Por LUIZ MARQUES*
Decifrar o enigma, reatualizado em tempos de fake news, como antídoto à estratégia para destruir – por dentro – a fé na democracia
Após o século XVIII, com a destruição do regime fundado sobre a hereditariedade, o direito divino e os privilégios aristocráticos, a democracia foi vinculada à presunção do governo do povo para o povo. Dois séculos adiante, a Société du Mont-Pèlerin (Hayek, Mises) erigiu a liberdade individual como valor supremo. Desde então, as liberdades coletivas e a igualdade sofrem investidas por parte da dominação capitalista. Movida pela dinâmica selvagem de acumulação sem uma preocupação climática, a história entendida como progresso linear não cumpriu as promessas de igualitarização, e esgaçou as desigualdades. Calcada na liberdade individual, que a economia traduziu por laissez-faire, a modernização ficou sintetizada nos mandamentos do Consenso de Washington (1989).
O retorno ao universalismo do iluminismo oitocentista no pensamento contemporâneo (vide o número de publicações neoiluministas, no último período) é a reação ao desigualitarismo crescente, que Pierre Bourdieu e colaboradores enfeixaram na pesquisa sobre a exclusão, em A miséria do mundo. Era o prenúncio das ações desintegradoras do neoliberalismo, impulsionado por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. O resultado foi a mercantilização dos humanos e da natureza pela (ir)racionalidade que plantou a semente do neofascismo, para celebrar o livre mercado e colher o obscurantismo que exala o ódio sob um pseudopatriotismo. Nunca tantos foram tão bestializados.
Na atualidade, a noção de direitos é absorvida pela apologia da propriedade privada. Essa é a tese desenvolvida por Alain Touraine, em Critique de la modernité, no tópico onde pergunta o que é a democracia. Tema que será dissecado pelo sociólogo no ano subsequente (1994), momento em que lança uma obra específica sobre o assunto: Qu’est-ce que la démocratie? Diversas categorias de análise se prestam a decifrar o enigma, reatualizado em tempos de fake news, como antídoto à estratégia para destruir – por dentro – a fé na democracia. Uma lista de construtos desfila abaixo.
1) Soberania popular. É reivindicada pelo populismo de esquerda com inflexão democrática ao assumir o acolhimento da maioria nas urnas que, segundo Alexis de Tocqueville, em A democracia na América, pode descambar na “tirania da maioria”. Ou no totalitarismo, sob o nazifascismo. Nos Estados Unidos e no Brasil, a soberania popular foi distorcida pelos reclames enfurecidos do populismo da extrema-direita ao invadir o Capitólio, lá, e ao afrontar o Supremo Tribunal Federal (STF), aqui. A epifania verde-amarela vandalizou símbolos da governabilidade republicana aos berros: “Supremo é o povo”. Desvios constitucionais que cobram punições ágeis e severas. Ao revés, em Tel Aviv, 100 mil manifestantes foram as ruas protestar contra a redução de poderes da Suprema Corte israelense, proposta encaminhada pelo governo autoritário de Benjamin Netanyahu.
A guerra semântica golpista procurou atrair um séquito digital. “Se em junho de 2013, as redes foram fundamentais para levar as pessoas às ruas; em 8 de janeiro, as pessoas foram às ruas para levar mais seguidores aos seus perfis de rede social. A data entrará para a história como o primeiro evento ‘instagramável’ de mobilização política, no Brasil. Tudo era produção de imagem para gerar engajamento”, diz o cientista político Miguel Lago, no artigo “Prendam os perfis” (Revista Piauí, 17/02/2023). A soberba levou à autoincriminação – filmarem a violação da Praça dos Três Poderes.
A passagem da soberania popular, da conquista pela força até uma postura de enaltecimento das diferenças e das minorias, evoca as tensões que atravessaram a revolução dos costumes, em Maio de 1968. A concepção negativa de liberdade (não ser obrigado a fazer algo contra a vontade) é um dos pilares da democracia. Salvo, se colocar em risco a sobrevivência dos demais como ocorreu no genocida negacionismo da pandemia e da vacinação, para a proteção geral contra o coronavírus.
2) Participação social. A democracia necessita da intervenção direta nas deliberações sobre a vida política. O exercício da cidadania (para os antigos uma obrigação moral, para os modernos uma práxis facultativa) reforça o desejo de pertencimento e coesão. Em sociedades multiétnicas e/ou marcadas por profundas divisões sociais, esse é um passo imprescindível para a recuperação dos sentimentos perdidos do bem comum e da territorialidade comum. Os processos de inclusão e mobilidade social reconstroem a democracia em nações fraturadas, com mecanismos capazes de acionar mais igualdade e solidariedade no tecido social para gerar uma consciência nacional.
Ser cidadão é se sentir responsável pelo funcionamento de instituições que asseguram direitos e permitem a manifestação pluralista de ideias e interesses. A democracia deve controlar a violência nas quatro linhas da Constituição. No dia seguinte do terror, o repúdio unânime dos signatários do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional (Câmara de Deputados e Senado) e da Suprema Corte do Judiciário foi a notícia que esquentou o coração dos democratas. Testemunho de uma República indignada com a ousadia da ignorância, frustrada na concertação do Estado de direito democrático.
O fato relativiza a narrativa otimista do retorno ao espírito das Luzes. Por extensão, acende o alerta vermelho às arregimentações com o objetivo de implantar a “democracia iliberal”, um conceito formulado pelo ultradireitista Viktor Orbán, na Hungria. O triângulo formado pelo consenso ao redor de valores culturais, o conflito entre posições dissonantes e o compromisso de uma resolução nos marcos jurídicos foram trocados pela tábua rasa do autoritarismo, se não pela escatologia. Em Brasília, mijaram e cagaram sobre obras de arte; depredaram peças e documentos inestimáveis.
3) Representatividade política. A representação reporta a institucionalização de refregas sociais pelo reconhecimento de sua legitimidade, para criar acordos. Não se trata de um simples método contábil para eleger representantes setoriais, mas da chance de trazer a público as disparidades que grassam nas dimensões econômica, social e cultural da sociedade. As divergências quando vêm à tona fortalecem as estruturas da institucionalidade e a imaginação democrática, ao contrário do que prega o pensamento neocolonialista em nome de totalidades abstratas, fluídas, emitidas à fórceps.
O vieux penseur liberal separa as esferas do social e do político. “A democracia supõe a sociedade civil associada à sociedade política: ambas independentes. O Estado estabelece a agenda da nação”. Nos anos 1990, um mandatário tucano reprimiu o movimento paredista dos petroleiros contra a privatização da Petrobrás. “O movimento sindical extrapolou. Discutir os salários e as condições de trabalho é uma coisa; outra, é a discussão sobre as privatizações. Temática a ser debatida pelos que detêm mandatos no Legislativo ou no Executivo. Sindicalistas não possuem. A greve é ilegal”. Usou de um arrazoado muito caro ao liberalismo clássico, já desfraldado pelo amigo intelectual francês.
Compreende-se que Bourdieu e Touraine ficassem em lados opostos no grande protesto de massas ao receituário neoliberal, encenado pelo funcionalismo público francês (1995). Enquanto o primeiro palestrava em apoio aos milhares de grevistas nas gares, o segundo dava entrevistas na televisão em favor das medidas fiscais austeras do primeiro-ministro conservador Alain Juppé, com ataques ao Estado de Bem-Estar Social. Repetia a subalternidade globalista do amigo presidencial brasileiro.
4) Os partidos. A escolha dos governantes através do programa dos partidos a que estão ligados é essencial à democracia. Mas sem informações sobre a política econômica dos candidatos e sobre as implicações nos principais domínios da existência em coletividade, os eleitores são manipulados pelo poder econômico. Demagogos que se anunciam independentes de interesses particulares (de grupo, casta ou classe) não conseguem explicar como se relacionam com os interesses nacionais e internacionais. Na confusão, a onda neofascista vota de arrastão no rebotalho político e cognitivo.
Alain Touraine acusa a democracia dos EUA (“país de cultura profundamente democrática”) de se submeter aos lobbies e se render ao aparelho burocrático dos partidos, transformados em máquinas eleitorais. Ao descobrir o óbvio, não gostou. Quanto a França, restava paralisada por ideologias que serviam de correia de transmissão ao voluntarismo político. Culpou os dirigentes partidários que mereciam a diabolização, por confundir as fronteiras do social e do político. Sua teoria aprisiona o real na jaula escolástica do academicismo, para rejeitar a intersecção prática das esferas, no caso.
O professeur também compara a democracia na Inglaterra (“sociedade de classes por excelência e mãe da democracia”) com a França. Classifica a inglesa de forte e, a francesa, de fraca, posto que os atores sociais seriam subordinados aos agentes políticos, na oposição ou no governo. “A atitude revolucionária não é favorável à democracia. Não enfrenta o conflito social com soluções ou reformas políticas; aponta contradições insuperáveis e a necessidade de eliminar os traidores do povo ou da nação, que conduzem o sonho da utopia social e politicamente homogênea”, emenda. “Eu falo sobre conflitos no bojo da modernidade, e não de contradições”. A crítica mira a esquerda.
5) Crescimento endógeno. A dualidade discursiva (social vs. político) não alcança a “dialética do concreto” para retirar o véu das alienações, dos preconceitos e das aparências enganadoras, na acepção de Karel Kosik. O erro teórico se estende às alternativas de superação, em cada conjuntura. Na América Latina, a redemocratização pós-ditaduras não reverteu a tendência ao neoliberalismo. Aumentou a marginalização social, o exército de reserva informal e o drama das iniquidades, como se o crescimento endógeno não contasse para uma democracia robusta. Não é possível promover a defesa ativa da democracia, se esta é submissa – na política – ao arbítrio das finanças, às famílias que controlam os meios de comunicação e às imposições do erodido imperialismo estadunidense.
As “elites” locais simulam estar acima das lutas entre o capital e o trabalho, que tensionam o status quo. Elas escondem as opções de sucateamento dos avanços adquiridos, junto com o entreguismo. Aos progressistas, cabe a tarefa de reorganizar as demandas represadas dos trabalhadores no plano político institucional e no extra-institucional, para além da despolitização da política e da economia.
Em um contexto histórico de ofensiva do capitalismo, potencializado pela hegemonia predatória neoliberal, o programa democrático mínimo ganha prioridade. A começar da prerrogativa de indicar de maneira autônoma e livre o presidente. Predicado contestado pela lumpemburguesia venezuelana e, frente à terceira vitória eleitoral de Lula, pelo bolsonarismo. Há que domar a pulsão despótica dos militares de intromissão indevida no teatro da política (o espectro do passado). Idem, no tocante ao hiperindividualismo que dissolve laços de sociabilidade, ampliando o vácuo propício à anomia.
6) Personalidade democrática. A sustentação da democracia precisa ser preparada cedo, através da educação nas escolas e nos lares para formar indivíduos com personalidade democrática, dispostos a confrontar as barreiras do colonialismo (racismo) e do patriarcalismo (sexismo). A personalidade que vige em nossa época é autoritária, racista, sexista, mais afeita às armas do que aos livros, à intolerância do que à tolerância, ao papel de consumidor do que o de cidadão. Sem a socialização de uma cultura igualitarista e plural, o feminicídio continuará em ascensão; os pretos carregarão ainda os grilhões do escravismo com os corpos vigiados, sob eterna desconfiança; os grupos LGBTs serão assassinados. É hora de pavimentar o caminho da liberdade e da igualdade, com bravura militante.
É hora de repensar em termos igualitários a “reprodução social”. A resiliência em face das pressões protofascistas tem de criar imunizações, desde a tenra infância. Eis a garantia maior para derrotar a barbárie que ronda a humanidade e a biodiversidade planetária. Não é suficiente que o governo, agora eleito e em atividade, estimule a participação cidadã na elaboração de políticas públicas e a governança do povo para o povo ocupe os ministérios. O embate ideológico cotidiano não pode ser subestimado, antes precisa ser pautado institucionalmente. A democracia não se resume a um sistema político. Guia-se pelos corrimãos da educação e da cultura. Tem caráter civilizacional.
Como no belo poemeto Lista dos Precisos, de Bertolt Brecht: “Muitos conheço eu que andam por aí com uma lista / Em que está o que precisam. / O que vê a lista, diz. É muito. / O que a escreveu, diz. É o mínimo. // Mas muitos mostram com orgulho a sua lista / Em que está pouco”. A sugestão contenta-se com elencar a soberania popular, a participação social, a representatividade política, os partidos, o crescimento endógeno e a personalidade democrática. Nesses cuidados mora a manhã.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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