Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
O fiscalismo financeiro que se impõe nas últimas décadas é parte da lógica do capitalismo neoliberal
A lógica do Estado capitalista integra uma ampla interação social e muitas regras institucionais, sendo que a decisão das referidas regras depende da capacidade organizacional de cada sociedade, das condições de acumulação de capital e da lógica do desenvolvimento desigual, essência do capitalismo.
Quando se analisa o Estado capitalista, os fatores de observação devem ser sistematizados na sua totalidade enquanto forma social subordinada ao Capital, ou seja, o controle do Estado é historicamente disposto aos interesses dos financistas e controladores da riqueza social. Esse determinismo não impede, que em diversos momentos, a disputa social por parcela do chamado “fundo público” se coloque, como parte da ampla guerra de interesses que são próprias do capitalismo.
Assim, os aspectos chamados de “fiscalidade” dos Estados capitalistas, especialmente orçamentários, tributários e de gastos públicos, devem ser analisados dentro da perspectiva exposta em um trabalho hoje clássico da economia política: The fiscal crisis of the State, do marxista James O’Connor, no qual o Estado “tem de desempenhar duas funções básicas e muitas vezes contraditórias: acumulação e legitimação”. Podemos complementar a percepção de James O’Connor, com alguns aspectos centrais do entendimento sobre o Estado capitalista, algo que nos possibilitará no momento seguinte, tratar a questão do controle do orçamento público e os limites da rigidez fiscal brasileira:
(i) As condições materiais de reprodução da sociedade, portanto a reprodução econômica, é a base necessária à afirmação da estrutura social e das consciências individuais, ou seja, a reprodução das classes sociais e das diferentes formas de subordinação e ordenação social, sendo o Estado o principal agente político mantenedor dessa ordenação social.
(ii) O Estado é uma forma resultante do conflito de classes, inerente às sociedades que, ao alcançarem certo nível de desenvolvimento das relações de produção e definidas por um padrão de apropriação privada da riqueza social, requerem um agente de defesa dos interesses da classe proprietária. Esse entendimento se contrapõe frontalmente à noção de Estado neutro ou curador dos interesses comuns da coletividade, dominante nas versões liberais e keynesianas, que fundamentam as teorias de finanças públicas.
(iii) Um terceiro aspecto diz respeito ao papel repressivo do Estado, na forma de poder de polícia, capaz de assegurar o direito privado de propriedade dos capitalistas.
(iv) O Estado capitalista é uma forma orgânica do capital, componente necessário ao processo de reprodução social deste, cumprindo funções políticas centrais, como as de legitimação ideológica e de controle social, porém irremediavelmente vinculadas às funções econômicas, que atuam integradas ao processo de acumulação e reprodução econômica, como os aspectos de suprimento de infraestrutura social, como destacado por James O’Connor.
(v) O Estado desempenha, ao lado das funções de controle e legitimação do domínio de classe, funções gerais necessárias à reprodução do coletivo social, muitas das quais de natureza técnica, como atividades administrativas vinculadas ao desenvolvimento social em sua totalidade (seguridade social, educacionais, etc.).
(vi) Convém, finalmente, observar que a análise do Estado capitalista em geral, necessariamente, tem que ser complementada pela sua concretização em termos de Estado nacional. A nação moderna redefine seu interior e exterior a partir da lógica de reprodução ampliada do capital, cuja base nacional é uma necessidade, porém crescentemente circundada pela condição do mercado mundial e das condições de desenvolvimento desigual, algo que define a relação entre Estados e sociedades subordinadas e dependentes e Estados e sociedades centrais e controladoras da ordem capitalista mundial.
O Estado moderno, tem sua capacidade de movimento vinculada às condições de acumulação capitalista nacional, que determina os limites da receita fiscal, ao lado das condições de atração de fundos que financiam a expansão de sua dívida pública.
James O’Connor, marxista estadunidense de enorme originalidade, assinalou, ainda nos anos 1970, que os aspectos fiscais do Estado burguês são limitados e restringidos pelo poder de definição do capital e de suas crises. A crise fiscal de 1970 foi um dos momentos mais graves do capitalismo, objeto de análise daquele autor. No centro da referida crise a estagnação econômica, com queda da taxa de lucro, e elevação dos preços relativos, estabelecendo um cenário de estagflação, processo que desencadeou a crescente dificuldade de financiamento do Estado e o fim da era dourada do capitalismo do pós-Guerra.
Duas falências ainda no final dos XX foram marcantes. A falência da cidade de Nova York em 1973, que inaugurou, como assinala David Harvey (2016), as “práticas neoliberais de presentear os bancos com condições de risco moral [nulo] e repassar ao povoa conta por meio da reestruturação de contratos e [redução] dos serviços municipais”, um dos marcos da reconstrução liberal e apanágio para a financeirização posterior de toda economia estadunidense. A segunda falência histórica foi a do Estado argentino no início dos anos 2000. A repercussão da falência argentina se mantém até hoje e, talvez, somente com uma ruptura social e política radical estabeleceria uma nova ordem naquele país.
A lógica fiscal está subordinada a cinco fatores, sendo que a análise somente de alguns fatores, negligenciando parte dos mesmos, torna as explicações do Estado fiscal limitada. Tratar esses elementos são centrais para o atual debate.
(1) os gastos estatais são funcionais a acumulação de capital, como trataram tanto autores marxistas, quanto keynesianos, estabelecendo a impossibilidade da dissociação entre Estado e relações econômicas mercantis, compreendendo certa funcionalidade condicional do Estado.
Segundo James O’Connor os gastos estatais apresentam duas funções básicas: “capital social e despesas sociais”. O primeiro consiste em gastos necessários a “acumulação privada lucrativa”; o segundo, são “projetos e serviços” que necessários a “manutenção da harmonia social”, ou seja, as condições gerais de ordenamento social imprescindíveis a legitimação e controle do sistema capitalista. De antemão torna-se lógico que o ordenamento fiscal imposto ao Estado financeirizado brasileiro inviabiliza as referidas funções.
(2) o financiamento fiscal se baseia em regras tributárias, cuja base relaciona-se a capacidade de geração de excedente econômico crescente, sendo que parcela desta renda liquida gerada é destinada ao Estado. Assim, o fundo público requer parte do excedente social produzido, sendo que em sociedades periféricas, a regressividade tributária estabelece que parcela dos salários e rendas do trabalho financiem o Estado, aprofundando o caráter desigual dessas sociedades.
(3) Outro aspecto fundamental refere-se ao caráter dependente dessas sociedades, cuja reprodução requer fluxos de transferência de valor para as sociedades e Estados centrais, o que explica, em grande medida, o torniquete fiscal mais rígido em sociedades como a brasileira, um grande tributário para o centro imperialista estadunidense. O chamado “Regime Fiscal” que se estabelece em sociedades periféricas se baseiam em condições de rigidez na manutenção de resultados primários sempre positivos, o objetivo disso é garantir excedentes de rendas sociais que se transfiram aos controladores financeiros do sistema.
(4) As regras fiscais não são neutras ou, para utilizar o jargão econômico, ajustes técnicos, o que se tem são dimensões da política e da disputa social. Assim, a luta de classes nos coloca a dimensão da disputa conflitiva por parcela do fundo público, única forma de garantir que o orçamento público não se resolva somente como um meio de transferência da riqueza social para os controladores financeiros.
(5) A manutenção de qualquer sistema de compras garantidas de títulos da dívida pública garante a crescente financeirização da economia brasileira. Segundo o sistema brasileiro não há riscos para os controladores da dívida pública brasileira, o que impõe um sistema que transfere valor permanentemente e empobrece os brasileiros. Vale notar que o modelo operacional que irá permitir a adoção do sistema de dívida pública como instrumento de transferência de valores do Estado para os segmentos financeiros, no caso brasileiro, foi estabelecido desde meados dos anos 1970 como parte das políticas fiscais da Ditadura Militar, sendo mantidas desde então.
Esse modelo operacional, segundo Lopreato (2013), “praticamente eliminou o risco do sistema financeiro e consolidou os interesses em torno da rolagem da dívida pública” e da manutenção de um sistema de ganhos permanentes para os controladores financeiros, especialmente os Bancos. A dinâmica de reciclagem e recomposição da dívida pública estabelecida a partir deste modelo torna o sistema de dívida um elo fundamental para absorção de parcela sempre significativa do fundo fiscal. Assim, em 2010 o pagamento de juros representou 5,10% do PIB, em 2011 representou 4,90% do PIB, em 2015 representou 4,30% do PIB e, em 2022 representou 5,96% do PIB (conferir https://www.bcb.gov.br/estatisticas/tabelasespeciais).
O fiscalismo financeiro que se impõe nas últimas décadas é parte da lógica do capitalismo neoliberal, sendo que o efeito prático desse tipo de política neoliberal adotada pelo Estado na periferia do capitalismo foi o aumento de transferência de riqueza por meio de fluxos de capital, por um lado, e por outro, ajustes estruturais necessários à garantia dos credores de que as dívidas serão magnanimamente pagas, mesmo que isso acarrete grandes prejuízos ao bem-estar da nossa população.
O que se observa de rigidez fiscal em relação a algumas sociedades, como a brasileira, não se refere a tecnicidade ou, diríamos, ideologia da técnica econômica, algo tão caro a ideologia burguesa a qual os economistas são fiéis servidores. Refere-se fundamentalmente a transferência de valor que se faz mediante o empobrecimento da sua população e a garantia de ganhos rentistas para os 1% endinheirados.
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CRV).
Referências
James O’Connor. The fiscal crisis of the State. Transation Publishers, New Jersey (2002).
David Harvey. Os sentidos do mundo: textos essenciais. São Paulo: Boitempo, 2016.
Francisco. L. C. Lopreato. Caminhos da Política Fiscal no Brasil. Editora Unesp: São Paulo, 2013.
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