Militares, civis e o golpe

Imagem: Anna Shvets
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CARLA TEIXEIRA*

As lideranças e os partidos de esquerda precisam discutir projetos para modernizar as três armadas e profissionalizar a formação a fim de afastar os militares da política

Ao discutir a possibilidade de Jair Bolsonaro efetivar um “golpe” contra as instituições, é importante considerar que isso já aconteceu, em 2016, quando a presidente Dilma Rousseff foi submetida a um fraudulento processo de impeachment. Dar um golpe é como abrir uma porta sem saber o que há do outro lado. No nosso caso, havia Bolsonaro.

Mau militar, bom miliciano e parlamentar medíocre, Jair ofereceu às Forças Armadas (FA) aquilo que elas jamais tiveram após o fim da ditadura militar: a legitimidade do voto para voltar ao poder. Contando com um sistema partidário fragmentado e uma classe política devastada pelas investidas do poder judiciário -a operação Lava Jato prendeu ilegalmente Lula, líder nas pesquisas -, Bolsonaro e os milicos voltaram à presidência sem precisar de tanques nas ruas. A “tutela militar”, instalada com a fundação da República (1889), parecia assegurada, com garantias de expansão sobre o Estado e as instituições.

No entanto, a pandemia do novo coronavírus escancarou o despreparo do Poder Executivo para lidar com a situação de crise. Generais e Oficiais, ocupantes dos principais cargos no governo, agiram com indiferença e incompetência em suas funções. O ministério da Saúde, comandado pelo general Pazuello, da Ativa, é o exemplo mais doloroso dos custos de ter militar sem expertise em cargo estratégico. Até aqui, foram quase 600 mil vidas de brasileiros e uma crise sem precedentes desde a redemocratização. Como a conta sempre chega, a última pesquisa Poder Data mostrou um aumento na parcela da população que avalia o trabalho das forças armadas como ruim/péssimo e uma queda nos índices de ótimo/bom. Tudo isso reflete também a ação da CPI do Genocídio, cujas revelações escancararam para o público “a banda podre das forças armadas”: Oficiais corruptos que tentaram lucrar com a compra de vacinas enquanto brasileiros morriam aos milhares todos os dias. Os Oficiais responsáveis foram chamados a dar explicações. Mentiram desbragadamente e jogaram na cara de toda a sociedade que a “palavra de fé pública”, garantida aos militares, não passa de licença para delinquir.

Daí que surgem as ameaças de golpe, estória de voto impresso e desfile de sucatas para ameaçar (?) a sociedade. Cedendo à “tutela militar”, o judiciário convidou integrantes das forças armadas para compor uma “Comissão de Transparência Eleitoral”, notícia que só veio a público por descuido de seu realizador, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso- como se militares profissionais tivessem qualquer coisa a ver com processo eleitoral para terem a legitimidade de compor uma comissão dessa natureza(!). Tudo isso nos mostra que a união das instituições que deram o golpe, em 2016, apesar de abalada, não foi rompida. Prontamente, cinco ex-presidentes buscaram consultar os chefes militares sobre a possibilidade de um golpe que impeça as eleições de 2022. Os Oficiais afirmaram que o pleito irá acontecer e a posse será garantida. Minimizaram a participação de Bolsonaro em solenidades e formaturas militares com sinais de que não haverá quebra de hierarquia. Levantaram, todavia, a possibilidade de que o mesmo não ocorra com as Polícias Militares, contaminadas pelo bolsonarismo e a milícia, sujeitas a agitações que possam tumultuar o processo.

Convém lembrar que os militares estão assegurados em salários, cargos, benefícios e orçamento, de modo que há muito a perder ao sair do governo, principalmente agora que as instituições avançam para punir os milicos responsáveis pelos crimes da pandemia. Assim, não se pode descartar a possibilidade de que o plano seja insuflar Bolsonaro em suas ameaças golpistas, participando e sendo conivente com cada ato. Ampliar a tensão política até que seja inevitável o motim de milicianos e radicais neofascistas que querem fazer aqui o Novo Capitólio. Neste cenário, as forças armadas “profissionais e comprometidas com a Constituição e a democracia”, surgiriam como garantidoras “da lei e da ordem” (de acordo com o artigo 142 da Constituição) debelando os sublevados e carimbando para si o heroísmo do ato cívico que é premiado com outra saída conciliada do poder, sem que haja punições pelos crimes cometidos durante a pandemia. A tática política dos milicos é sempre a mesma: criar o problema para, em seguida, se apresentar como solução.

As Forças Armadas devem servir ao Brasil e não o contrário. As lideranças e os partidos de esquerda precisam discutir projetos para modernizar as três armadas e profissionalizar a formação a fim de afastar os militares da política, colocando um basta à secular “tutela militar”. Dado o inevitável desgaste de credibilidade das FA constatado junto à sociedade, o momento político nunca foi tão propício. A população precisa conhecer e adquirir consciência sobre as consequências nefastas da promiscuidade entre poder militar e poder político. Claro que há setores da sociedade civil que têm medo ou até mesmo apreciam a famigerada “tutela militar”, em muito por ela garantir seus interesses de grupo e classe. Mas o confronto é inevitável e, ao considerar o alerta que levou o general Braga Netto, advertido que poderia ser preso se tentasse impedir as eleições de 2022, pode ser que algo esteja mudando em nossa sociedade. Tomara.

*Carla Teixeira é doutoranda em história na UFMG.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eleonora Albano Julian Rodrigues Michael Löwy Luciano Nascimento Lorenzo Vitral Salem Nasser Rodrigo de Faria Gilberto Lopes João Sette Whitaker Ferreira Marilena Chauí Celso Frederico Priscila Figueiredo João Paulo Ayub Fonseca Paulo Sérgio Pinheiro Eliziário Andrade Eleutério F. S. Prado Paulo Fernandes Silveira Thomas Piketty Bento Prado Jr. Bruno Machado Anselm Jappe Ari Marcelo Solon Carla Teixeira Carlos Tautz Yuri Martins-Fontes Denilson Cordeiro Andrés del Río Flávio Aguiar Lincoln Secco Tales Ab'Sáber Valerio Arcary Claudio Katz Heraldo Campos Marcelo Módolo Ronald Rocha Slavoj Žižek Henri Acselrad Ronald León Núñez José Machado Moita Neto José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Trivinho Francisco de Oliveira Barros Júnior Antônio Sales Rios Neto Vladimir Safatle Milton Pinheiro Annateresa Fabris Manchetômetro Eduardo Borges Afrânio Catani Ronaldo Tadeu de Souza Berenice Bento Matheus Silveira de Souza Tadeu Valadares Marcos Aurélio da Silva João Feres Júnior Otaviano Helene Ricardo Musse Érico Andrade Ricardo Fabbrini Antonio Martins João Adolfo Hansen Fernando Nogueira da Costa José Costa Júnior Chico Whitaker Luiz Bernardo Pericás Osvaldo Coggiola Fernão Pessoa Ramos Maria Rita Kehl Marcus Ianoni Jean Marc Von Der Weid Daniel Costa Luiz Renato Martins Marcelo Guimarães Lima Celso Favaretto Marcos Silva Samuel Kilsztajn Chico Alencar João Carlos Loebens Atilio A. Boron Caio Bugiato Paulo Capel Narvai Liszt Vieira Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Ricardo Antunes Marjorie C. Marona Rubens Pinto Lyra Ricardo Abramovay José Dirceu Bernardo Ricupero Michael Roberts Mariarosaria Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Dênis de Moraes Andrew Korybko Mário Maestri Leda Maria Paulani Francisco Fernandes Ladeira Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Renato Dagnino Juarez Guimarães Jorge Branco João Lanari Bo Leonardo Avritzer Kátia Gerab Baggio Everaldo de Oliveira Andrade Tarso Genro André Márcio Neves Soares Gabriel Cohn Igor Felippe Santos João Carlos Salles Ladislau Dowbor Luiz Marques Paulo Martins André Singer Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Lima Castro Tranjan Jean Pierre Chauvin Alexandre Aragão de Albuquerque Paulo Nogueira Batista Jr Rafael R. Ioris Fábio Konder Comparato Marilia Pacheco Fiorillo Benicio Viero Schmidt Leonardo Sacramento Vinício Carrilho Martinez Walnice Nogueira Galvão Michel Goulart da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Henry Burnett Remy José Fontana José Geraldo Couto Vanderlei Tenório Flávio R. Kothe Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Brazil Dennis Oliveira Luiz Eduardo Soares Luiz Roberto Alves Luis Felipe Miguel Gerson Almeida José Luís Fiori Boaventura de Sousa Santos Leonardo Boff Gilberto Maringoni Sergio Amadeu da Silveira Armando Boito Antonino Infranca Valerio Arcary José Raimundo Trindade Luiz Werneck Vianna Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Pereira de Farias Luís Fernando Vitagliano Airton Paschoa Eugênio Bucci Alexandre de Freitas Barbosa Alysson Leandro Mascaro Elias Jabbour

NOVAS PUBLICAÇÕES