Paulo Emilio e o cinema “marginal”

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Considerações sobre a crítica cinematográfica de Paulo Emilio Salles Gomes

1.

Paulo Emilio Salles Gomes, no final de sua carreira, pagou tributo ao Cinema Novo, apesar de criticado por não assumir sua parcela de liderança. Dos grandes críticos da década de 1950 foi quem que fez o salto para a modernidade dos anos 1960 com maior agilidade. Indo além, conseguiu desembarcar na década de 1970, encarando de frente com seu ferramental crítico a delirante máquina desejante do Cinema Marginal (Sganzerla, Bressane, Tonacci, Rosemberg, Neville, Reichenbach, Jairo Ferreira e outros).

No retrospecto de seu encontro com a geração cinemanovista (Glauber, Cacá, Joaquim Pedro, Hirszman, Saraceni, no núcleo), talvez tenha ficado faltando, efetivamente, uma crítica mais ampla ao filme que marcou a guinada do movimento e do cinema latino-americano, Deus e o Diabo na Terra do Sol/1963, realizado justamente no momento em que estava enfronhado com os jovens. É o que parecia ser natural em 1963/1964, embora nesses anos já estivesse escrevendo menos no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, envolto com outros interesses.

Deve-se frisar, no entanto, que Paulo Emilio foi um crítico antenado com os suspiros da nova produção desde seus primeiros lampejos. Destaca-se em relação a outros críticos contemporâneos, como Alex Viany, mais pesado para acompanhar a virada e fora de foco quando decide aderir de corpo e alma. Ou mesmo da crítica mineira da Revista de Cinema (exceção Mauricio Gomes Leite) que, para o espanto do jovem Glauber quando passou por Minas, ainda discutia dilemas entre roteiro e o ‘específico fílmico’ (na segunda fase da Revista, a sintonia com o jovem cinema é mais forte).

Paulo Emilio, evoluindo desde o ‘mestre’ Sussekind (como o chamava), consegue percorrer com agilidade a ponte na relação com o novo cinema (o que não é algo evidente), saltando entre gerações. É importante destacar o salto, pois críticos com raízes fortes na modernidade dos anos 1930, demoraram a se sintonizar na ebulição do grande momento do cinema brasileiro, já fermentando desde meados dos anos 1950 pelas trilhas do realismo.

De uma geração logo posterior ao grupo do Chaplin Club, Paulo Emilio foi, segundo próprio testemunho, levado ao cinema pelas mãos do amigo Plinio Sussekind, na Paris de antes da guerra. É notável, portanto, a facilidade com que se desvincula das amarras do cinema mudo. Isto talvez ocorra em função de outra estadia na capital francesa, a partir de 1946, quando tem contato com a crítica realista do primeiro Cahiers du Cinema (fundado em abril de 1951), particularmente André Bazin, que reencontrará no Brasil do Festival Internacional de São Paulo em 1954, data que coincide com sua volta definitiva ao país. É também da primeira estadia em Paris, e do convívio com Henri Langlois, que herda (e traz para cá, em meados dos anos 1950) a ideia do cinema como arte merecedora de preservação, canalizando sua inegável capacidade de articulação para a criação da Cinemateca Brasileira.

Quando estoura o Cinema Novo, Paulo Emilio estará, portanto, em seu ‘front’ já como crítico maduro, com espaço de reflexão único (pela extensão e pela repercussão) em um jornal de grande circulação no país, o caderno cultural semanal Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, no qual escreve entre outubro de 1956 e dezembro de 1965.

Coloca seu peso em abrigar os jovens em sua coluna, flexionando a crítica nessa direção (daí seu estranhamento com outro crítico do jornal, Rubem Biáfora), recebendo rapidamente o reconhecimento da nova geração, inclusive Glauber Rocha. Também vem em parte de si, ainda influenciado pela cinefilia francesa e o realismo baziniano (além do faro cinematográfico de George Sadoul), a redescoberta de Humberto Mauro (ver Mauro e due altri Grandi em “Il Cinema Brasiliano”, Silva Editore/1961, texto centrado na obra de Humberto Mauro). Paulo Emilio (que mais tarde, em 1972, defenderia uma tese acadêmica sobre o diretor[i]) está na base do movimento que levou, culminando na Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (livro de 1963 do primeiro Glauber), à colocação do cineasta mineiro, e não Mario Peixoto, em destaque como antecessor no panteão do cinema brasileiro erguido pela nova geração em busca de parâmetros e raízes.

Humberto Mauro faz satisfatoriamente a ponte entre o cinema mudo, o início do sonoro nos anos 1930 e o cinema do final dos anos 1950, ainda marcado pelo realismo do pós-guerra, no qual o Cinema Novo inicial vem se inserir. Paulo Emilio teve olho para descobrir que o esquecido Humberto Mauro, afinal, possuía força motriz para fazer girar uma linha evolutiva.

Seu ‘mestre’ Plinio Sussekind não consegue segui-lo com a mesma precisão, ainda que mantivesse contato, junto com Otávio de Faria, com os primeiros passos dos jovens cineastas na segunda metade dos anos 1950 (na atividade cineclubista de Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni). Da iniciação com Sussekind ainda respiramos, na primeira crítica de Paulo Emilio, a busca da velha geração pelo ‘absoluto’ cinematográfico no sublime inefável da imagem muda.

A proximidade revela também o fascínio que exerce sobre Paulo Emilio, como na geração de André Bazin (que é a sua), a figura e o cinema de Charles Chaplin, mito integral das potencialidades maiores da nova arte. É nesse campo que Limite (1931/Mário Peixoto) nada em largas braçadas – e por isso mesmo fica distante dos impulsos estéticos do primeiro Cinema Novo, quando adquirem coloração própria. “Aborto típico de uma cultura subdesenvolvida”, assim Glauber consegue terminar seu capítulo sobre Limite (“O Mito Limite”) em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, depois de algumas considerações mais ponderadas.[ii]

A sensibilidade de Salles Gomes com seu tempo irá, no entanto, além do salto para realismo baziniano e o encontro com o Nelson Pereira dos Santos de Rio 40º/1954 e Rio Zona Norte/1957, salto que seus mestres do Chaplin Club já não dão. Seu último fôlego crítico aparece sintetizado em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento (1973)[iii] quando mistura uma análise de corte desenvolvimentista da produção cinematográfica brasileira no século XX, ao “deslocamento do eixo da criatividade” em 1968, com “a crise individual substituindo a social e permitindo que quarentões vividos experimentassem uma nova juvenilidade”[iv]. Avança, assim, pelo cinema pós-1968, encontrando ferramentas para traçar uma vereda que o levará até próximo do Tropicalismo, abordando com agilidade o veio mais forte que deriva do Cinema Novo: aquele que adentra o Cinema Marginal, pela estética do lixo e da exasperação, na órbita das potências dionisíacas da curtição/abjeção.

Já nos debates do início dos anos 1960 é intensa a participação de Paulo Emilio no clima de época que dá ensejo ao surgimento do Cinema Novo. Mantém com diversos cineastas (e em especial com Glauber Rocha) diálogo criativo. Essas atividades na São Paulo da época giram em torno do grupo reunido no embrião da Cinemateca Brasileira, em sintonia com as reivindicações dos jovens cineastas cariocas/baiano. Críticos como Paulo Emilio Salles Gomes, Almeida Salles, Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet e Gustavo Dahl (que ainda não dirigia) deram apoio ao cinema emergente nas páginas do Suplemento Literário, abertas na coluna de Paulo Emilio e em outros órgãos de imprensa.

Além da realização da Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, em 1960, na qual se fermentaram ideias soltas, Paulo Emilio também esteve envolvido na Homenagem ao Cinema Brasileiro, ocorrida durante a Bienal de São Paulo de 1961. Foi quando o novo cinema brasileiro apareceu pela primeira vez com maior evidência, às vésperas da eclosão madura da trilogia de 1963 (Vidas Secas/Nelson Pereira dos Santos; Os Fuzis/Ruy Guerra; Deus e Diabo na Terra do Sol/Glauber) e também às vésperas do inesperado sucesso (Palma de Ouro em Cannes) de Oswaldo Massaini e Anselmo Duarte com O Pagador de Promessas/1962 (filme fora do grupo cinemanovista).

Nas recordações presentes na autobiografia de Paulo César Saraceni,[v] ficaram marcadas na memória do autor as discussões acaloradas dessa Mostra de 1961 (para a qual também veio Glauber) e principalmente os debates ácidos com a dupla César Mêmolo e Carlos Alberto de Souza Barros, da velha geração paulista que viveu de dentro os estúdios. Testemunhos convergem que a Homenagem ao Cinema Brasileiro ocorre sob o guarda-chuva de Paulo Emilio (figura sênior que se preserva das discussões mais fortes), se constituindo numa espécie de lançamento oficial do Cinema Novo. É o reconhecimento público definitivo do movimento, o que envolve, igualmente, uma autodefinição mais restrita do grupo.

Dessa época é Uma Situação Colonial? texto que marca a virada do crítico em direção ao cinema brasileiro e o novo clima que, em 1960, se esboça no horizonte.[vi] Anteriormente, os artigos mais significativos de Paulo Emilio possuíam um perfil enciclopédico, lidando com retrospectivas e autores clássicos do cinema mundial.

A partir de Uma Situação Colonial? ele encontra o veio bom para focar no cinema nacional. Estabelece um recorte no qual a arte do cinema no Brasil consegue, finalmente, dialogar de modo orgânico com a produção artística de seu tempo e em seu país, do mesmo modo que outras artes dialogam com críticos da sua geração como Antonio Candido ou Décio de Almeida Prado. Em Uma Situação Colonial?/1960inicia-se o caminho que desembocará, doze anos depois, em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento/1973, fechando a carreira de Paulo Emilio na crítica e na teoria. É o momento no qual as ferramentas estão fora da caixa, mas ainda não se dá a elas a utilidade que a forma madura permitirá.

Em Uma Situação Colonial? Paulo Emilio compõe a função do nacional pela brasilidade, fincando seu eixo nos dilemas da posição de inferioridade do espectador/crítico. É algo que surge na proximidade especular com um mesmo-de-si fraturado que forma uma cultura da inferioridade e do ressentimento arrogante. A proximidade pelo si-mesmo é inevitavelmente cindida e o que se quer evitar brota, trazendo junto o sentimento de vergonha. Salles Gomes estabelece então as posições que passarão a focar seu pensamento.

A estrutura central está na nova atração que exerce sobre si o cinema nacional. O afeto desse encontro surge pioneiramente no ensaio definido como um “estado de aflição”. Um “estado” que seria resgatado logo a seguir pelo Cinema Novo, mas que cujo resgate ainda não é antevisto em 1960. O texto de Uma Situação Colonial? (inicialmente uma “tese” apresentada na Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica)[vii] está mergulhado no sentimento negativo e possui um forte tom depressivo.

O corte economicista, já com marcas do desenvolvimentismo de cores isebianas (as “ambições desenvolvimentistas no terreno artístico e industrial”[viii]), faz sua estreia no pensamento de Paulo Emilio. Uma Situação Colonial? marca, portanto, o encontro do crítico maduro com o cinema brasileiro, encontro já esboçado, mas que parece estar sendo evitado há anos (ao menos na intensidade que agora se coloca), seja em função dos longos períodos no exterior, seja pela falta efetiva de um interesse contínuo. Os dilemas do cinema brasileiro, no início e meados dos anos 1950, não atingiram o socialista Paulo Emilio como atingiram os participantes marginais da aventura industrial (Alex Viany, Nelson Pereira e outros), que enveredaram pelo realismo de esquerda, próximo do PCB, depois dos Congressos de Cinema no início da década.

A proximidade de Paulo Emilio com o cinema brasileiro do qual Uma Situação Colonial? é testemunho dá-se na forma e na intensidade das paixões que estouram na maturidade. A partir da descoberta, abandonará todas as outras amantes e só terá olhos para a jovem escolhida. A correspondência é mútua e também se retroalimenta. O cinema brasileiro efetivamente desponta com um brilho diferenciado e, a partir de 1961, encontra em Paulo Emilio um ancião (o ‘quarentão’ avançado de meados do século XX) de braços abertos para recebê-lo.

A nova paixão pede exclusividade e ele não hesitará em concedê-la, inclusive porque a beleza juvenil que desponta chama a atenção de todos. O mais interessante – e que justifica as reclamações posteriores da nova amante – é que Paulo Emilio findará por abandoná-la, meio ao pé do altar, no auge de seu esplendor, para escolher sua prima pobre, a rejeitada pornochanchada (ou, especificamente, o “filme ruim” nacional), seguindo a trilha até desembocar nas exacerbações do Cinema Marginal.

Paulo Emilio é inconstante e Glauber, em alguns momentos, será amargo sobre esse ponto. Acusa-o, em Revolução do Cinema Novo, de haver aderido à ‘intentona udigrudista’ (Cinema Marginal) e de não assumir quem o chama para liderar: “Paulo Emilio não consegue, como John Reed, criticar o fenômeno com quem convive e o chama para liderar. Recusa a coroa várias vezes, deixa o grupo sem o Comando Imperial (…) e quando da intentona udigrudista de 1968, apoia os insurrectos como se o cinema novo fosse o Politburo”.[ix] Quando o Cinema Novo e os jovens, que tanto havia estimulado em 1960/1961, se afirmam definitivamente (além da trilogia mencionada de 1963,todo o grupo é muito consistente ao chegar ao longa-metragem: Leon Hirszman, Joaquim Pedro, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl, Walter Lima Jr), Paulo Emilio estará às voltas com problemas pessoais. Entre Brasília e São Paulo, dá a impressão de não estar tão concentrado na crítica de cinema, ou aberto para se entusiasmar com o reconhecimento estrondoso do cinema que, pioneiramente, havia pressentido e apostado.

Também o projeto da Cinemateca continua absorver seu tempo e suas preocupações. Quando retorna e se debruça sobre o assunto já estamos no final da década de 1960, início dos anos 1970, e o contexto é outro. O ‘momentum’ havia passado e novamente Paulo Emilio mostra sua personalidade radical que assume as rupturas e o choque sem receios, algo que traz desde a juventude. Agora encontra terreno para manter a posição desafiadora noutro lugar. O Cinema Novo sai do primeiro plano e a estética do Cinema Marginal aparece próxima. É claro o destaque dado em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento para a ‘novíssima’ geração Marginal.

2.

Paulo Emilio aceita, na maturidade, num modo recomposto, a influência da sensibilidade estética de seu primeiro mestre de juventude, Oswald de Andrade. Não é mais o ‘piolho da revolução’, termo que Oswald criou para responder a uma resenha que Paulo Emilio escrevera. Ou ainda o ‘potro’ que dá coices sem ser cavalo para machucar, outra descrição adjetiva de Oswald de Andrade que qualifica o jovem rebelde (“Oswald, feliz, explicava para seus amigos que minha forma vital de expressão era o coice, mas que não houvesse engano, não se tratava de um cavalo, mas sim de um potro”[x]). Paulo Emilio parece nutrir, conforme avançam os anos 1960, uma proximidade renovada por aquele a quem chamou de seu primeiro ‘mestre’ e depois se colocou como ‘discípulo’.

A nova proximidade é influenciada pela reavaliação da obra oswaldiana na onda da contracultura e do Tropicalismo. No final da década de 1960, Salles Gomes segue os ventos ideológicos do momento, abandonando progressivamente o realismo do pós-guerra e as ilusões desenvolvimentistas do cinema industrial presentes em Uma Situação Colonial? (mas que ainda respiramos em Trajetória). Caminha cada vez mais na direção da nova contemporaneidade fragmentada e libertária, descobrindo que é possível afirmar a nacionalidade no avesso da indústria cultural e do filme ruim, desde que haja dentes suficientes para uma deglutição criativa movida por apetite antropofágico. Talvez seja o movimento inverso daquele feito nos anos 1930, quando se moveu, segundo Décio de Almeida Prado, da proximidade adolescente com a iconoclastia modernista (“O critério era um só. Tudo o que me parecesse moderno tinha valor”[xi]) para o pensamento social que, na realidade, também aí ficava incluído.

A postura oswaldiana que retorna no Paulo Emilio do final da vida é a do jovem potro, só que agora o coice não busca atingir as costas do poeta modernista. Paulo Emilio, quando era potro, fez parte do grupo dos ‘chato-boys’, definição de Oswald para os jovens, depois na revista Clima, que o procuravam no final dos anos 1930, próximos do pensamento acadêmico que emergia no projeto da Universidade de São Paulo. Era um Oswald de Andrade já ligado ao Partido Comunista, marcado pela influência das lutas sociais na década de 1930 e pela ascensão da preocupação social regionalista, mas que tinha ainda um pé excessivamente preso em 1922, segundo o olhar crítico do “duro” Paulo Emilio.

É como traça sua personalidade o amigo Décio de Almeida Prado em Paulo Emilio quando jovem: “os romancistas do sofrido Nordeste é que encarnavam para nós a verdadeira modernidade, ampla, generosa, próxima do povo, ciente de suas responsabilidades sociais, sem os sestros e maneirismos formais de 1922, sepultados em 1929 juntamente com a euforia econômica. Estamos na década de 30, não na de 20, eis a dura advertência que Paulo Emilio faz a Oswald, sobre quem julgava possuir a vantagem da juventude (…)”.[xii]

Décio refere-se a crítica positiva de Paulo Emilio a O Moleque Ricardo/1935, o romance social de José Lins do Rego, e a leitura a contrapelo, com má vontade (e pronta para o ‘coice’), de O Homem e o Cavalo/1934. A crítica tem o título de O Moleque Ricardo e a Aliança Nacional Libertadora e sai em 1935, quando do lançamento do livro de José Lins, apesar de sua amizade com Oswald de Andrade. Segundo Paulo Emilio em sua crítica, O Homem e o Cavalo está repleto de “obscenidades inúteis” motivadas “pela excitação que Oswald de Andrade ficou de querer ver a cara que o burguês faria ao ouvir tanto nome feio. O que aconteceu foi que Oswald não conseguiu ver a cara do burguês nem do proletário”.[xiii]

O Homem e o Cavalo era a peça que Oswald tentava emplacar com referências diversas à suas leituras marxistas, forçando, no novo espírito de época, o tom libertário ao lado da revolta socialista, com alegorias “de alta fantasia”. A crítica do moço ousado (com pouco mais de 18 anos) provoca a resposta mal-humorada do poeta a qual contém, entre outras diatribes, o epíteto “piolho da revolução” acima mencionado: “(…) vou explicar-lhe o que é O Homem e o Cavalo” (escreve Oswald para Paulo Emilio), “é uma peça de alta fantasia onde coloco o homem na transição – entre o cavalo de guerra e de turfe (sociedade burguesa) e o cavalo-vapor (sociedade socialista). Para pôr em choque os dois mundos, faço o professor varar a estratosfera e ir buscar no velho céu das virgens e de Pedro a gente mais reacionária que há. Essa gente vem encontrar aqui primeiro o Fascismo, depois a Revolução e a Socialização”.[xiv]

É, portanto, neste background que o jovem Paulo Emilio encontra o Oswald de Andrade já marcado pelo esgotamento de 1922 e pela ascensão da preocupação social regionalista – mas ainda mordendo forte, e fora das medidas, com seu veio sarcástico fragmentário.

No final dos anos 1960, no momento em que certa verve de 1922 retorna a todo vapor pelo Tropicalismo, Paulo Emilio (quando velho…) não tem dificuldade em se antenar nos tempos correntes. Pela contracultura, oscilando entre curtição e horror, o pulso antropofágico é incorporado no segundo fôlego do Cinema Novo (desde Terra em Transe até Macunaíma; O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro; Brasil Ano 2000; Pindorama e outros), sendo radicalizado em seu extremo no Cinema Marginal.

O mesmo vendaval chega em Paulo Emilio e ele o assume num radicalismo que pode parecer estranho para quem olha de fora o crítico. É agora “ancião” e no final da vida, como o “quarentão vivido” que 1968 permite “experimentar nova juvenilidade”, conforme escreve em Trajetória. A postura iconoclasta do jovem ‘piolho da revolução’ é desperta, novamente em sintonia com seu tempo. O que talvez explique a sensação de distanciamento que os cinemanovistas (exceção Saraceni) manifestam consigo, seguindo-se a série de artigos atenciosos que Paulo Emilio direciona, no início da década de 1970, aos “jovensíssimos” expoentes do Cinema Marginal.

Essa é a guinada que respiramos no horizonte em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento e que dá a personalidade diferencial do ensaio. Trata-se da defesa de um descompasso: aquele que engole a intertextualidade e leva à surpreendente incorporação do ‘outro-lixo’, se nacional, pela crítica de Paulo Emilio. ‘Outro’ textual que, para os Marginais, é a chanchada, o filme de terror, o western, o filme noir ou a ficção científica, sempre em sintonia com a sensibilidade cinematográfica moderna da Nouvelle Vague que emplaca o intertexto na descoberta do autorismo hollywoodiano. Como os jovens Marginais da Boca, Paulo Emilio também vai além e, a seu modo, consegue engolir não só a chanchada, mas a também pornochanchada, uma vez aberta a porta do ‘filme ruim’ que chama para conversa.

Nesse sentido, Paulo Emilio critica a ausência do viés deglutidor no primeiro Cinema Novo: “o fato de querer se distanciar da chanchada inteiramente, foi algo que, eu penso, não ter feito bem ao Cinema Novo”.[xv] No deslocamento, Paulo Emilio consegue se aproximar da sensibilidade antropofágica, agora reciclada na década de 1960, abrindo-se afirmativamente para a deglutição intertextual do ‘filme ruim’ nacional, seja através do filme ruim ‘chanchada’, ou, ainda mais chocante, da ‘pornochanchada’. Podemos dizer que a pornochanchada é o bispo Sardinha de Paulo Emilio: engoli-la funda a nação e inaugura o espelho do inverso, no modo afirmativo e como potência liberadora. Torna-se raiz de uma brasilidade que não é só possível, mas desejável naquele momento do cinema brasileiro.

3.

Para um crítico que viveu o ambiente cinematográfico nacional dos anos 1950 o passo é largo. A novidade de Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento está no abandono progressivo (embora sempre presente no horizonte) do antigo contexto ideológico. O tom no ensaio continua sombrio, inclusive em função do momento agudo de sua publicação (1973). Paulo Emilio sofria perseguição política e profissional que atingia também os que lhe eram próximos.

Mas a diferença entre os contextos de Uma Situação Colonial? e Trajetória é evidente. Saímos de um texto que, em 1960, mostra um crítico cansado, à beira de um ataque de nervos, parecendo desistir justamente quando o dia está para raiar. Doze anos depois, quando escreve Trajetória,o autor já experimentou e vivenciou de dentro o grande cinema brasileiro de 1963/1964 e da segunda metade da década de 1960, com sua constelação de obras primas e amplo reconhecimento internacional.

Detalhando o hiato, existe em Uma Situação Colonial? a frustração retrospectiva de quem, em 1960, olha para trás e vê os resultados pífios obtidos no esforço da tentativa industrial dos estúdios. A alienação da crítica de cinema descrita em Uma Situação Colonial? está na origem da visão de Paulo Emilio de que o cinema brasileiro é a outra coisa do filme estrangeiro, é o outrem como expressão daquilo que, simultaneamente, é a coisa-mesma do espectador/crítico: “O filme nacional é um elemento perturbador para o mundo, artificial mas coerente, de ideias e sensações cinematográficas que o crítico criou para si próprio. Como para o público ingênuo, o cinema brasileiro também é outra coisa para o intelectual especializado”[xvi].

Em Trajetória a formulação do nacional como “outra coisa” já está madura e toma sua definição final em oposições que ficaram conhecidas, como o achado da “dialética rarefeita”: “Não somos europeus nem americanos, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar”.[xvii]

Na dialética do outrem pela coisa-mesma, entre o não-ser e o ser-outro da cultura, Paulo Emilio finca na tropicalista “incompetência criativa em copiar” a originalidade estrutural do nacional. A coisamesma é a impossível identidade Brasil sem fissura, aquela do nós-mesmos que necessariamente desvela a redoma protetora que o crítico construiu para si na proximidade com o padrão estrangeiro da coisa-outra. A redoma do crítico é definida pela cicatriz que inaugura (seguindo outro termo que tornaria clássico, no tom isebiano-desenvolvimentista da época): a “marca cruel do subdesenvolvimento”. Cicatriz que já aparece em Uma Situação Colonial? definida em expressões como“alienação”, “depauperação”, “insatisfação”, “amargura”, “atmosfera envenenada”, “mesquinharias”, “capital dilapidado”, “certa secura”, “mal-estar”, “humilhação”.

No intervalo do choque entre o que se pretende ser e o que se é emerge o “sentimento de humilhação”. O diagnóstico é agudo quando relaciona essa posição de “humilhação”, vira-lata, ao “sarcasmo demolidor” do crítico de cinema ao nacional-espelho que o atormenta. A posição inferior é o traço central da brasilidade que Paulo Emilio delineia em Uma Situação Colonial/1960 e que evolui, no modo que estamos descrevendo, em Trajetória/1973. Nesse último ensaio, a inferioridade do ‘ruim’ nacional encontra, pela “dialética rarefeita” do ser-outro, uma fresta para deixar o beco sem saída da crítica acirrada. Agora, sendo sintoma, abre-se no modo afirmativo da incorporação intertextual deglutidora. Se o primeiro realismo do pós-guerra não consegue encontrar oxigênio para respirar o veio ‘citacional’, o novíssimo cinema (e sua crítica) conjugam, pela incorporação, o verbo ‘avacalhar’ na dialética rarefeita da incompetência criativa em copiar – aquela do não-ser sendo outrem.

As duas visões panorâmicas do cinema brasileiro, escritas sob a influência do contexto da modernidade neo-realista dos anos 1950, Introdução ao Cinema Brasileiro/1959de Alex Viany e Revisão Crítica do Cinema Brasileiro/1963 de Glauber Rocha, ainda se vinculam ao horizonte estranho à deglutição e, portanto, ao vômito. A chanchada é abordada de passagem para ser colocada em segundo plano, pois não cabe no script. Para Viany, crítico que escreve no Rio de Janeiro, ela existe quando se aproxima da composição popular que ele tem como parâmetro (Moacyr Fenelon), mas a dupla Oscarito/Grande Otelo, em filmes que são hoje clássicos, praticamente passa desapercebida.

As menções restringentes e desabonadoras ao gênero permanecem até tardiamente na crítica de Alex Viany. No caso de Glauber Rocha, a chanchada é o grande ausente da Revisão Crítica. O panorama que Glauber traça em 1963 é ainda marcado pela geração anterior de Alex Viany, do primeiro realismo da década de 1950, acrescido das ambições do jovem cinema em erguer um panteão autoral.

O estímulo no espírito tropicalista aberto para a absorção citacional da cultura de massa (chegando à pornochanchada como a canção chega “às relíquias do Brasil”, virando no “superbacana superhist-superflit”), mostra a postura de Paulo Emilio em sintonia com o novíssimo Cinema Marginal. Seu posicionamento deixa espaço para o dialogismo intertextual avacalhado com o filme B hollywoodiano e a mídia de massa (televisão e rádio) que, no Cinema Brasileiro, é inaugurado por O Bandido da Luz Vermelha/1968ou, ainda mais radical, pelo lixo de A Mulher de Todos/1969 (ambos de Rogério Sganzerla).

A chanchada em Trajetória já é vista como “marco” (“o fenômeno cinematográfico que se desenvolveu no Rio de Janeiro a partir dos anos 40 é um marco”[xviii]) pois “produção ininterrupta durante cerca de vinte anos” e “se processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao interesse estrangeiro”[xix]. A frase serve de introdução para um longo parágrafo de elegia no qual já se respira a recuperação contemporânea do gênero, deixando definitivamente para trás o contexto do Viany de 1959 (“uma enxurrada até agora ininterrupta de chanchadas musicais, sempre apressadas e quase sempre desleixadas”[xx]).

A descrição cronológica do Cinema Brasileiro em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento vai um ponto além. Respira por dentro a crise que vive o Cinema Brasileiro no auge dos anos de chumbo, em plena vigência da ditadura militar no seu período mais duro. Não termina, no entanto, no beco sem saída no qual o Cinema Novo se meteu. Partimos da Bela Época, passamos pelas “antológicas” chanchadas, pela “grandiosa” Vera Cruz, pelo realismo do “comunismo político” e do “difuso sentimento socialista” dos anos 1950, e desembocamos num Cinema Novo já ‘desintegrado’ (em 1973) e que “nunca alcançou a identificação desejada com o organismo social brasileiro”. A análise continua até a máxima contemporaneidade. Chega às últimas marolas da onda contemporânea, denominadas por Paulo Emilio como ‘Cinema do Lixo’. A linha de chegada do trem da história em Trajetória é esticada até aí.

Já em 70 anos do Cinema Brasileiro: 1896/1966,[xxi] texto publicado em 1966 em co-autoria com Adhemar Gonzaga (seria o responsável pelas ilustrações e legendas), o destaque do crítico parece ficar na recuperação historiográfica da produção dos primeiros anos do século XX, trazendo apenas um esboço do Cinema Novo inicial “nos cinco primeiro anos da década de 60”, praticamente reduzido a um “fenômeno baiano”[xxii]. Pode-se argumentar que, tanto em Panorama como em Trajetória, Paulo Emilio fica devendo uma visão mais ampla do Cinema Novo. Em ambos aparece espremido, sem o espaço devido.

Em um caso é esboçado ainda muito no início e, no outro, depois de findo, sem sensibilidade para a potência duradoura de suas obras no Cinema Brasileiro. O Cinema Novo em Trajetória, apesar de ser caracterizado“depois da Bela Época e da Chanchada” como o “terceiro acontecimento global de importância na história do nosso cinema”[xxiii], está impedido pela ditadura de se mover livremente e “órfão de público catalisador”. Seus principais participantes “se dispersaram em carreiras individuais norteadas por temperamento e gosto de cada um”.[xxiv]

Os desenvolvimentos individuais dos cinemanovistas não possuem, neste momento, para Paulo Emilio, a organicidade autoral que adquire o cinema feito pela geração que lhe segue, a do ‘Cinema do Lixo’: “Nenhum deles (dos cinemanovistas), porém, se instalou na falta de esperança que cercou a agonia desse cinema. A linha do desespero foi retomada por uma corrente que se opôs frontalmente ao que tinha sido o cinemanovismo e que se autodenominou, pelo menos em São Paulo, Cinema do Lixo”[xxv]. A “linha do desespero” – tão bem pressentida ao finalizar a “trajetória” do Cinema Brasileiro – vem na crista da onda gerada por um movimento que ele vislumbra sobrepondo-se ao Cinema Novo, na sequência de uma sensibilidade geracional.

A intuição do crítico localiza bem, em 1973, os dois eixos estruturais do Cinema Marginal: a exasperação existencial na abjeção e na representação do horror; e o diálogo intertextual com o brega, ou o lixo/objeto-ruim. A descrição que faz é adjetivada. Os jovens, que “poderiam, em outras circunstâncias, ter prolongado e rejuvenescido a ação do Cinema Novo cujo universo e tema retomam em parte”, agudizam este horizonte “em termos de aviltamento, sarcasmo e uma crueldade que nas melhores obras se torna quase insuportável pela neutra indiferença”.[xxvi]

O velho crítico, ainda formado pela ética do bem, fica espantado com a radicalidade da representação da abjeção extrema (‘quase insuportável’) levada a cabo pelos Marginais. O conjunto dos filmes é percebido em sua unidade, algo que muitos insistem até hoje em negar. Sentimos que a pena de Paulo Emilio se anima no contato com as pulsões desordenadas do Cinema Marginal, emergindo então as belas figuras de seu estilo de maturidade, que ainda terá como último fruto a literatura: “conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de artesãos do subúrbio” (certamente aqui se refere à Boca), “o Lixo propõe um anarquismo sem qualquer rigor ou cultura anárquica e tende a transformar a plebe em ralé, o ocupado em lixo. Esse submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, é, porém, animado e remido por uma inarticulada cólera. O Lixo teve tempo, antes de perfazer sua vocação suicida, de produzir um timbre humano único no cinema nacional”[xxvii].

E é a esse ‘timbre humano único’ do suicídio e do lixo como resíduo exasperado do autoritarismo militar, manifestação de uma ‘inarticulada cólera’ social, que Paulo Emilio dedicará a melhor parte de seus últimos escritos voltados ao cinema.

4.

No final da carreira, em críticas publicadas principalmente em 1973/75, na sequência de Trajetória, é reafirmada a posição de incorporar o ‘ruim’, realçada para além do Cinema Marginal. Paulo Emilio não só afirma que “morreu em mim o espectador estimulado pelo produto estrangeiro”[xxviii], mas, o que provoca muita comoção na época, elege “o cinema brasileiro de má qualidade” como forma de arte que se abre criativamente para a percepção do si-mesmo, compondo assim um universo inarredável: “o subdesenvolvimento é fastidioso, mas sua consciência é criativa”[xxix].

Ou ainda: “Morreu em mim o espectador estimulado pelo produto estrangeiro e constato que não se trata de um fenômeno pessoal”.[xxx] O entusiasmo com a nova posição recém-descoberta é patente nas críticas de 1974 e 1975, as últimas publicadas antes de sua morte: “emana da análise de um mau filme brasileiro uma alegria de entendimento que o consumo da arte de um Bergman, por exemplo, não proporciona a um espectador brasileiro”.[xxxi]

Essa “alegria de entendimento” compõe, portanto, em seu núcleo, a posição crítica de Paulo Emilio sobre o nacional que vimos evoluindo a partir de Uma Situação Colonial? Agora está recarregada numa empatia que possui, na segurança da maturidade, o impulso necessário para tornar-se excludente e afirmar a brasilidade numa espécie de promiscuidade carnal. Existe, assim, um entendimento sobretudo alegre e afirmativo do nacional, enquanto potência que traz consigo uma hermenêutica da experiência: o ser-mesmo da interpretação eclode na criativa incapacidade, ao se refletir no ser-outrem. Incapacidade afirmativa que só a fusão de horizontes no não-pertencimento comum pode oferecer: “a gente encontra tanto de nós num mau filme que pode ser revelador em tanta coisa da nossa problemática, de nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da nossa boçalidade inseparável da nossa humanidade, que em última análise é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros”.[xxxii]

A satisfação estética com o estrangeiro é classificada como uma “intimidade pela rama” (superficial), pois não possui o elemento essencial para o pertencimento comum na fusão de horizontes que é a língua: “(intimidade) maior com cinema inglês, francês, menor evidentemente com cinema japonês, para o qual há tantos especialistas, portanto às vezes sem ao menos saberem a língua. É o caso do cinema sueco (…) eu sinto muito claramente como nós somos, dentro do cinema estrangeiro, espectadores diminuídos”.[xxxiii] A singularidade do saber que traz a identidade na expressão pela fala (que no cinema vai além do conhecimento pelo letreiro), torna-se o parâmetro único e diferenciado de comunicação no filme nacional. Trata-se de elemento estrutural na interpretação, ao qual retorna Paulo Emilio.

A elegia do ‘mau filme’, do filme ‘boçal’ nacional, encaixa-se, portanto, como luva neste contexto e não é surpresa constatar sua confluência na discussão da estética que cerca o Cinema Marginal. Ao sintonizar-se com o veio intertextual que vem junto à incorporação do ‘filme ruim’, atrai a admiração dos jovens da Boca que faziam o “cinema do lixo”. Não é à toa, portanto, o tom polêmico que o crítico assume para defender o cinema brasileiro cafajeste/boçal em entrevista que deu a membros desta geração (Carlos Reichenbach, Eder Mazini e Inácio Araújo), publicado no número solitário da revista Cinegrafia, em 1974.[xxxiv]

A sintonia com a sensibilidade do Cinema Marginal da Boca parece ficar mais forte devido à presença da trinca entrevistadora, tomando tonalidades agudas em certos momentos. São deixados explícitos argumentos que encontramos nuançados em Trajetória e também em críticas de jornal entre 1974 e 1975. O resultado final talvez tenha assustado Paulo Emilio, a ponto de classificar o conjunto, em nota enviada posteriormente aos editores, como “um aglomerado caótico de palavras e frases’, ‘caos’ de onde acabam ‘emergindo ideias que reconheço, me são caras e talvez sejam minhas’[xxxv]. As colocações da entrevista se direcionam no sentido de afirmar onde se localiza, naquele instante, a linha progressiva do cinema brasileiro, vislumbrada em Trajetória. E ela aparece na geração que, no início dos anos 1970, pegou o bastão deixado pelo Cinema Novo.

A defesa da fruição do nacional e da brasilidade, passando inclusive pelo lixo do filme ruim, é polêmica. Em longa carta datada de 3 de outubro de 1974, dirigida ao “amigo” Paulo Emilio (assim assina) e depois publicada, em 1978, no volume 6 de Ensaios de Opinião[xxxvi], Mauricio Segall manifesta sérias reservas sobre a visão que Paulo Emilio amadurecia do cinema brasileiro. O tom da missiva beira a indignação. Mostra uma reação comum no campo ideológico da esquerda tradicional às estripulias do Cinema Marginal e à sensibilidade tropicalista, próximas ao tipo de atitude que se convencionou a chamar de ‘desbunde’.

Haveria Paulo Emilio ‘desbundado’? parece perguntar o missivista. Essa é a cobrança que podemos sentir por detrás da carta de Segall. O questionamento é forte, chegando a acusar Paulo Emilio de tendências fascistas. Sente-se que a abertura para a deglutição antropofágica da indústria cultural, afirmando o filme ruim, toca uma corda íntima. Segall quer resgatar o nacional a partir de um eixo que corretamente pode ser remetido a sensibilidade cepecista (CPC – Centro Popular de Cultura) do início da década de 1960, anterior ao golpe de 1964, desligada, ou em franca oposição, às nuances da incorporação intertextual múltipla sem eixo gravitacional, direção à qual Paulo Emilio pisca com todos os olhos em sua crítica tardia.

Elegia que, para Mauricio Segall, não passa de ‘nacionalismo pessimista e desesperado’. Pessimista, pois valoriza o que não é bom (o filme ruim) em um momento político delicado, em direção ao qual não levanta a voz da esperança ideológica. Desesperado, pois vai ao encontro da representação da exasperação e do deboche nos anos de chumbo, parecendo nela se afundar. Paulo Emilio não só deixaria ao largo a demanda de um engajamento existencial mas, contrapondo, coloca como avacalho o que só pode ser classificado de “alienado”.

Um outro adjetivo usado para designar o contexto é o de “irracionalidade”, forma acusativa bastante presente no discurso crítico da época – e não somente no cinema. A demanda ecoa por toda carta de Mauricio Segall, característica do recorte que, um dia, Paulo Emilio teve proximidade. Agora, no entanto, a radicalidade da virada da década de 1960/1970 põe em xeque. O campo no qual Mauricio Segall habita quer exercer uma espécie de má consciência difusa sobre o desvio do colega, qualificando sua direção como pertencendo às águas turvas da “irracionalidade” – expressão que serve para designar as potências desenfreadas do excesso e da afirmação pura, sem a volta do parafuso da culpa.

Por fora do pensamento e da representação, para além da identidade e da semelhança, o que respira na “irracionalidade” designada são as formas intensas da curtição/êxtase e da abjeção/horror, figurações que não regurgitam pelo círculo da negação, mas afundam a fissura da diferença.

A cobrança pela práxis responsável é tentativa de puxar a orelha de Paulo Emilio, acusado de levar não só a si para o mau caminho, mas também aqueles que influencia como crítico e professor. Como notamos, Paulo Emilio parece ter acordado na maturidade o espírito anárquico que nutriu em seus primeiros anos. Apesar de declarar explicitamente que não se considera moderno (no sentido que a expressão teve nas décadas de 1920 e 1930), e não compartilhar, em sua época de juventude, a sensibilidade dos modernos para o cinema (como a compartilharam Plínio Sussekind Rocha ou Otávio de Faria), no final da vida a reencontra naquilo que a descoberta da voragem modernista antropofágica significou para os jovens cineastas das décadas de 1960 e 1970. O tributo ao filme ruim, e a sintonia com seu significado para a novíssima geração Marginal, mostra que a verve mais ácida e criativa de Paulo Emilio permaneceu com intensidade até o fim.

*Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Instituto de Artes da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Cinema Marginal (1968-1973): a representação em seu limite (Brasiliense).

Notas


[i] Depois o livro, Gomes, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguases e Cinearte. São Paulo, Perspectiva, 1974.

[ii] Rocha, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963. Pg. 45.

[iii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Paz e Terra/Embrafilme, 1980. Originalmente publicado na Revista Argumento. Rio de Janeiro, nº 1, out. 1973, pp 55-67.

[iv] Idem, p. 86.

[v] Saraceni, Paulo César. Por Dentro do Cinema Novo – Minha viagem. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

[vi] Gomes, Paulo Emilio Salles. Uma situação colonial?IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. Vol. II, pp 286-291. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 19 novembro de 1960, pg. 5.

[vii] O texto publicado possui pequenas diferenças com relação à “tese”. Ver Gardnier, Ruy.  http://www.contracampo.com.br/15/umasituacaocolonial.htm

[viii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Uma situação colonial. Op. Cit, pg 288.

[ix] Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo (Roberto Pires 80). SP, Cosac Naify, 2004. Pg 462.

[x] Gomes, Paulo Emilio Salles. Um Discípulo de Oswald em 1935. IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Vol II. Op. Cit. 25 de outubro de 1964. Pg 443.

[xi] Idem, pg 440

[xii] Prado, Décio de Almeida. Paulo Emilio quando jovem. IN Calil, Carlos Augusto e Machado, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio – Um intelectual na linha de frente. São Paulo, Brasiliense, 1986. Pg 23.

[xiii] Gomes, Paulo Emilio Salles. O Moleque Ricardo e a Aliança Nacional Libertadora. A Platéia, São Paulo, 21 setembro 1935. IN Calil, Carlos Augusto e Machado, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio – um intelectual na linha de frente. Op. Cit, pg 36.

[xiv] Andrade, Oswald. Bilhetinho a Paulo Emilio. A Platéia. São Paulo, 25 setembro 1935. IN Idem, pg 38.

[xv]Entrevista a Carlos Reichenbach, Eder Mazini e Inácio Araújo. Paulo Emilio – eu só gostava de cinema estrangeiro. Revista Cinegrafia nº1, 1974. Reproduzida em Caetano, Maria do Rosário (org.). Paulo Emilio Salles Gomes – o homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto. Brasília, Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2012. Pg 81.

[xvi] Gomes, Paulo Emilio Salles. Uma situação colonial?. Op. Cit, pg 291.

[xvii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Op.Cit. Pg 77.

[xviii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Idem, pg 79.

[xix] Idem, p. 79-80.

[xx] Viany, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Revan, 1993. Pg 121.

[xxi]  Gonzaga, Adhemar, Salles Gomes, P.E. 70 anos de cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1966. Esse mesmo texto, mais ampliado, é republicado com o título de Panorama do Cinema Brasileiro: 1896/1966. IN Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Op.Cit, pg 38-69.

[xxii] Gonzaga, Adhemar; Salles Gomes, P.E. 70 anos de cinema brasileiro. Op.Cit., pg 117.

[xxiii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Op. Cit. Pg 82.

[xxiv] Idem, pg 84.

[xxv] Idem, Ibidem.

[xxvi] Idem, Ibidem.

[xxvii] Idem, ibidem.

[xxviii] Gomes, Paulo Emilio Salles. Explicapresenta. Jornal da Tarde, São Paulo, 10 de abril de 1973. IN Calil, Carlos Augusto. Machado, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio – Um intelectual na linha de Frente. São Paulo, Brasiliense/Embrafilme, 1986. Pg 262.

[xxix] Idem, pg 263.

[xxx] Idem, pg 262.

[xxxi] Cinema Brasileiro na Universidade/ A Alegria do mau filme brasileiro. Movimento, 1 de setembro de 1975. IN Calil, Carlos Augusto. Machado, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio – Um intelectual na linha de Frente. São Paulo, Brasiliense/Embrafilme, 1986. Pg 308.

[xxxii] Entrevista a Carlos Reichenbach, Eder Mazini e Inácio Araújo. Paulo Emilio – Eu só gostava de cinema estrangeiro. Revista Cinegrafia nº1, 1974. IN Op. Cit. Pg 79.

[xxxiii] Idem, ibidem.

[xxxiv] Entrevista a Carlos Reichenbach, Eder Mazini e Inácio Araújo. Paulo Emilio – eu só gostava de cinema estrangeiro. Revista Cinegrafia nº1, 1974. Pg 74/92. IN Op. Cit.

[xxxv] Bilhete reproduzido juntamente com a entrevista Paulo Emilio – eu só gostava de cinema estrangeiro. Op. Cit. Pg 75.

[xxxvi] Segall, Mauricio. Cinema Brasileiro X Cinema Estrangeiro. Ensaios de Opinião. Vol 6 (ou 2+4), 1978. São Paulo. Pp 30/36.

A revista/livro Ensaios de Opinião, perseguida pela censura e pela ditadura militar desde 1973, foi editada inicialmente como Argumento.Teve a participação ativa de Paulo Emilio Salles Gomes em seu corpo editorial, do primeiro número até sua morte. A numeração particular da publicação, assim como as mudanças de nome, foram estratégias para fugir à perseguição e à censura. É lá que Paulo Emilio publica Cinema – Trajetória no subdesenvolvimento,no primeiro número de Argumento. Em 1978 (depois de um interregno no qual Argumento virou Cadernos de Opinião e, em seguida, Ensaios de Opinião, editados por Fernando Gasparian e Florestan Fernandes Junior), Ensaios traz um dossiê dedicado à memória de Paulo Emilio, com organização de Jean-Claude Bernardet. Sobre a revista, enquanto polo de resistência à ditatura, ver Candido Jefferson. Argumento (1973-1974) e Cadernos de Opinião (1975-1980): marcos de uma passagem. Revista Linguagem & Ensino, Pelotas, Vol. 24, nº1, jan-mar 2021.


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