Sílvio Santos vai aí

Imagem: Allec Gomes
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Por EUGÊNIO BUCCI*

Se algum dia alguém disser que este país não passa de um grande auditório, deverá recolher direitos autorais para Silvio Santos

A morte de Silvio Santos vem reafirmar o bordão que ele entoava na abertura de seu programa dominical. Brilhantinado, sorridente, engravatado, o animador do Brasil inteiro cantava que era “hora de alegria” e convidava o auditório a “sorrir e cantar”. Lá-lá-lá-lá. Ele seguia: “do mundo não se leva nada”. Nada mesmo, nem uma lembrança.

O mundo da televisão é especialmente ingrato, volúvel, displicente. Vive de encenar amores, mas não sente falta de ninguém. A televisão produziu estrelas ofuscantes com a mesma velocidade que as jogou no esquecimento escuro, para sempre. Quem guarda hoje alguma recordação de Flávio Cavalcanti? Quem foi mesmo Airton Rodrigues? Francisco Petrônio, você sabe? Baile da saudade? TV Paulista? Esses nomes se dissolveram nos fantasmas tremeluzentes das telas em preto e branco feito um reclame dos cobertores Parahyba. Nada se leva, nada se lembra.

É verdade que, de Silvio Santos, demoraremos mais para nos esquecer. Ele atravessou eras inteiras sem perder o jeitão empertigado de mascate galante. No início da década de 1970 já era uma instituição nacional das tardes de domingo, e isso na tela da Rede Globo. Roberto Marinho era seu patrão. Depois, caiu nas graças da ditadura, ganhou um canal só seu, o SBT, virou magnata das comunicações, e nunca abandonou o sacerdócio profano ao centro do auditório. Ali encontrou sua religião e o seu habitat.

Chamava de “colegas de trabalho” as mulheres contratadas para aplaudir os cantores convidados. Quando elas se estapeavam em busca das notas de dinheiro que ele jogava para o alto dobradas como aviõezinhos de papel, se contorcia de rir. Ele as via desesperadas, engalfinhadas, em luta corporal pelas cédulas miseráveis e gargalhava em “is” agudos que tinham uma nota de obscenidade, um toque de escárnio. “Vamos sorrir e cantar!”.

Ninguém riu tanto das colegas. Ninguém riu tanto dos concorrentes. Ninguém riu tanto dos humildes. Ninguém riu tanto dos governantes. Em seu programa de diversões a granel, criou um quadro para adular as autoridades, “Semana do presidente”, e as autoridades adoravam, sem se dar conta do próprio ridículo. Flertou com a política e por muito pouco não emplacou sua candidatura à presidência da República.

Para ele, o Brasil era um grande auditório – no que foi correspondido: para o Brasil, Silvio Santos era o maior dos animadores. Chacrinha que nos perdoe, mas era tropicalista em overdose. Silvio Santos, não, era na medida. Cafona? Sim, mas na medida. Ele se vestia como se fosse ao casamento da telespectadora, e ela o venerava como se ali, na tela colorida, estivesse o seu noivo, seu padrinho, depois o pai do noivo, um tio rico que caiu do céu, alguém cuja estampa valorizava sua sala modesta e sua tarde triste. Silvio Santos reinava, não tinha para mais ninguém.

Imbatível, criou uma escola de animadores, ou mais de uma. Inventou nada menos que Gugu Liberato, que se foi antes do mestre. Com seu estilo que se depurou a ponto de se petrificar na caricatura de si mesmo, fez a delícia dos imitadores. Mais do que imitadores cômicos, gerou sucedâneos tardios que se levam a sério e cortejam os palanques para quem sabe um dia.

As imitações, porém, jamais tiveram o baú de felicidades que só ele prometia com eficiência. Sílvio Santos levava o microfone espetado sobre a gravata, empinado, espevitado, como um punhal cravado no esterno. Aquele microfone era o seu cetro particular, simbolizava seu poder de dono da fala, de dono de tudo. “Vamos cantar!” Lançou marchinhas de carnaval que faturavam pesado.

Se algum dia alguém disser que este país não passa de um grande auditório, deverá recolher direitos autorais para Silvio Santos. O Brasil não é um pandeiro, com a licença do venerável Assis Valente, mas é, sim, um auditório continental. A TV Justiça que o diga.

Agora, o homem do baú parte. Sílvio Santos não vem mais aí. Sílvio Santos vai embora sem nada levar do muito que deixou, mas tira de cena algo que nunca mais será reposto: o sorriso mais profissional, mais imperturbável, mais impenetrável, mais inimputável e mais indecifrável da história do Brasil. Ele não levou o sorriso com ele, é verdade, pois do corpo não se leva nada, mas o sorriso desaparece assim mesmo. As plateias choram, ou engolem o choro. Nada a levar, nada a fazer. Sílvio Santos vai aí. Vai leve. Em algum lugar entre o ser e o nada, em algum desvão do tempo, ele ainda está rindo da gente.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


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