Por LEONARDO BOFF*
Passada a sombria noite, tem lugar o sonho.
Vivemos nos últimos quase quatro anos sob um governo que não amava o povo e considerava o país como uma espécie de capitania hereditária familiar. Mas agora, segundo um cântico famoso de Camões nos Os Lusíadas, o novo tempo “traz serena claridade, esperança de porto e salvamento”. Por isso cabe esperar e sonhar. Eis alguns pontos de nossa positividade.
O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta e na amarra”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, para criar relações mais igualitárias e acabar com a exclusão e a corrupção, refundando a nação?
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo nem pelos sucessivos golpes sofridos como o de 1964 civil-militar e o de 2013 parlamentar-juridico-mediático e todo o descalabro da fase bolsonarista.
Apesar da pobreza, da marginalização e da perversa desigualdade social, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação não mais cindida mas coesa.
O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor. A esperança nos remete ao “princípio-esperança” de Ernst Bloch que é mais que uma virtude; é uma pulsão vital que sempre nos faz suscitar novos sonhos, utopias e projeto de um mundo melhor.
O medo é inerente à vida porque “viver é perigoso” (Guimarães Rosa) e porque comporta riscos. Estes nos obrigam a mudar e reforçam a esperança. O que o povo mais quer, não as elites, é mudar para que a felicidade e o amor não sejam tão difíceis. Para isso precisa articular constantemente a indignação face às coisas ruins e a coragem para mudá-las. Se é verdade que somos o que amamos, então construiremos uma “pátria amada e idolatrada” que aprendemos a amar.
O oposto ao medo não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no carnaval e no futebol. Mas pode ser bom na resistência indígena, negra, na agricultura, na arquitetura, na música e na sua inesgotável alegria de viver.
O povo brasileiro é religioso e místico. Mais que pensar em Deus, ele sente Deus em seu cotidiano que se revela nas expressões: “graças a Deus”, “Deus lhe pague”, “fique com Deus”. Deus para ele não é um problema, mas a solução de seus problemas. Sente-se amparado por santos e santas e por bons espíritos como os orixás que ancoram sua vida no meio do sofrimento.
Uma das características da cultura brasileira é a jovialidade e o sentido de humor, que ajudam aliviar as contradições sociais. Essa alegria jovial nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer outra coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor que o relativiza e o torna suportável. O efeito é a leveza e o entusiasmo que tantos admiram em nós.
Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular é “um saber de experiências feito”, que nasce do sofrimento e dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem teremos reinventado um outro Brasil. E seremos todos mais aptos para enfrentar os novos desafios.
O cuidado pertence à essência do humano e de toda a vida. Sem o cuidado adoecemos e morremos. Com cuidado, tudo é protegido e dura muito mais. O desafio hoje é entender a política como cuidado do Brasil, de sua gente, especialmente dos mais pobres e discriminados, da natureza, da Amazônia, da educação, da saúde, da justiça. Esse cuidado é a prova de que amamos o nosso pais.
Uma das marcas do povo brasileiro é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, em geral, ele não é intolerante nem dogmático. Ele gosta de conviver com o diferente. Estes valores são fundamentais para uma planetização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo. Infelizmente nos últimos anos, especialmente nas eleições presidenciais de 2022, surgiu, contra a nossa tradição, uma onda de fake news, de ódio, discriminação, fanatismo, homofobia e desprezo pelos pobres (porofobia, o lado sombrio da cordialidade, segundo Sérgio Buarque de Holanda) que nos mostram que somos, como todos os humanos, sapiens e demens e agora mais demens. Mas se trata sempre de uma doença e não da sanidade das religiões, igrejas e movimentos. Mas isso, seguramente, passará e predominará a convivência mais tolerante e apreciadora das diferenças.
O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos diferentes que para aqui vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, uma pequena antecipação simbólica de um paraíso não totalmente perdido e sempre resgatável: a humanidade unida, una e diversa, sentados à mesa numa fraterna comensalidade, desfrutando dos bons frutos de nossa boníssima, grande, generosa Mãe Terra.
*Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor, é membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes).
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