Por Ahmad Samih Khalidi*
Como ex-negociador palestino, sei que a solução de dois Estados de Joe Biden é pura ilusão
Ainda não é possível antever um claro desfecho político do governo israelense ou de seus aliados ocidentais, aparentemente ainda dispostos a apoiar a liberdade de Israel de punir o povo de Gaza sob o “direito de se defender”. No entanto, deixando de lado as vozes mais extremas que buscam depopular permanentemente a Faixa ou aniquilá-la com armas nucleares, dois objetivos amplamente consensuais podem ser deduzidos da postura israelense até agora.
O primeiro é que o Hamas deve ser inequivocamente derrotado e sua presença militar e político-civil erradicada de Gaza de uma vez por todas; e o segundo, que não deve haver retorno ao status quo ante – ou seja, qualquer regime pós-Hamas deve ser consistente com as necessidades de segurança de Israel e o trauma sofrido pelo povo israelense em 7 de outubro. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, confirmou isso ao afirmar que Israel manterá o controle de segurança “indefinido” sobre a Faixa, revertendo a retirada que teoricamente terminou em 2005.
A força armada do Hamas não é páreo para o poderio militar de Israel, e o resultado imediato no campo certamente refletirá esta disparidade. Mas o Hamas não está apenas profundamente enraizado no solo de Gaza como um movimento social e político; sua presença se estende pela região com uma extensa rede de quadros, simpatizantes e patrocinadores, incluindo a Irmandade Muçulmana mais ampla e seus movimentos afiliados globalmente.
Independentemente do que aconteça no confronto militar, a presença residual do Hamas e sua reivindicação de representar o espírito da resistência palestina provavelmente aumentarão sua reputação e capacidade de se renovar entre as massas de palestinos enfurecidos, frustrados e traumatizados pelas imagens de morte despejadas sobre os civis de Gaza. Mesmo aqueles que não apoiam o Hamas podem ser atraídos pela noção de resistência.
Vale a pena lembrar que a Faixa de Gaza foi o berço do movimento nacional palestino e suas facções armadas – desde a Fatah nos anos 1950 até a Jihad Islâmica Palestina e o Hamas nos anos 1980. Todos nasceram da experiência dolorosa de 75 anos de Gaza com a força bruta israelense, desde o abate de refugiados que tentavam retornar a suas casas e campos no “envelope de Gaza” após 1948, passando pelos massacres de manifestantes desarmados durante a primeira ocupação israelense de 1956, a brutal campanha de “pacificação” de Ariel Sharon em 1970-71, a era da ocupação dos colonos até 2005, as dúzias de operações israelenses contra Gaza antes da retirada de 2005, até o cerco e os repetidos assaltos sangrentos desde então. Aqueles que pensam que o banho de sangue em andamento reverterá essa história devem repensar esta perspectiva.
Mas, em vez de aprender com a história, a tendência parece estar indo em uma direção totalmente diferente. Ao lutar para definir um claro desfecho político, o presidente Joe Biden, entre outros, pediu um “horizonte” para uma solução de dois estados como seu ponto central. Operacionalmente, isso pode envolver a formação de uma força de paz árabe-palestina-internacional para assumir o lugar das forças israelenses após a derrota do Hamas, unificando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza sob o controle da Autoridade Palestina, revivendo as negociações israelo-palestinas sobre um acordo de status final e promovendo a segurança regional e a estabilidade buscando a normalização com Riad, junto com uma enorme quantidade de dinheiro saudita ou do Golfo para a reconstrução da Faixa de Gaza.
É difícil separar as vertentes de ilusão em um cenário como esse. Um futuro regime em Gaza baseado em um esforço policial permanente ou semi-permanente contra o Hamas ou outros elementos resistentes será percebido pelos palestinos como uma nova e hostil ocupação, agindo a serviço de Israel. Pouquíssimas forças árabes ou internacionais provavelmente serão tentadas por essa perspectiva. Se Riad pode buscar a normalização e se comprometer com a reconstrução de Gaza sem um claro senso de como a estabilidade e a liberdade da ocupação israelense serão garantidas é outra questão.
E é muito difícil ver Israel renunciando ao seu papel de segurança em Gaza para qualquer parte externa, colocando-se imediatamente em forte contenda com qualquer alternativa governamental local ao Hamas, seja palestina ou de outra forma. Por sua vez, a Autoridade Palestina precisará de mais do que palavras doces sobre um horizonte político para justificar qualquer retorno a Gaza sob controle militar israelense direto, ou com uma força de paz empenhada na des-hamização.
No entanto, talvez o maior obstáculo a qualquer solução de dois Estados revivida venha do próprio Israel. Qualquer movimento sério em direção a uma solução de dois estados necessariamente exigirá uma mudança significativa na realidade de um estado predominante em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia.
O terremoto de 7 de outubro provavelmente levará o público israelense ainda mais à direita. Os 750.000 colonos espalhados por Jerusalém Oriental e pela Cisjordânia – agora buscando armas para criar “zonas estéreis” ao redor de cidades e vilas palestinas em busca de afirmar a soberania israelense e negar quaisquer direitos nacionais palestinos – formarão uma barreira política e psicológica ainda mais intransponível para alterar o status quo a favor dos palestinos. A posição palestina após a guerra pode tornar mais difícil para qualquer autoridade ou líder adotar uma posição mais conciliatória em relação a um acordo político, ou qualquer presença israelense em Gaza.
Com seu abraço incondicional e armamento persistente do ataque de Israel, a administração de Joe Biden pode achar difícil pregar a pacificação. Mas, acima de tudo, é o enorme peso necessário para traçar linhas de separação sustentáveis que atendam tanto às demandas de segurança israelenses quanto aos requisitos palestinos para uma “soberania” mínima. E aqueles – principalmente os EUA – que terão que implantar esforços políticos e diplomáticos sem precedentes para desfazer a realidade de um estado em um clima local e regional carregado sem precedentes terão que enfrentar as consequências de um fracasso ou, talvez pior, acabar possuindo o que estão tentando consertar.
Um ano eleitoral nos EUA com um titular visceralmente pró-Israel em aparente desvantagem eleitoral crescente não parece oferecer as condições mais propícias para que tal esforço tenha sucesso.
A guerra em Gaza ameaça mais do que a estabilidade regional, com o aumento das manifestações de antissemitismo e as imagens horríveis de mortes civis gerando profundas fraturas políticas e pessoais em todo o mundo. Mas todos aqueles que pensam que este poderia ser o momento de finalmente resolver o conflito de 100 anos sobre a Palestina devem lembrar que não é suficiente traçar uma linha pelas estradas sinuosas e wadis da Cisjordânia.
A esperança nos diz que sempre há um caminho a seguir, mas a história nos diz que isso pode ser uma cruel ilusão.
*Ahmad Samih Khalidi é professor no St. Antony’s College, Oxford, e co-editor do Journal of Palestine Studies. Autor, entre outros livros, de A Palestinian National Security Framework (Chatham House).
Tradução: Lucius Provase.
Publicado originalmente no jornal The Guardian.
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