempo, destrói-se o ensino técnico profissional público de qualidade substituindo-o por uma formação profissional, com organização flexível, fragmentada e modular, retirando-lhe a forma escolar e moldando-a como formação continuada, de modo a facilitar sua oferta por “organizações empregadoras”, ou por “outras instituições, nacionais ou estrangeiras” (conforme art. 14 e 17 da Resolução que modifica a DCN do EM).

Ou seja, para permitir sua terceirização a ongs, empresas educacionais e associações empresariais, a ampliação do mercado educacional, o que será também garantido pela de possibilidade de 40% do conteúdo curricular do EM (80% no caso da modalidade EJA) seja dado na forma de EAD. Associam-se a essas medidas, direta ou indiretamente decorrentes da Reforma do Ensino Médio, a disseminação de escolas denominadas de tempo integral, em São Paulo, as políticas de desestruturação da oferta dos cursos de educação de jovens e adultos/EJA e de extinção dos cursos noturnos, exacerbando a exclusão educacional e a desigualdade social.

A atribuição social da escola de transmissão da cultura e formação humana é questionada pela concepção utilitarista apresentada na teoria do capital humano e complementada pelo modelo das competências, os quais recusam toda forma de cultura que não seja aquela regida pela utilidade, rendimento e eficácia, ou seja, por uma aplicação mensurável (Laval, 2004). O “Novo Ensino Médio” promove a padronização e a flexibilização curricular crescentes do currículo e seu vínculo direto com as práticas de gestão centradas em uma determinada concepção de qualidade, na melhora de posições em rankings como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes /Pisa (OCDE).

Esse processo contínuo de mutação da escola tende a transformá-la em uma organização produtora de mão de obra, o “capital humano”, cujo valor só tem significado do ponto de vista da instância suprema que é o mercado. Mas, que mercado é esse?

A inserção de nosso país no mundo globalizado pela via de sua transformação num mercado financeiro emergente “tem nos reservado um papel melancólico -na divisão internacional do trabalho” (Paulani,2006, p. 67), de efeitos nocivos para a economia nacional e sua capacidade de produzir uma sociedade menos desigual. A agenda neoliberal acelerou o processo de desindustrialização da economia do país – que passa aproximadamente dos 23% do PIB, na década de 1980, para 18-19% nos anos 1990, e atinge aproximadamente 9%, hoje.3 Assim como iniciou o processo de fragmentação da classe operária, impondo o retrocesso do operariado formal, em números absolutos, acompanhado do crescimento de trabalhadores informais em velocidade espantosa.4

As políticas públicas de educação parecem expressar a ausência de demandas socioeconômicas por produção de ciência e tecnologia em país cuja economia se especializa em criar empregos e/ou ocupações de baixa qualificação, com a destruição permanente de cadeias produtivas, o declínio da participação da indústria de transformação, em especial a metal – mecânica no PIB. A nova inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho privilegia setores primários exportadores, em particular a mineração, agroindústria, construção civil e pesada, e não privilegia o emprego qualificado. Os motores da acumulação concentram-se, ainda, em outros setores que não empregam trabalho especialmente qualificado, tais como o setor de serviços, a indústria financeira, os call centers, isto é, o telemarketing.

Para melhor apreendermos a manifestação dessa ultradireita neoliberal na atual conjuntura brasileira, é útil realizar uma necessária “escavação conceitual” (Bianchi, 2020) a partir das formulações do marxismo gramsciano. Em primeiro lugar, na trilha de Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, podemos destacar a combinação dialética das formas sociais modernas e arcaicas constitutivas da revolução passiva que se desenvolve nas condições próprias a uma semi-periferia capitalista, onde o avanço cresce e se alimenta permanentemente do atraso.

As informações sobre a dinâmica da economia brasileira no período de pós-fordismo financeirizado podem ajudar a esclarecer os rumos de uma reforma do ensino médio cuja intencionalidade, centrada nas demandas do mercado de trabalho, de promover a empregabilidade, está longe de seu preocupar com a qualidade técnica da formação profissional, restringindo o conhecimento e reduzindo a cultura ensinada às competências necessárias à empregabilidade dos alunos trabalhadores.

Em seus estudos sobre o americanismo-fordismo, no CC 22 ( 1934), Gramsci nos mostra que a restauração da hegemonia das novas frações da burguesia norte-americana, naquele momento histórico de crise orgânica, envolveu um processo de racionalização do trabalho e da produção e, ao mesmo tempo, um novo ajuste entre estrutura e superestrutura, no sentido de recompor a unidade entre as relações sociais de produção e os aparelhos de hegemonia, o que propiciou a criação de um novo tipo de trabalhador, conformado a partir da conjugação dos elementos da força e do consentimento, promovendo assim a difusão de um novo modo de vida que se expandiu para outros países capitalistas.5

Nessa direção, pode-se afirmar, na direção de Laval (2004, p. XVIII), que essa escola a ser conformada pela reforma, “ao mesmo tempo mais individualista e mais mercantil”, acompanha a desestruturação do modo de regulação fordista e “da norma de emprego que lhe é própria”.

Como observa o autor, o que assistimos hoje, mais do que uma “crise” passageira, é uma mutação do capitalismo. A análise das recentes mutações escolares indica a tendência de o “universo dos conhecimentos e o dos bens e serviços se confundirem, ao ponto de serem cada vez mais numerosos aqueles que não vêm mais razão de ser na autonomia dos campos de saber e nem significado intelectual quanto à política de separação entre o mundo escolar e o das empresas”. E, conclui, “com a universalização da conexão mercantil dos indivíduos, parece chegada a época de um enfraquecimento das formas institucionais que acompanharam a construção dos espaços públicos e dos Estados-nações” (Laval, 2004, p. XVIII).

No caso específico da sociedade brasileira, a opção da classe dominante pela inserção consentida e subordinada ao grande capital e o papel subalterno do país na divisão internacional do trabalho tem, como decorrência, a hipertrofia da formação para o trabalho simples e as relações de classe no plano mundial e interno. Ou seja, a sociedade que se produz na desigualdade e se alimenta dela não só não precisa da efetiva universalização da educação básica como a mantém diferenciada e dual (Frigotto, 2018, p.49). O que pode ser visto com a fragmentação dos percursos formativos, e no caso específico da educação técnica, com a introdução dos cursos de qualificação profissional de curta duração e formação reduzida, a promoção de uma nova dualidade na histórica dualidade do ensino, segundo alertam os pesquisadores Evaldo Piolli e Mauro Sala (2019).

A presença do setor privado e, em particular, das grandes corporações associadas a fundos de investimentos na disputa pelos fundos públicos direcionados ao segmento educacional, subordina em primeiro lugar a educação pública diretamente ao capital financeiro e explicita a lógica predominante que o rege: a obtenção do lucro rápido (Adrião e Oliveira, 2018). Ou seja, reproduz-se a articulação entre Estado e interesses privados, promove-se a espoliação dos fundos públicos em benefício da acumulação privada. Por isso, a “influência filantrópica” enquanto movimento estratégico de lideranças corporativas e fundações privadas “para angariar poder e reconstruir a educação pública à sua própria imagem” (Tarlau&Moeller, 2020, p. 555).

Em segundo lugar, ainda no que se refere à análise da configuração de interesses em torno da modernização conservadora, cabe pontuar uma questão de pesquisa: a importância de se identificar, como sugere Gramsci, a complexa teia de interesses privados tecidos por fora e por dentro do Estado (restrito) com “um grau muito maior de complexidade do que a simples tradução imediata da propriedade em poder político” É preciso analisar a teia complexa que em nossa “revolução passiva à brasileira” amarra “o novo ao arcaico num formato desigual e combinado característico e seletivo” (Fontes, V., 2017, p. 27).

De acordo com a concepção gramsciana do Estado integral, para chegarmos ao Estado no sentido estrito, é necessário partir do estudo da sociedade civil e não o contrário (Campos, PH, 2017). Some-se a essa preocupação, a questão colocada por Jean Robelin (2018) sobre os intelectuais produtivos “terem perdido seu papel orgânico central, na passagem de capitalismo dominado pela indústria a um capitalismo dominado pelos mercados financeiros”. A dominação do capitalismo financeiro sobre o capital industrial conduz então a um deslocamento do caráter orgânico dos intelectuais – e de que forma essa mudança incide na luta pela hegemonia?

Penso que tal abordagem podem sugerir pistas à analise “da feição contemporânea do Estado brasileiro e dos mecanismos que garantem a supremacia burguesa no Brasil” (Bianchi, 2020), e assim, nos possibilitar melhor compreender a política educacional em curso no país, no plano nacional e local.

Os intelectuais produtivos (engenheiros e técnicos) têm perdido seu papel orgânico central, na passagem de um capitalismo dominado pela indústria a um capitalismo dominado pelos mercados financeiros. O realizador do lucro, que alimenta o capital financeiro, substitui o organizador da produção, aquele que liga técnica e trabalho. Esta figura corresponde à passagem do financiamento interno das empresas ao financiamento para os mercados financeiros. Segundo Jean Robelin (2018), estudos têm mostrado como a médio prazo, a taxa de investimento em pesquisa e desenvolvimento caiu em relação ao volume de negócios das empresas.

Se a primeira figura do intelectual orgânico é a do captador direto do lucro, o realizador das transações financeiros, encarregado de calcular e de socializar os riscos tomados nos mercados financeiros ao conjunto da sociedade, que deverá pagar por eles, a segunda figura do intelectual orgânico é a do que exerce funções de gestão e de rentabilização da força de trabalho, aquele do DRH. Os recursos humanos marcam a subordinação total da produtividade do trabalho à produção do capital. É preciso forjar um eu empreendedor em todo trabalhador. O estado maior passou da liderança técnica, própria do fordismo, para a formação de um conformismo social baseada na liderança dos homens.

Trata-se de moldar um senso comum neoliberal, uma forma de perceber e definir a própria vida no mercado, de perceber o mercado pela rentabilidade da empresa, o que só pode ser realizado por meio de mecanismos de constrangimento ou de aceitação que constituem o núcleo de um gerenciamento baseado na ilusão da mensurabilidade da performance complexa e de seu caráter social. É assim que a dimensão antropológica e psicologizante da tecnologia social se sobrepõe à dimensão técnica, contrariamente ao que ocorria no fordismo. O fazer de si e a autorrealização estão subordinados à sua capacidade de performance e de venda desta capacidade no mercado, ou seja, à sua empregabilidade, à sua capacidade empreendedora.

Essa breve digressão pretende contribuir para o melhor entendimento das estratégias de privatização no campo educacional, do processo que temos assistido de transferência de atividades, ativos e responsabilidades de governos e órgãos públicos para indivíduos ou agências privadas. E , mais especificamente, como mostram Adrião, Garcia e Drabach (2020), a transferência de responsabilidades da Seduc e da SED , no caso do Estado de São Paulo, em relação a três dimensões da educação básica – o currículo, a oferta e a gestão escolar aos aparelhos privados de hegemonia – à coalização empresarial do Todos pela Educação, à Fundação Ayrton Senna, Fundação Lemann , Instituto Itaú -Unibanco, além da participação da Mackinzei e Company –, entre muitos outros, os quais personificam a voz impessoal e burocrática do capital em movimento.

Sabemos que desde transformação da educação em serviços, no governo FHC, o processo de privatização passou por três fases – a mercantilização, início do processo de comercialização da educação; a financeirização, processo de aquisição e transferências da educação como ativos no mercado financeiro, e a terceira fase, quando além da monopolização e internacionalização, as empresas migram para a educação básica, constituindo um setor empresarial, patronal, cada vez mais influente, e articulado em nível nacional, impondo formas de relação de trabalho aos professores das escolas privadas, interferindo nos projetos político-pedagógicos.

Segundo o coordenador da Confederação dos Trabalhadores de Estabelecimentos de Ensino/ Contee, José Ribamar Barroso (2018), estaríamos na quarta fase, ainda de maior concentração financeira acentuada pela pandemia. Nessa fase pandêmica, além das demais intervenções na concepção e dinâmica educacional e na forma escolar das instituições públicas (a privatização endógena), há a presença das plataformas na realização e controle da aprendizagem e do trabalho docente, reduzindo a autonomia do professor, pela incorporação de seu saber, e do estudante submetido à pedagogia dos algoritmos. Temos aqui uma grande coalização internacional, global, representada pela Fundação Bill Gates, Google, Microsoft, Fundação Lemann, entre outras, cuja presença poderá se perpetuar com possibilidade do ensino híbrido nas escolas das redes públicas.

Em síntese, é importante e urgente indicar como atua esse “balão de negócios” – nos termos de Virgínia Fontes (2017) – na apropriação dos fundos públicos, o modo como se generaliza a reprodução ampliada do capital, e a forma como está protagonizando a estruturação e condução do campo pedagógico e da formação para o mercado de trabalho da juventude trabalhadora brasileira?

O conjunto dos estudos e pesquisas atentos à mudanças nos processos educacionais, realizados por pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade, do Observatório Nacional do Ensino Médio, dos Institutos Federais, Centro Paula Souza e demais universidades públicas, têm indicado com bastante pertinência a relação público – privado na gestação/elaboração da BNCC e Reforma de Ensino Médio, no qual o Estado de São Paulo foi o principal laboratório, e nele, o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza/CPS,6 dando continuidade ao projeto neoliberal gestado no governo FHC, do qual aliás nunca se afastou, de privatização do público, em diferentes formatos, e da disseminação da pedagogia das competências nas diversas dimensões do trabalho escolar.

Como esses estudos assinalam, temos hoje um quadro significativo de avanços da dominação empresarial na disputa de hegemonia na educação pública:

– A transposição do modelo empresarial, gerencial para o âmbito da escola pública, a dessimbolização e deslegitimação da escola como espaço de produção do conhecimento e de formação do humano.

A construção de uma “rede de governança” nacional e internacional, que promove o estreitamento da relação público – privado por meio de políticas indutoras de parceria com empresas, fundações/centros de pensamento empresarial – os aparelhos privados de hegemonia – na elaboração, produção e avaliação da política educacional, na formação docente e produção de material e livros didáticos.

A fragmentação e o aligeiramento da formação dos estudantes da escola pública, cerceando o acesso ao conhecimento científico necessário à apreensão do mundo e à construção da identidade individual e social; a desescolarização do ensino técnico profissional, via itinerário formativo, que assume o formato de formação continuada, de organização modular, e de EaD, em grande parte, promovendo o aprofundamento da privatização do ensino.

A desconstrução e aviltamento do ensino profissional, quando o técnico é destituído dos fundamentos teóricos que lhes são constitutivos e informam a as atividades de trabalho, e reduzido a competências, saberes operacionais voltados às demandas pontuais do mercado, promovendo uma nova dualidade na educação profissional no âmbito da dualidade estrutural do ensino médio.

O aumento da exclusão educacional e da desigualdade social via controle dos tempos escolares pela ampliação das denominadas escolas de tempo integral, da redução da oferta de cursos noturnos e da educação de jovens e adultos/EJA.

 – Além da padronização dos conteúdos curriculares, via competências mensuráveis, em resposta às exigências dos processos de avaliação de resultados em larga escala, as mudanças impõem a flexibilização curricular e a fragmentação da formação, caracterizando – em sua política excludente e de reforço das desigualdades – uma rede cada vez mais estratificada, buscando adaptar a formação da juventude trabalhadora ao mercado de trabalho mais segmentado e hierarquizado, e fazendo da “adaptabilidade” o seu fundamento na contenção dos imensos contingentes de jovens trabalhadores desempregados e em situação de informalidade.

Por isso, a perspectiva perfomativa dos conteúdos transversais – agora conteúdos disciplinares – como “projetos de vida”, “empreededorismo” – nos quais as competências cognitivas e sócio-emocionais e competências pessoais, buscam de modo anti-ético – que pode ser caracterizado como verdadeiro assédio moral – conformar uma nova subjetividade aos jovens da classe trabalhadora, moldada segundo os valores do individualismo e da meritocracia, de modo a construir um novo conformismo às condições de vida rebaixada (resistência à frustração), ao desemprego, ao trabalho precarizado e mal pago, à ausência de mobilidade social.

Por fim, em termos de barbárie trabalhista, a nova moda é falar em fim do emprego tal como o conhecemos. O mais preocupante é que muitas vezes, tal pulverização das carreiras e ofícios é apresentada como resultado inevitável da “modernidade”, como algo que temos que nos acomodar e até festejar.

Contudo, como observa Regis Moraes (2017), a forma pela qual a automação e a “reengenharia das ocupações acontecem não tem nada a ver com uma fatalidade técnica (há uma dimensão técnica, o que é outra coisa). Essa dimensão técnica é uma “janela de oportunidade” para reduzir os custos do trabalho – isto é – para arrochar quem trabalha.

Este processo de engenharia de alta tecnologias das empresas e dos capitais assemelha-se a um “verdadeiro Frankstein” – segundo Ricardo Antunes. A velocidade das inovações – impressão 3 D, algoritimos , internet das coisas, geração 5G, inteligência artificial – promove a degradação do trabalho e a degradação ambiental. Amazon, Uber, Ifood,e etc, reeditaram a “nova servidão digital”, inaugurando um processo crecente de “ uberização” das profissões, que inclui – inclusive – a docente.

É importante, a meu ver, retomar Harry Braverman e sua obra sobre o processo histórico de desapropriação do conhecimento dos trabalhadores pelo capital.7 Obra que foi contestada e, até certo ponto, abandonada, em tempos de reestruturação produtiva adoção do paradigma da automação flexível na organização dos processos de trabalho na produção. O que vivenciamos hoje, trata-se não precisamente da passagem de uma forma taylorista de organização do trabalho para uma flexível: antes parece ser a passagem de um taylorismo mecânico para um neo-taylorismo digital. O taylorismo mecânico, que marcou a economia norte-americana do século XX, capturava o conhecimento do artesão e o embutia nos processos e dispositivos.

O taylorismo digital traduz o conhecimento operativo em um conhecimento operante, codificado e digitalizado, embute-o em pacotes de software e o redistribui no espaço. Isso implica traduzir o trabalho intelectual de gestores e profissionais técnicos em conhecimento operante, através da captura, codificação e digitalização em pacotes de software, modelos e normas que podem ser transferidas e manipuladas por outras pessoas, independentemente de sua localização.

O impacto da automação e da exportação de postos de trabalho se faz sentir também em profissões de “colarinho branco” cada vez mais sofisticadas e qualificadas. Há, também, claro – áreas que exigem tarefas cognitivas não rotineiras, aquelas da alta administração e da ciência e tecnologia. Mas, os estudos com base empírica, afirmam que o n. de empregos para operar instrumentos de alta tecnologia vai ser maior do que os empregos que requerem profissionais como cientistas e engenheiros, educadores em universidades.

Uma sociedade de serviços? Uma sociedade sem empregos para a maioria, com enorme população sobrante? Uma espécie de “sociedade de classes estamental”, segundo definição de Francisco de Oliveira? Aliás, como o autor afirmou profeticamente no seu livro “Os direitos do anti-valor”, publicado em 1998: “as classes dominantes na América Latina desistiram de integrar a população, seja à produção, seja à cidadania… Mas, os grupos e classes dominantes no Brasil já não pretendem integrar, mesmo que sejam por mecanismos reificadores da exclusão. O que elas pretendem é segregar, confinar, diríamos definitivamente, consagrar nuns casos, reforçar noutros, o verdadeiro apartheid entre classes, entre os dominantes e os dominados … O que se vê é um crescente distanciamento, intranscendência e incomunicabilidade entre as classes sociais”.

E Chico de Oliveira ainda explicita: “O apartheid se caracteriza pela criação de um campo semântico em que os significados dos direitos e conquistas civilizatórias, plasmados em direitos sociais, trabalhistas, civis e políticos são transformados em obstáculos ao desenvolvimento econômico, e mais, são transformados em fatores causais da miséria, pobreza, exclusão e ausência de cidadania. … Há no ar uma espécie de sociabilidade da apartação, da segregação, do confinamento; sobre ela, reforçando-a as políticas empreendidas aumentam-lhe o alcance, a legitimam, e suprema ironia, a metamorfoseiam em modernidade: os signos do apartheid são agora sinais da individualidade, da capacidade de empreendimento” (p. 215-216).

Creio que a consonância destas intencionalidades das classes dominantes registradas por Francisco de Oliveira com os das atuais políticas “públicas” de educação são evidentes. O que não quer dizer que tal cenário venha a se desenvolver fatalmente. Caberá às classes subalternas reagirem, não aceitando o que lhes é apresentado frequentemente como fatalidade tecnológica, e construir uma nova sociedade, uma nova hegemonia.

E a educação não tem a ver apenas com mercado de trabalho e remuneração. Educação não é apenas isso a que visão neoliberal a reduziu, à mercadoria que a teoria do capital humano se esforça por dar foro de legitimidade. Aprendemos que a escola não emprega apenas bens, não produz somente serviços, mas carrega valores que tornam presente e sensível uma certa ideia de bem comum, a concepção da educação como bem público, coletivo (Laval e Dardot, 2016). Ou, ainda, como nos lembra Regis Moraes (2019), a Educação não é apenas preparação para operar no mundo. Mas também, quem sabe, para operar o mundo. O que é algo muito mais complexo e exigente.

 

Por fim, as proposições

Neste cenário de desmonte da educação pública nacional e de violenta invasão do setor privado na educação, é imperativo erguer a bandeira de luta pela revogação da reforma do Ensino Médio. Ao contrário do que afirmam os reformadores empresariais e a tecnocracia estatal responsáveis pela reforma (lei 13.415, 2017) nós temos proposta consistente de ensino médio, construída historicamente pelos movimentos sociais populares e pelos educadores democráticos organizados.

Concordamos com as análises que qualificam o ensino médio no Brasil não pelo “fracasso”, como afirma o discurso dos propositores da reforma, mas pela ausência de políticas públicas que promovam a sua oferta universalizada e de qualidade como direito a ser garantido a todos os brasileiros.

Entendemos que padrões de qualidade educacional elevados e o bom desempenho dos estudantes não são alcançados apenas por mudanças curriculares, mas por meio de políticas que garantam recursos públicos, orçamentários para a educação pública, que viabilizem professores valorizados e com carreira, condições de trabalho, escola escolas bem equipadas, com suporte tecnológico, corpo técnico estável e projeto pedagógico integrado e de formação humana de base. Nessa direção, seria fundamental ampliar a rede dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia para alcançar a universalização do ensino técnico integrado ao ensino médio, uma conquista dos educadores democráticos e dos movimentos populares e sindicais.

Finalmente, é preciso reafirmar que as políticas públicas de educação são inseparáveis das demais políticas públicas relativas à diferentes dimensões da sociedade. Isto é, a qualidade da escola e o bom desempenho educacional dos estudantes estão relacionados às condições de vida da população, a seu direito ao trabalho, ao emprego qualificado e bem pago, ao direito à saúde pública, à cultura. O que, por sua vez, exige a reafirmação da democracia no país e a reconstituição dos direitos sociais subtraídos à população. Esperemos que o ano de 2023 marque o início dessas mudanças.

É importante reafirmar uma vez mais que a política democrática aplicada na escola, embora inseparável de uma política global voltada à superação da desigualdade social, não pode ser apenas uma política de compensação das desigualdades crescentes nas sociedades de mercado (Laval, p.312, 315). Como temos defendido historicamente, na trilha de Gramsci, não basta somente a igualdade de acesso, de condições, mas também a igualdade de objetivos intelectuais fundamentais, o acesso universal ao domínio da cultura, da ciência, do conhecimento. Resistir, agora, significa lutar pela revogação da contra-reforma e reativar o ensino médio de currículo integrado, de formação humana integral, utopia (como possibilidade histórica) acalentada pela esquerda, desde o final do século XIX, nas lutas dos trabalhadores.

Devemos nos opor às medidas de desregulamentação em curso na política educacional e construir outra política educacional voltada aos interesses da população trabalhadora, elaborada de forma democrática com a participação dos coletivos sociais, dos sujeitos educacionais, daqueles que fazem a educação pública nas diferentes etapas de ensino, nas diferentes esferas governamentais – federal, estadual e municipal.

A vitória de Lula e a oportunidade de um governo democrático, republicano, confere extrema urgência à reconstrução, nas representações sociais e nos programas políticos, da concepção de educação como bem público, coletivo e, para isso, como alguns de nós estão insistindo em suas manifestações públicas, nós – educadores de todas as etapas escolares – precisamos nos unir e construir, em nossa diversidade teórica e pluralidade política (pedagogia histórico crítica, pedagogia Paulo Freire, concepção do trabalho como princípio educativo, entre outras), uma frente democrática de resistência tanto às investidas negacionistas do bolsonarismo quanto às estratégias privatistas em seus distintos matizes retrógrados, e ao capital financeiro que as sustentam, pela construção de uma nova hegemonia.

*Carmen Sylvia Vidigal Moraes é professora titular da Faculdade de Educação da USP.

Referências


ADRIÃO, T.; GARCIA, T.; DRABACH, N.. A influência de atores privados na educação paulista: a primeira geração da privatização. Políticas Educativas, Paraná, vol. 13, n.2, p. 96-108, 2020.

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Notas


  1. Artigo elaborado a partir das reflexões produzidas para os seminários realizados pelo Grupo de Pesquisa Trabalho e Educação da FEUSP em colaboração com a Rede Escola Pública e Universidade e com os Grupos GMarx (História-USP) e Políticas Públicas, da Unifesp. Parte do texto foi publicado na Revista Práxis e Hegemonia Popular (2022).
  2. Fazem parte desta estratégia, entre outras, a promulgação da Emenda Constitucional 95, de 16 de dezembro de 2016, que congela por 20 anos os investimentos em políticas públicas inviabilizando a realização das metas do PNE; o não cumprimento da destinação de 10% do PIB para a educação; a lei 13.429, de 31 de março de 2017, da terceirização irrestrita; a lei 13.467 , de 13 de julho de 2017, da reforma trabalhista (trabalho intermitente); a lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, da reforma do ensino médio; e a resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017 que instituiu e orientou a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
  3. A esse respeito, ver entrevista de L. G. Belluzzo a Antônio Martins sobre O futuro do Trabalho, em Outras Palavras, de 20/07/2021.
  4. Importante análise sobre a informalidade e seu tratamento conceitual na historiografia brasileira, consultar Secco, L. “O sentido da informalidade”, em A Terra é Redonda, 27/04/2020. https://aterraeredonda.com.br/o-sentido-da-informalidade/
  5. A esse respeito, ver considerações de Lúcia M. W. Neves, em Neves, L. (2009). Resenha: Americanismo e fordismo. Antonio Gramsci. São Paulo. Hedra, 2008, 96p. In. Trabalho, Educação, Saúde. Rio de Janeiro, v.7, n 1., p. 191-195, mar-jun, 2009.
  6. Sobre o tema, consultar Moraes, Carmen S.V.; Reis, Elydimara Dursa dos; Alencar, Felipe (2022), e Reis, Elydimara Dursa dos; Alencar, Felipe (2022).
  7. Refiro-me ao importante trabalho de Harry Braverman, Trabalho e Capital Monopolista, publicado em 1966, nos EUA, e em 1974, no Brasil. Nesse livro, o autor discute o processo de industrialização, as mudanças tecnológicas e organizacionais no trabalho, desde o seu início, na Inglaterra, até o período capitalista monopolista, e suas consequências sobre a natureza do trabalho e a composição da classe trabalhadora.

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