Os sinais da paz

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Por LUIZ MARQUES*

Os sinais se espargem em Israel, com os ventos da luta pela paz vindos do mundo inteiro

No século XIX, muitos pesquisadores acharam que a física estava chegando ao fim. Mas a natureza continuou a surpreender os cientistas. No século XX, os liberais acreditaram que a história estava chegando ao fim, com a vitória da democracia representativa e a economia de mercado simbolizada pela Queda do Muro de Berlim. Mas a sociedade se reinventou – para melhor, com a consciência ecossocialista; para pior, com a tríplice ascensão do neoliberalismo econômico, o fundamentalismo religioso e o neofascismo que se espalhou qual uma tempestade pelos hemisférios Norte e Sul.

No século XXI, os sionistas creram na possibilidade beligerante de dar um fim a um povo não eleito, o povo palestino. Mas os israelenses no penúltimo dia do ano de 2023, em atos de rua com uma multidão de manifestantes nas cidades de Tel Aviv e Cesareia, onde o primeiro-ministro tem reside, gritaram “Não” e exigiram “Novas eleições”. O jornal The Times of Israel divulgou que as manifestações ocorreram “de forma sóbria e solene”. Um eufemismo cuidadoso para dizer que os acontecimentos reuniram setores importantes na balança da opinião pública local – pela paz.

Parcela dos israelenses, do centro político, concluiu que o premiê Benjamin Netanyahun, após o fracasso em libertar o restante dos reféns do Hamas, coloca Israel (ela sim) em risco de chegar a um fim com os bombardeios sobre a Faixa de Gaza. A prática genocida do governo em curso recende os algozes nazistas no Holocausto. O risco das vítimas de outrora é trocar de posição com os carrascos. Felizmente a voz do mundo ecoa intrafronteiras do Estado chancelado pela ONU, no pós-Guerra.

Grande notícia

O Estado de Israel provocou o deslocamento de um milhão e meio de pessoas de suas casas. Em compensação, acrescentou tijolos morais para a reconstrução da Palestina, com a solidariedade da maioria das nações no mapa-múndi, salvo exceções cada vez mais reticentes perante o genocídio. A exemplo dos Acordos de Paris, em 1973, que acabaram com a invasão dos Estados Unidos no Vietnã graças às mobilizações massivas dos jovens estadunidenses – o brado dramático das mães israelenses (“Tirem nossos soldados de Gaza”; “Israel não sobreviverá”; “Acordo Diplomático já; Abaixo Netanyahun”) indica que o discurso sionista de tergiversação sobre o massacre de mulheres, crianças e civis perde credibilidade nas próprias hostes. Essa é a grande notícia da virada de ano.

É possível a coexistência na região, sem que o Estado de Israel se sinta ameaçado por um Estado da Palestina. Na verdade, é o segundo que terá ainda motivos para ter medo do primeiro. Afinal, no levantamento do Censo de 2021, Israel possui 9,3 milhões de habitantes. Na Faixa de Gaza moram (ou moravam) 2,3 milhões. Fácil saber quem, em regra, leva vantagem nas relações internacionais. A diferença populacional importa entre os países, para não mencionar o poderio militar bélico.

Entre 1815 e 1914, confiou-se no equilíbrio entre as potências europeias (Alemanha, França, Reino Unido), na defesa da propriedade privada, do padrão ouro e da dominação colonial. Fatores julgados suficientes à acumulação do capital e à prosperidade do continente. Só esqueceram que as desigualdades sociais internas são elementos desestabilizadores. Viu-se na Revolução de 1917 com a deposição do Czarismo e a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS).

As alianças entre Reino Unido e França, em 1904, para dividirem o Egito e o Marrocos, e com a Rússia em 1906 para dividir a Pérsia, ao mesmo tempo que a Alemanha consolidava alianças com a Áustria e a Hungria romperam o equilíbrio que assegurava a paz relativa. Enquanto os países isoladamente tinham uma grandeza equivalente, a concorrência para evitar os desequilíbrios entre os séculos XV e XVIII ajudou a impor o respeito mútuo. O tamanho servia à equanimidade.

Ousar conviver

Em 1800, a população da França (30 milhões de habitantes) era 50% maior do que a população da Alemanha, que ainda não passara pela unificação de Otto von Bismarck. De certo modo, explica a extraordinária hegemonia militar e cultural francesa na Europa e os planos imperiais de Napoleão Bonaparte, à época. Com a estagnação do crescimento da França, por um longo século, a coisa muda de figura em função do controle de natalidade precoce atribuído a uma descristianização. Em 1910, é então a Alemanha (60 milhões de habitantes) que se torna quase 50% maior que a França. Os problemas reiniciam, lembrando as concepções cíclicas da história e do eterno retorno.

A geopolítica líquida do alvorecer do século passado acentuou os erros herdados do conflito de 1870-71, que trouxeram pesadas penas econômicas para a França. A França faz a revanche com o término da I Guerra, impondo uma absurda reparação a ser paga pela Alemanha, em torno de 350% da renda nacional de 1919-1921. O montante era impagável. Prenunciava-se a II Guerra, e os 20 milhões de russos mortos, 8 milhões de alemães, 6 milhões de judeus e 500 mil de norte-americanos. Convém memorizar os números fabricados em escala industrial. Como diz Thomas Piketty, se a questão demográfica não esgota os motivos dos conflitos, suscita ideias de poder que podem ser pegas por aventureiros. Quiçá banhos de sangue tenham ensinado prudência à política.

O fato de vários países disporem de bombas atômicas, hoje, não diminui a insensatez humana. Aumenta a responsabilidade de seus governantes diante da possibilidade concreta de uma nova guerra, de proporções e consequências inimagináveis pelos critérios do bom senso. Selado o acordo diplomático para a criação de um Estado da Palestina, dada a disparidade de forças militares e de equipamentos de alta letalidade, a apólice de seguro dos palestinos nas próximas décadas será a capacidade de o mundo resgatar os valores do iluminismo, para “ousar conhecer” para além dos preconceitos étnicos e/ou religiosos – e também “ousar conviver” sob um regramento universal.

Para instaurar e manter a paz duradoura, o mundo depende cada vez mais da tolerância, e menos da idiossincrasia das grandes potências da atualidade. A adesão dos Estados Unidos e da União Europeia ao proclamar “apoio incondicional” ao direito de defesa de Israel logo se transformou no direito de um Estado que se autodefine democrático empregar métodos terroristas para combater o terrorismo. Resultou no ódio paroxístico. Várias nações agora puxam o freio de mão, e pedem paz.

O ano de 2024

Nesse sentido, líderes de um país com longa tradição de concertação (o Brasil) e um presidente com reconhecimento e influência no tabuleiro mundial (Lula da Silva) têm um papel a desempenhar, apesar dos comentários da imprensa vira-lata sudestina. Há que respaldar o povo israelense contra o pensamento único do sionismo, de extrema direita, cujo expoente-monstro é Benjamin Netanyahu. Os sinais se espargem em Israel, com os ventos da luta pela paz vindos do mundo inteiro. Que 2024 seja o ano da reconciliação (sem anistia) no Brasil, e da fundação do Estado da Palestina. Brindemos.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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