Por Ricardo Musse*
A força artística, intelectual e política de Bacurau se assenta em suas metáforas. Construções complexas, instigam no espectador a vontade de decifrá-las. Inseridas numa composição fragmentária, estimulam a leitura alegórica, engendrando formas polissêmicas de percepção e compreensão.
1.
Bacurau é um povoado localizado no extremo oeste de Pernambuco. A mera indicação geográfica orienta a recepção para analogias e alegorias referenciadas no sertão mítico. Remete àquele território vasto e indeterminado figurado, entre outros, por Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, pelo Cinema Novo e por filmes recentes produzidos no Nordeste.
A primeira parte do filme organiza-se como uma exposição da vida social e do cotidiano de Bacurau. Combina a construção de personagens, pensados ao mesmo tempo como singularidades e como tipos ou emblemas, com a descrição de suas funções e papéis, iluminando a divisão local do trabalho social, seguindo uma técnica recorrente no cinema documental. Algumas delas, no entanto, como o caboclo Damiano (Carlos Francisco), são compostas no registro do realismo mágico, filtrado pela tradição literária e cinematográfica brasileira.
É possível identificar aí a nova paisagem do Nordeste, repaginada pelo crescimento econômico e pelas políticas sociais implantadas a partir de 2003, num diálogo com imagens configuradas em filmes como O Céu de Suely e Big Jato. Cabe destacar a preocupação comum em mostrar, ao lado dos laços de vizinhança e parentesco, a conexão dialética entre o local e o global, incrementada por fluxos migratórios e pela disseminação das tecnologias de informação.
A vida social e o cotidiano de Bacurau remetem também, em certa medida, ao mundo das comunidades (outrora designadas pelo termo “favela”) onipresentes nas grandes cidades brasileiras, à dualidade entre o esforço em favor da educação, da saúde e da pacificação levado adiante por líderes comunitários, em acordo tácito ou em conflito com os indivíduos que controlam, por meio do exercício da violência, o território abandonado pelo Estado. No reino da indústria cultural as “celebridades” associadas a Bacurau – com notoriedade equivalente à dos chefes do tráfico dos morros cariocas – são os personagens Pacote (Thomas Aquino), o matador de aluguel, e Lunga (Silvero Pereira), o fora da lei.
Bacurau encarna ainda a utopia de uma sociedade pós-patriarcal. O filme apresenta uma miríade de identidades individuais, comportamentos e relações afetivas alternativas às predominantes no mundo patriarcal. O esteio de experiências pouco convencionais é apresentado reflexivamente pelos próprios personagens nas cenas iniciais: o imã que configura as formas de vida do povoado é Carmelita (Lia de Itamaracá), arquétipo do matriarcado.
2.
A segunda parte do filme inicia-se com uma revoada de cavalos. A situação insólita não causa estranhamento, pois a memória visual e artística do espectador reconhece na cena o indício de que algo estranho está a caminho, como é usual na literatura de José J. Veiga e Murilo Rubião, ou no imaginário dos filmes de faroeste. O efeito de ameaça, como nos contos de Júlio Cortázar, cresce em progressão contínua: a visita inesperada de dois motociclistas vestidos como participantes de um rali, o morticínio dos moradores da fazenda e dos emissários ali enviados, o assassinato de uma criança.
O intenso suspense que estrutura a narração nessa parte do filme logo se encerra. A câmera, até então colada aos moradores de Bacurau, desloca sua perspectiva e muda de lugar, passando a acompanhar os forasteiros.
Trata-se de um grupo de snipers norte-americanos, colecionadores de armas vintage, vestidos como turistas em um safári e agindo como participantes de um reality show macabro. São monitorados, por fones de ouvido permanentemente ligados, a partir de um comando remoto instalado em um drone (cujos contornos lembram os discos voadores de filmes B dos anos 1950) que tudo ouve, vê e filma. Quando entram em ação, se movimentam como figuras de videogame, analogia desenvolvida nos filmes de Harun Farocki.
Os motociclistas são brasileiros, sulistas, funcionários do Judiciário, animados com a possibilidade de participar do esquadrão da morte. Medidos pelos olhos dos adeptos da supremacia branca, porém, tornam-se imediatamente alvos, em um ensaio do programa de assassinato em massa.
O sinal da internet é bloqueado. Bacurau se torna invisível até mesmo para o satélite do Google. Não há como não se lembrar do bloqueio do espaço aéreo (supostamente realizado pela FAB), do isolamento a que foi submetida a região do Jalapão durante as filmagens de um reality show norte-americano. Organizados como bandoleiros, à maneira de filmes de faroeste, como tropa de ocupação, os snipers, em Bacurau, preparam a invasão, o cerco e o ataque final.
Com esse movimento de campo e contracampo, o filme adiciona outras camadas de significado à metáfora do sertão. Sob a ameaça de extermínio, sitiado por um esquadrão estrangeiro, Bacurau remete alegoricamente aos quilombos, a Canudos, às comunas anarco-comunistas, às periferias das grandes cidades brasileiras, mas também a um povo, a uma região, a um país sob a mira do imperialismo.
3.
Diante da disparidade das forças, antevê-se o massacre, a ser devidamente acompanhado na trilha sonora por músicas como “San Vicente” (https://www.youtube.com/watch?v=5VbLnJA0_8I) – “as horas não se contavam/ e o que era negro anoiteceu / no corpo e na cidade/ um sabor de vida e morte/ um sabor de vidro e corte”.
O que se ouve, no entanto, em alto volume, é “Réquiem para Matraga” (https://www.youtube.com/watch?v=jOfpxgWFWYs) – “vim aqui só pra dizer/ ninguém há de me calar/ se alguém tem que morrer/ que seja pra melhorar/ tanta vida pra viver/ tanta vida a se acabar/ com tanto pra se fazer/ com tanto pra se salvar/ Você que não me entendeu/ não perde por esperar”.
Nesse momento, o leitor de Guimarães Rosa ciente de que a composição de Geraldo Vandré foi encomendada para Augusto Matraga, o cinéfilo que assistiu ao filme de Roberto Santos (https://www.youtube.com/watch?v=EaBkPeJ2R_A) já antecipa como a trama irá se desenvolver. Mas até mesmo o expectador desprovido dessas informações percebe que chegou “a hora e a vez” da resistência.
Coloca-se então a questão: como um povoado que procura cultivar a não-violência e celebrar a vida pacífica pode reagir a uma ameaça de aniquilação física?
Há no Brasil um repertório da resistência popular congelado em nossa memória histórica e no escassamente visitado museu de Bacurau. Zumbi, a luta sertaneja retratada na terceira parte de Os Sertões, a Guerra do Contestado, Santa Dica, os feitos do cangaço, a saga de Corisco, as Ligas Camponesas, Lamarca, Marighella, os heróis anônimos do dia-a-dia etc.
A composição do personagem Lunga, o bandido com a cabeça a prêmio banido da comunidade, que se torna o braço armado da resistência de Bacurau, é concebida como uma atualização de Nhô Augusto, o anti-herói de A hora e a vez de Augusto Matraga. Como ele, Lunga carrega uma reputação marcada por transgressões aos valores compartilhados pela consciência comum e por uma conduta sexual não convencional. Como Lunga também, antes de se engajar na luta, passa por um processo de superação de ressentimentos, de perdão mútuo entre ele e a comunidade. Seguindo a tática de Nhô Augusto, os habitantes de Bacurau conseguem debelar o ataque, matando, um a um, os invasores.
No recurso ao imaginário histórico como estratégia de luta, no resgate das esperanças do passado ressoa o mote de Walter Benjamin – “o passado traz consigo um índex secreto que o remete para a redenção”.
4.
O filme desdobra, em múltiplas determinações, a relação dialética inscrita na dualidade visibilidade/invisibilidade.
“Bacurau” é o nome de um pássaro silencioso que só voa ao anoitecer; designa também o indivíduo que tem o hábito de só sair à noite; denomina ainda, no Rio de Janeiro, o afrodescendente e, em Pernambuco é variante, conforme o Houaiss, de cova de carvão vegetal, aludida no buraco onde o bando de Lunga esconde suas armas (e onde o líder dos snipers será enterrado vivo). Quatro metáforas da invisibilidade.
Quando ameaçados, os habitantes do povoado se fazem invisíveis. Adotam esse procedimento para rechaçar tanto as promessas demagógicas e o mandonismo local de Tony Jr. (Thardelly Lima), o prefeito candidato à reeleição, como o ataque do esquadrão de snipers norte-americano. O isolamento deliberado não impede que Bacurau se torne um alvo visível para mercadores do voto e para os agentes da violência.
A reclusão voluntária, o propósito de não se deixar conhecer e de manter um modo de vida próprio, repetindo o dilema histórico dos quilombos, mostra-se insuficiente para deter as práticas de extermínio. Trata-se de uma alegoria da guerra civil brasileira: invisível, posto que naturalizada; e ao mesmo tempo visível em grau máximo, pois, como o reality show dos snipers, é transmitida diuturnamente ao vivo pela TV.
5.
Bacurau se insere na linhagem do cinema moderno. Autorreflexivo, opera com descontinuidades e justaposições, pluralidade de focos e campos de visualização, fragmentos e intenção de totalização alegórica. Na linhagem inaugurada por Jean-Luc Godard, explora formas de intertextualidade, o uso intenso de citações e colagens que mesclam repertórios da arte autônoma e da indústria cultural, da cultura erudita e do universo do pop, das vanguardas e do cinema de gêneros. Nesse andamento, explicita, a cada momento, suas regras formais, o material, as técnicas de representação e seu programa estético e cultural.
O filme inicia-se com um movimento de câmera que parte do espaço sideral, cruza um satélite artificial e se detém num caminhão pipa, trafegando numa estrada esburacada ao som da música “Não-identificado”, de Caetano Veloso, na voz de Gal Gosta (https://www.youtube.com/watch?v=6khZzKCSomE): “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira/ Para lançar depois do carnaval/ Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico/ Um anticomputador sentimental/ Eu vou fazer uma canção de amor/ Para gravar num disco voador/… Minha paixão há de brilhar na noite/ No céu de uma cidade do interior”.
Os diretores (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) compartilham com o tropicalismo musical a atenção a uma série de dualidades, desdobradas a partir dos pares nacional/estrangeiro e local/global. Desconfiam igualmente da eficácia da arte artesanal como barreira de contenção da expansão incontrolada da indústria cultural. Reconhecendo que, no capitalismo tardio também os produtos artísticos assumem a forma-mercadoria, buscam modalidades de inserção refletida no mercado cultural.
Conjugam adesão e crítica aos códigos artísticos vigentes, procurando, por intermédio de uma pletora de procedimentos (dentre os quais se destaca a ironia e a paródia), subverter o conteúdo das representações da indústria cultural. Anseiam ser popular a ponto de brilhar na noite, nos céus dos vilarejos do interior.
Bacurau está mais próximo, no entanto, da fase tropicalista do Cinema Novo (sobre esse período cf. Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento). Ali, ao lado de Macunaíma e de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro/Antonio das Mortes, pontifica Brasil Ano 2000, obra que contém em sua trilha sonora a canção “Não-identificado”.
O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles retoma, a partir de sua incorporação pela cultura dos anos 1960, o programa do Manifesto Antropófago, proposto por Oswald de Andrade em 1928. O objeto de deglutição hoje é mais indigesto do que antes – um cinema que assimilou e neutralizou as técnicas da vanguarda, que incorporou a verve paródica e se esfumaça em simulacros. Apesar das transformações da arte e da publicidade, Bacurau continua apostando na atualização dos procedimentos da Antropofagia como um recurso a serviço dos dominados, em sua luta contra os imperativos do sistema cultural financeirizado.
As tecnologias da informação desenvolvidas no exterior, em Bacurau, são absorvidas e remodeladas em seus usos pelo filtro da cultura local. O avanço técnico converte-se, assim, seja na história narrada ou no arranjo interno do filme, em armas da resistência. Por meio desse quiproquó os diretores propõem uma retomada do ideal de uma cultura nacional, um projeto inacabado que animou os momentos decisivos do cinema brasileiro (cf. Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento).
Bacurau se coloca e pode ser visto, portanto, como um novo elo de uma tradição que teve uma inflexão e seu ponto alto nos “cinemas novos” dos anos 1960. Resgata a aliança, então corrente, entre artistas e produtores brasileiros e europeus, cujo alcance foi descrito com precisão por Guy Hennebelle e sintetizado no título de seu livro: Os cinemas nacionais contra Hollywood.
*Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP
Referências
Bacurau (Brasil/França, 2019). Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Elenco: Silvero Pereira (Lunga), Thomas Aquino (Pacote/Acácio), Lia de Itamaracá (Carmelita), Sonia Braga (Domingas), Bárbara Colen (Teresa), Thardelly Lima (Tony Jr.), Carlos Francisco (Damiano), Rubens Santos (Erivaldo), Wilson Rabelo (Plínio), Udo Kier (Michael).
O céu de Suely (Brasil/Alemanha/França, 2006). Direção: Karim Aïnouz. Roteiro: Karim Aïnouz, Mauricio Zacharias e Felipe Bragança. Elenco: Hermila Guedes, Georgina Castro, Maria Menezes, João Miguel, Zezita Matos, Mateus Alves, Gerkson Carlos, Marcélia Cartaxo, Flávio Bauraqui.
Big Jato (Brasil, 2015). Direção: Cláudio Assis. Roteiro: Xico Sá. Elenco: Matheus Nachtergaele, Gabrielle Lopez, Marcela Cartaxo, Rafael Nicário, Jards Macalé, Pally Siqueira.
José J. Veiga. A hora dos ruminantes (1966). São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
Murilo Rubião. Obra completa. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
Júlio Cortázar. Casa tomada. In: Bestiário. Rio de Janeiro, Civilização Brasileiro, 2013.
Euclides da Cunha. Os Sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo,Ubu/Sesc, 2016.
João Guimarães Rosa. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2017.
Walter Benjamin. Sobre o conceito da história. In: O anjo da história. Belo Horizonte, Autêntica, 2012.
Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo,cinema marginal. São Paulo, Cosac &Naify, 2012.
Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago. In: a utopia antropofágica. São Paulo, Globo, 1990.
Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo, Paz e Terra, 1986.
Guy Hennebelle. Os cinemas nacionais contra Hollywood. São Paulo, Paz e Terra, 1978.