Por PAULA RIBEIRO & PIERO DETONI*
Considerações sobre as obras da pintora, desenhista e professora
O presente artigo analisa as obras da pintora, desenhista e professora Regina Veiga Vianna (1890-1968) elaboradas no período entre 1916 e 1950. Nascida no Rio de Janeiro e filha de musicista, Regina Veiga iniciou os seus estudos em arte ainda na infância. Contou com o apoio do seu irmão Raul Veiga (1878-1947), governador do Estado entre 1918 e 1922. Ingressando, posteriormente, na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), a futura artista teve aulas com o renomado pintor e professor de artes Rodolfo Amoedo (1857-1941).
Analisaremos neste trabalho, em paralelo com discussões teóricas gerais, as seguintes obras: Nu, Rio de Janeiro e Baianas. Regina Veiga é desconhecida do grande público e mesmo de especialistas em história da arte, sendo necessário refazer o itinerário da sua recepção a partir de artigos de crítica saídos na imprensa como forma de compreendermos a sua inserção no campo das artes plásticas num momento decisivo, qual seja, aquele no qual se verifica tensões entre as heranças academicistas do oitocentos e as pressões pela atualização das formas de pensar e de representar a arte nacional, já impactada pelos ideários modernistas circulantes e que passavam a ser apropriados pelas diferentes modalidades de arte. Ressaltamos que essa tensão é a própria condição para a estruturação do campo das artes na primeira metade do século XX. Período em que, vale mencionar, a institucionalização dos modos de produção artística passa a ser pensados a partir do vetor da profissionalização e, mesmo, da disciplinarização.
Regina Veiga é frequentemente mencionada pela crítica de arte do período em que atuou, mas suas obras permanecem pouco conhecidas e estudadas. Na consulta aos periódicos disponíveis no período entre 1916 e 1950 chamou atenção a grande quantidade de menções que apontavam Veiga como uma das artistas que melhor representa a arte brasileira. Embora tenha feito a escolha de não comercializar muitas das suas produções, é possível identificar a partir das poucas telas que foram adquiridas por instituições públicas brasileiras, ou postas à venda para integrar coleções particulares, que a artista explorou diversas estéticas e temáticas ao longo da sua trajetória, sendo possível encontrar descontinuidades estruturantes em sua produção, que mostra-se de difícil enquadramento, sendo correto afirmar que se valeu de linguagens artísticas múltiplas, mesmo que algumas diretrizes sejam perceptíveis ao longo da sua carreira.
A obra de Regina Veiga está em movimento. Num jogo cambiante de transformações que mais do que tornar a sua estética inclassificável ressalta a sua força adaptativa, reconfiguradora e apropriativa, própria dos circuitos artísticos periféricos. De todo modo, identificamos o apreço por temas da cultura afro-brasileira, bem como a projeção de um olhar diferenciado junto à presença da figura feminina na arte, principalmente no que diz respeito aos nus acadêmicos, um trabalho que mesmo considerado tradicional era, mormente, realizado por artistas homens. Analisaremos, nessa direção, de que maneira a artista carioca tratou as referidas temáticas pictoricamente, além de estabelecer ligações possíveis com aspectos da sua atuação no campo artístico nacional, ressaltando, sobretudo, as performances de gênero.
Isso posto, a primeira obra que analisaremos é “Nu” (s/d):
Regina Veiga trabalha a luz e as cores quentes de modo a destacar a figura humana cuja pose lembra a das deusas frequentemente representadas pelo naturalismo, que faz parte do repertório estético da pintora em seu início de carreira. Mesmo havendo certa idealização da figura feminina através da pose, e intensificada a disposição pictórica naturalista, o seu olhar não está voltado ao espectador, sugerindo algum grau de introspecção. O mundo interior, ou particular, da mulher é destacado e está conectado ao cenário no qual ela se encontra, em que se pode entrever a visualização da mulher através de uma corrente de água que torce a imagética, talvez indicando para os descompassos existentes entre o feminino ideal e o real.
A luz é responsável por operar contraste e movimento, conferindo maior peso à parte superior da paisagem. É interessante notar como a artista trabalhou uma cena externa de modo a torná-la intimista, convidando o espectador a participar do momento de contemplação do ambiente e de seu próprio interior em relação a ele, forte característica da arte naturalista. O diferencial seria a não projeção mimética da imagem da mulher na água, que torce não só uma projeção social, mas o próprio realismo naturalista, implicando numa reconfiguração desta estética a partir dos seus próprios repertórios técnicos. Ou seja, uma antropofagia bastante particular.
Movimentar o gênero de pintura nu feminino para a construção de uma narrativa como esta é significativo por dois fatores. O nu exige o estudo cuidadoso da anatomia humana, atividade que, ao menos até por volta da década de 1920, não era indicada às mulheres que aspiravam à carreira artística. Alegava-se que o estudo do corpo humano nu não atendia aos valores morais correntes. Às artistas cabia a execução de gêneros pictóricos ditos menores: a paisagem, a natureza-morta ou os retratos. Assim, vemos que Regina Veiga dedicou-se a um estudo exclusivo e exigente em vários sentidos no que diz respeito à presença feminina.
O segundo fator é que a artista transforma o nu em uma integração entre mundo interior e exterior. O universo feminino representado por Veiga vem antes mesmo do seu corpo, e o ambiente no qual ele se encontra não nos deixa pensar em um simples nu feminino, pois há a riqueza do cenário, que evidencia uma forma de exteriorização da figura feminina desprendida dos padrões tradicionais. O movimento da água, em posição não mimetizante, implica, justamente, o feminino posto em estado não prefigurado.
A imagem da mulher na água não a representa fidedignamente, em uma disposição codificadora. Assim, vemos forma e conteúdo dialogando de maneira contundente, na medida que os protocolos de visualidade mobilizados pela artista brasileira desestabilizaram as representações femininas disponíveis. Torcer a imagética feminina por meio da pintura seria não outra coisa do que direcionar um novo estatuto para a condição de mulher, sendo ela não passível de uma representação canonizada.
A imagem aparece sem forma, turva, não prefigurada, o que nos faz perceber uma imagem de mulher que transcende a uma representação imposta socialmente. A figura traz os contornos realistas e próprios do naturalismo, mas a imagem refletida invoca uma sensação de indiscernimento e não adequação, sendo o desejado por Veiga. Em sua perspectiva o intimismo daquela mulher projetado à exterioridade da cena demonstraria um não enquadramento de gênero – não condicionada nem imageticamente tão pouco pelo espectro de uma representação socialmente compartilhada. Os dois elementos dialogam entre si e chamam o espectador a fazer o mesmo: refletir sobre a imagem da mulher no modo da desconstrução, assim como o próprio movimento da água, que transparece uma imagética impressionista, invocando uma não representação estável.
Em 1923, Regina Veiga destacava-se na cena artística brasileira, juntamente com Georgina de Albuquerque (1885-1962), Angelina Agostini (1888-1973) e Zina Aita (1900-1967). É importante ressaltar que não há um discurso único no âmbito da crítica da arte no que concerne às performances das artistas na Primeira República. Em certos artigos se faz menção, por exemplo, à “elevação mental” da mulher como o motivo para suas manifestações de interesse pela arte. Por outro lado, o longo processo de exclusão a que foram submetidas foi justificado como uma espécie de incapacidade intelectual.
Em ambas as situações a condição de mulher é anterior ao fazer artístico em si. De todo modo, se impunham às pintoras brasileiras, muitas delas em consonância com as lutas feministas correntes, barreiras sociais e de representatividade consistentes, o que aparecia como interditos consideráveis para que a emancipação fosse alcançada através das performances artísticas, majoritariamente instituídas por modos de atuação (e de regulação) masculina em termos de temáticas, de conceitos e de perspectivas.
Em 1925, o Jornal do Brasil apresentou uma nota sobre a exposição individual organizada por Regina Veiga na Galeria Jorge, um dos principais espaços artísticos presentes no Rio de Janeiro. A nota menciona os vários prêmios conquistados por Regina Veiga nas EGBA’s, além de comentar que a sua última participação como expositora ocorreu em São Paulo alguns anos antes. Tal fato chama a atenção, pois após o seu regresso de Paris foram registradas apenas outras três participações nas Expos Gerais, entre 1916 e 1918.
Acreditamos, em uma primeira leitura, que ao retornar ao Brasil a transformação operada em seu estilo, manifesta em obras que desestabilizam o cânone disponível, se estendeu-se à própria recepção crítica, também ela impactada pela nova performatividade artístico-pictorial mobilizada por Regina Veiga. A artista passou a expor em galerias e em eventos não vinculados à ENBA, lugar destacado da arte acadêmica local e movimentadora de toda uma rede de protocolos, de dispositivos e de referências consideradas movimentadoras de autoridade, sem contar a sua disposição de uma arte comprometida com os padrões sociais hegemônicos circulantes, ainda com tons marcadamente elitistas.
Interessante demonstrar que na década de 1920 esse lugar de autoridade conferido a ENBA confrontava a expectativa do público, da crítica dos novos artistas e dos novos estudantes em função de uma dinâmica considerada obsoleta em relação à didática, à exposição e aos modos concebidos para a circulação da produção artística nacional, fechando-se, por exemplo, às atualizações impressas pelas vanguardas modernistas.
Na Galeria Jorge a pintora expôs 32 obras, entre retratos, nus e paisagens brasileiras e europeias. Desse conjunto, não percebido enquanto um todo fechado, muitas obras foram adquiridas por colecionadores logo nos primeiros dias da exposição. A sinceridade, tomada como uma disposição autonômica da pintora junto ao seu fazer, apresenta-se como um dos aspectos identificados pela crítica no processo de contraste com o cânone local. Algo que lhe rende, cabe destacar, muitos elogios. Notamos, a partir das fontes disponíveis, que a questão de gênero no campo artístico era um ponto ao qual Regina Veiga se voltava de forma um pouco mais explícita que outras artistas contemporâneas a ela.
Isso porque a pintora se pronunciou em publicações a respeito do tema, adotando para si uma posição de enfrentamento ante o debate crescente acerca do que deveria ser, ou não, a “nova Mulher”, que movimentava as representações femininas a partir da Primeira República. Veiga estendeu o seu posicionamento combativo tanto para as suas pinturas quanto para as demais artes as quais também se dedicava, quais sejam, a dança e a música.
O que a trajetória de Regina Veiga indica, por meio tanto das suas obras quanto da sua postura enquanto artista-mulher, é a emergência de formas de atuação que começavam a reconfigurar o campo artístico nacional, mesmo que de uma forma não abrupta e marcada pela descontinuidade acentuada. As artistas transcendiam, dentro dos limites daquelas condicionantes sociais, as convenções cerceantes de gênero que envolviam o seu fazer, a sua criação e mesmo a sua profissão. Passavam, pois, a realizar exposições individuais, viajavam para expor em outros países, elaboravam mostras em espaços não consagrados e marginais, rompendo com os protocolos do circuito e do mercado das artes, não só por meio da sua estética, mas através de uma nova forma de se colocarem e de se deslocarem por esses novos espaços, que passavam a ser mais plurais, tornando-se, outrossim, indícios de resistência aos parâmetros de autoridades em vigor. Os novos espaços, assim, também indicavam formas de torção do cânone.
A artista brasileira viajou com frequência para o exterior, trazendo as obras produzidas para serem expostas e compradas no Brasil. À época, a circulação e a comercialização de quadros pelo país demandavam dos artistas ou dos compradores altas taxas de consumo e de expediente. Em certa ocasião, em 1927, Regina Veiga pediu isenção para transportar oito telas no vapor inglês “Almanzora”. Podemos inferir que Regina Veiga possuía consciência acerca dos modos (im)possíveis de inserção junto ao campo artístico nacional, da preparação, passando pela produção, até a própria comercialização das suas telas pelos circuitos e comércios de arte disponíveis.
O seu intuito foi o de caminhar pelas bordas, pelas margens, como uma maneira de romper minimamente com a disposição do campo, o que implicava formas específicas, visíveis e invisíveis, de favorecer um círculo de artistas homens, que não apenas dominavam as escolas e as exposições, mas a própria circulação das obras. Para quebrar essa dinâmica seria necessário não apenas as inovações e as atualizações estéticas propostas, mas uma intervenção junto aos caminhos de trânsito das obras, já condicionados por formas excludentes relacionadas à questão de gênero.
Não dispomos de muitas informações sobre os caminhos da sua arte, bem como de sua trajetória individual, na década de 1930, o que evidencia o descaso para com a reconstrução biográfica e intelectual das artistas brasileiras. De todo modo, veremos que na década seguinte a sua obra passa por transformações, incorporando temáticas e conceitos próprios dos modernismos circulantes. Mesmo que consideremos, pensando no primeiro movimento da sua estética, estratégias de confronto ao cânone, como sinalizando para problemas colocados pelas mulheres em luta, ainda a vemos, de uma maneira ou de outra, praticando a sua arte pelos meandros do academicismo, que tendia a figurar a sociedade através de parâmetros estéticos hegemônicos, com mulheres e homens brancos, cristãos e de ascendência econômica e social, como se pode perceber pelos cenários, pelas indumentárias, pelos gestos, etc.
Na década de 1940 há uma virada, em que percebemos a pintora se dedicando a toda uma imagética de matriz afro, com estéticas e temáticas próximas do que era chamado à época de cultura popular. Esses novos regimes de esteticidade empregado por Regina Veiga pode ser percebido, entre outras telas, a partir de Rio de Janeiro, obra relativamente conhecida.
Identificam-se dois planos principais na tela, quais sejam, aquele que figura a praia com as pessoas e o outro onde estão os barcos e as montanhas ao fundo. A parte mais informativa da pintura se encarrega de promover o jogo de planos, que também inclui a cidade em um movimento de ligação intermediária. A narrativa está focada nas ações e nas interações das figuras humanas, ao centro, e o fundo foi intencionalmente trabalhado a partir de cores frias para conferir a distância da cena principal. A estética se enquadra no que convencionalmente ficou conhecido como pós-impressionismo, uma derivação das apropriações modernistas realizadas nas primeiras décadas do século XX.
O balanço entre cores quentes e frias proporciona o escalonamento suave entre os planos, bem como orienta as noções de perspectiva e de profundidade A narrativa busca capturar a cena de maneira natural, em um lance mesmo de impressão, como se fosse um correr de olhos, o que abre espaço para o subjetivo. A subjetividade é um traço marcante da obra da artista, que soube explorar as possibilidades dessa esteticidade de acordo com o estilo, a técnica e as temáticas com as quais trabalhava, pressionando no limite do possível os sentidos do onírico, disposição empresta às representações a desestabilização figural.
A cidade do Rio de Janeiro foi, na primeira metade do século XX, um cenário frequentemente representado das mais diversas maneiras, sobretudo, por ser um local em que tradição e modernidade encontravam-se, seja pelas tensões ou através de movimentos simbióticos ou de contraste. No quadro de Regina Veiga que registra a cidade encontramos a figura dos pescadores, algo que fugia das representações mais comuns que evocavam a atmosfera da Belle Époque.
Em Regina Veiga, o ambiente e as figuras humanas se encontram em interação. A sua estética pós-impressionista investe no movimento, sendo ele capturado sempre por uma perspectiva que busca transparecer algum grau de naturalidade. A imagem passa uma impressão, e a categoria aqui não é despropositada, de despojamento, sendo as figuras humanas percebidas sem a austeridade comportamental própria da Belle Époque. Sem contar que a escolha pelos pescadores também é bastante significativa por serem personagens considerados marginais, parecendo o retrato de pessoas comuns, no sentido de distinção social.
A naturalidade aparece como forma e como conteúdo, na perspectiva do pós-impressionismo e no dos comportamentos, em que se deseja mostrar uma cidade em que os modos de agir social não são passíveis de controle. A estética empregada, pensando no jogo entre temática e técnica, também sinalizaria para a liberdade de criação, sendo que o seu pós-impressionismo, considerado aqui uma derivação modernista, pode também indicar certa presença onírica, no sentido da elaboração de uma representação social a ser construída enquanto mundo possível. Quem lê a obra se sente arrastado para um clima fantasioso, de encantamento, como dito anteriormente. Um possível mundo brasileiro, podemos apontar, não cingido pelos vetores da modernidade ocidental. Há uma cadência de tempo na representação, que apontaria até mesmo para um clima de ressaca marítima.
A obra de Regina Veiga, a partir de certo momento da sua carreira, mais especificamente por volta dos anos 1940, tende a assumir um caráter, também, de registro cultural não hegemônico, voltando-se para temas de algo que podemos chamar de cotidiano popular, em que são colocados em evidências tipos sociais, modos de agir, cenários, impressões comportamentais mais próximas da realidade, mesmo que a imagética não se apresente em modo mimetizante clássico. Em Baianas, por exemplo, a representação elaborada distancia-se dos estereótipos figuracionais projetados juntos aos negros pela pintura acadêmica, sobretudo, aquela praticada no eixo Rio de Janeiro x São Paulo.
Regina Veiga dedicava-se, também, à dança, o que a leva a integrar essa linguagem artística à sua estilística pictorial de uma maneira até então não muito explorada pelos artistas cariocas oriundos da ENBA, que mesmo com fraturas importantes, como pelos modernismos margeantes, ainda aparecia como o lugar de maior autoridade no âmbito da pintura acadêmica. Essa colocação se faz importante porque o movimento intelectual operado por Regina Veiga é o de fraturar os cânones da pintura acadêmica a partir daquilo que era abordado/representado fora dos circuitos legitimados. Então, ela emprega técnicas, consideradas profissionais, através de uma estética não acadêmica, o que significava não apenas a eleição de novas temáticas para a representação, mas toda uma disposição em desnaturalizar os protocolos artísticos autorizados. O caminho percorrido pela artista é, de alguma maneira, inverso ao que se apresentava para aqueles sujeitos, quer dizer, ela não partia de um suposto amadorismo, uma definição em si já problemática, para a profissionalização. Ela, ao contrário, partia do polo de consagração acadêmico, tido profissional, em direção ao não convencional, ao amador, ao que estava à margem.
Repleta de movimento esta é uma pintura própria do seu modernismo impressionista. Na pintura se percebe o dinamismo das poses centrada na dança, algo como uma conversa, tendo a interação como tema principal. Não por acaso a leitura do quadro empresta uma sensação de que os nossos olhos também “dançam” de um lado para o outro, não havendo uma ordem ideal, ou diretora, a ser seguida, como nas obras forjadas na academia. Regina Veiga trabalha os contrastes de modo bem marcado através das suas pinceladas, dando a impressão que os movimentos do seu pincel também seguem alguma musicalidade.
O fundo neutro sobrepõe-se ao branco, cor em destaque ao centro da imagem, e os tons pastéis. Para interligar as figuras ao cenário vemos, no canto esquerdo, as pinceladas marcando os pés da mulher, que parecem se integrar ao chão, o que não é de menor importância em termos de interpretação, dado que sugere uma relação cósmica entre as figuras humanas e o ambiente, algo muito próprio das danças de matriz africana, que não deixam de apontar para algum grau de ritualística e de contato com o sagrado.
Esta obra apresenta-se como um contundente registro cultural de origem afro-brasileiro, temática que a pintora trabalharia outras vezes em sua carreira. Interessante marcar esse ponto, porque já é visível, na literatura e nas ciências sociais disponíveis, uma tentativa de valorização da importância das africanidades junto à cultura nacional, porém, nas artes plásticas, como na pintura, esse movimento parece ser um pouco mais retardatário. Também é digno de nota a opção de Regina Veiga por retratar mulheres negras.
A força do quadro, para além da valorização de uma temática marginal, está no modo de representação, em que se pode inferir que há novamente um nexo importante entre forma e conteúdo, ou seja, as representações não condicionadas socialmente, em que aparecem mulheres negras em um movimento de dança que invoca formas de liberdade de ação e a estética desprovida dos arranjos protocolares da arte acadêmica hegemônica. Veiga procurou, a partir da dança daquelas mulheres, colocar o feminino, em movimento, em liberdade de ação, de sentir e de interagir com o mundo histórico.
Na história da arte o estudo da trajetória e das obras de um(a) artista pode revelar aspectos contextuais os mais variados e de grande relevância junto à historiografia, complexificando o entendimento não só de uma paisagem intelectual e epistêmica, mas de toda uma disposição social. Neste estudo, propomos uma primeira abordagem para o entendimento da trajetória da pintora Regina Veiga, o que certamente abre novos ângulos para a percepção do ambiente cultural e social da primeira metade do século XX no Brasil.
É importante pontuar, de início, que não dispomos de muitos dados biográficos ou obras acessíveis para a pesquisa, seja por opção da própria artista ou por questões sociais, como aquela que diz respeito à perspectiva de gênero junto ao plano das artes plásticas brasileira. Sabemos, e trabalhamos no sentido da reversão desse quadro, que na formação do cânone das artes plásticas no Brasil o silenciamento, e mesmo o apagamento das artistas mulheres, apresentou-se contundente.
Dessa maneira, reunimos fontes de fácil acesso para apresentarmos pontos importantes acerca da sua atuação e da sua performance artística. Dado a falta de datação de algumas obras, o que não deixa de evidenciar o descaso para a produção artística nacional, sem falarmos do possível silenciamento advindo da formação de um cânone masculino e marcado pela sucessão da passagem de escolas artísticas pretensamente assentadas conceitualmente, realizamos uma análise partindo do início mesmo da carreira de Veiga, em meados de 1910, período que dedicou-se aos estilos acadêmicos em voga na ENBA, partindo, gradualmente, para uma mudança estética e conceitual (multidirecional) após a volta de uma viagem a Paris em 1916.
Para a artista, do ponto de vista da elaboração das representações de aspectos socioculturais, música, dança e artes visuais estavam interligadas. É interessante perceber como Regina Veiga estava atenta às mais diversas formas de expressão artística, em um movimento em que esses vetores aparecem entrelaçados, cruzados ou combinados, tanto em termos de técnica como de temáticas.
Ela era uma artista multi-linguagem, sendo que esse gesto transparecia em objetos específicos, como em suas pinturas. Ao levar historicidades populares ante um campo artístico majoritariamente elitista, e ligado à narrativas idealizadas e nacionalistas da história do Brasil, torna a arte de Veiga vanguardista, ainda mais se pensarmos nos modos de torção que movimenta junto aos cânones disponíveis, não apenas em termos de estética, mas, mesmo, em relação aos modos de consagração, o que implicava relações interpessoais e de movimentação e de circulação de obras por espaços considerados autorizados/legitimados.
Inserida e dialogando com contextos específicos, bem como em um clima ainda restritivo às manifestações culturais não-ocidentais, acreditamos que a sua forma de representar as vivências brasileiras carregava perspectivas distintas daquelas predominantes no campo artístico-acadêmico, e, também, mostrava-se relativamente mais radical que os esforços dos modernismos mais conhecidos.
Regina Veiga reinventou, ou foi em direção a esse horizonte, toda uma imagética nacional. Ela atualizou técnicas e temáticas postas pela arte acadêmica a partir de gestos de vanguarda. Imprimiu extremo senso técnico junto ao experimentalismo mobilizado, que preferimos perceber como um modernismo mais radical por se empenhar na produção de presença de formas não-ocidentais inscritas nos horizontes da experiência nacional. A sua atuação de destaque como mulher também deve ser lembrada, operando formas de intervenção ante as políticas de gênero através do seu trabalho e da sua atividade como artista profissional.
Essa postura, situada contextualmente e flexionando historicidades encobertas, revela horizontes pouco explorados, como aquele que tende a rebaixar as performances das chamadas pintoras acadêmicas, muitas vezes consideradas mantenedoras dos cânones, estando em uma posição secundária ante as inovações modernistas, algo que a trajetória de Veiga desmente, nos fazendo perceber as culturas artísticas das primeiras décadas republicanas no modo da complexidade e da diferença.
*Paula Ribeiro é mestranda em história na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
*Piero Detoni é doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP).
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