Sobre o assassinato de Charles Kirk

Imagem: Artefatos soviéticos
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Por VALERIO ARCARY*

O assassinato de um líder fascista, ainda que repugnante, é uma tática contraproducente que substitui a luta essencial pela consciência das massas. Em vez de enfraquecer o inimigo, o terrorismo individual provoca repressão generalizada, martiriza o alvo e impede o debate ideológico

“Num dia de setembro, poucos meses depois da prisão de seus camaradas Sacco e Vanzetti, um anarquista italiano chamado Mario Buda, estacionou sua carreta puxada por um cavalo, próximo da esquina de Wall Street, em frente da companhia J.P Morgan (…) Umas poucas quadras mais adiante um assustado carteiro encontrou uns panfletos que avisavam: ‘Liberdade para os prisioneiros políticos ou morrerão todos!’, assinados pela American Anarquist Fighters (Lutadores Anarquistas dos Estados Unidos). Os sinos da Trinity Church começaram a soar ao meio-dia e, quando pararam, a carreta carregada de dinamite e pedaços de metal explodiu, convertendo-se em uma bola de fogo cheia de metralha (…) Buda não gostou de saber que J.P.Morgan não se encontrava entre os 40 mortos e mais de 200 feridos (…) estava longe na Escócia em seu pavilhão de caça. Ainda assim, o pobre imigrante, com alguma dinamite roubada, um montão de pedaços de metal e um velho cavalo havia provocado um terror sem precedentes no coração do capitalismo” (Mike Davies, Coches-bombas, Las fuerzas aéreas de los pobres).

1.

Aqueles que defendem que o assassinato de Charles Kirk remete a uma estratégia legítima que entende que a violência exemplar é revolucionária, estão errados. Não é legítima porque um dos critérios elementares de uma visão socialista do mundo é que ninguém merece morrer em função das ideias que defende. Todos e qualquer um, não importa sua origem de classe, raça, gênero, ou orientação sexual, devem ter o direito de dizer e acreditar no que quiser. Trata-se da liberdade de expressão.

Condenar à morte inimigos políticos porque se discorda de suas opiniões é puro barbarismo, algo, não só, moralmente, repulsivo, mas, também, politicamente, odioso. Não se pode tolerar que diferenças de ideias sejam resolvidas à bala, porque o desfecho é a degeneração da luta política em um faroeste bárbaro, em que os explorados têm tudo a perder.

Mas todos os direitos, inclusive o direito à liberdade de opinião, são relativos, porque limitados por outros direitos. Ninguém tem o direito de caluniar os outros, e esperar permanecer impune. Ninguém tem o direito espalhar fakenews, e tentar envenenar o debate público com mentiras.

Charles Kirk defendia ideias repugnantes e obscurantistas, não só porque construiu sua reputação, ininterruptamente, com insultos a negros, judeus, muçulmanos, imigrantes, LGBT’s, e até funcionários públicos federais, mas porque defendia ditadores como Francisco Franco e Augusto Pinochet e sua firmeza em reprimir, prender e torturar ativistas de esquerda. Era uma liderança em ascensão no Maga, o movimento neofascista que ofereceu sustentação a Donald Trump. Apresentar Charles Kirk somente como um divulgador inocente de ideias radicais de direita é, simplesmente, desonesto.

2.

“Fascismo não se debate, fascismo se destrói”. A frase é atribuída a uma entrevista de Buenaventura Durruti durante a guerra civil espanhola. Inspira setores do movimento Antifa nos EUA e, também, no Brasil. Os anarquistas dos “Amigos de Durruti” na Catalunha nos anos 1936/37 da revolução espanhola eram abnegados anticapitalistas, mas ultra-esquerdistas incorrigíveis.

Defenderam, ainda sob a monarquia, a legitimidade das ações armadas vingativas como os ataques à bomba contra prédios públicos, e atentados punitivos contra autoridades odiadas. Herdaram o fascínio dos fenianos irlandeses, dos esseristas russos – os militantes do Partido Socialista Revolucionário – e de uma parcela do anarquismo pelas táticas terroristas. Durruti era sensível às pressões políticas externas, e mantiveram relações fraternais com os trotskistas.

Sua iniciativa política teve impacto na realidade. Não eram nem política, nem socialmente, marginais. Foram capazes de organizar os setores de massas mais combativos do proletariado em Barcelona na luta contra o capitalismo e o fascismo, ao lado do POUM de Andreu Nin. Conquistaram a admiração da esquerda mundial pelo seu heroísmo nas trincheiras da Guerra Civil em Aragão, e estiveram entre os mártires da defesa de Madri.

Atuaram em frente única política com diferentes correntes da esquerda – como o Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) e as juventudes do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) – em distintas conjunturas, e fizeram frente única militar com todas as forças republicanas contra o fascismo. Merecem respeito. Mas não se deve romantizar suas estratégias e táticas.

Matar a liderança fascista é uma tática herdeira de uma tradição radical que, no passado, defendeu que o homicídio do rei, do czar, do carrasco assassino, seria um caminho para disseminar o terror entre os inimigos do povo, despertar confiança entre os lutadores populares, o entusiasmo nas massas oprimidas e acelerar a mudança do mundo.

Parece semelhante à tática socialista na luta contra o fascismo: “Nenhuma liberdade aos inimigos da liberdade”, mas não é. Trata-se de estratégia com raiz em uma das alas do movimento anarquista. A ideia de que colocar uma bomba na porta de um banco, ou de um prédio símbolo de uma tirania ou, ainda pior, o assassinato de uma liderança fascista poderia ajudar a derrotar o capitalismo é uma ilusão imperdoável. As fachadas dos bancos, as vidraças das lojas de luxo, os prédios das instituições serão reconstruídos da noite para o dia. Os chefes da extrema-direita serão, rapidamente, substituídos por outros, eventualmente, mais perigosos.

A inescapável consequência imediata destas ações violentas é a criminalização e repressão, indistintamente, de todos os movimentos que lutam contra a exploração e a opressão, a diminuição da audiência e influência da esquerda, e a martirização do dirigente que foi morto. Trata-se de uma tática não socialista.

3.

Mas há outras consequências. A mais nociva é que as ações violentas exemplares são a negação da luta pela consciência de milhões. A luta pela consciência é uma luta política ideológica para conquistar de uma maioria social sem a qual, não só é impossível mudar o mundo, mas, pior, não vale a pena conquistar o poder.

As ações individuais violentas heroicas não incentivam, ao contrário, desestimulam a luta das massas populares. Por que divulgar ideias, apresentar argumentos, defender propostas, elaborar programas, convocar reuniões, oferecer cursos, imprimir jornais, escrever artigos, publicar livros, ou construir portais de notícias e disputar espaços nas redes sociais, a militância incessante necessária para organizar mobilizações de milhares nas ruas, preparar greves, fazer protestos?

Por que apostar na organização em sindicatos de trabalhadores, ou movimentos estudantis, de mulheres e negros, ambientais e LGBT’s, indígenas ou culturais? Por que formar quadros e disputar espaços de disputa de visões de mundo, legalizar partidos, intervir em campanhas eleitorais, tentar eleger parlamentares? As ações exemplares são expressão de uma estratégia de substitucionismo das ações de massas.

Mas a violência terrorista, em especial quando as condições na conjuntura são defensivas é uma provocação que ricocheteia contra a luta antifascista. A idealização romântica da violência é uma arma da extrema-direita. Não foi por outra razão que os franquistas na guerra civil espanhola lançaram o slogan “Viva la muerte“. O direito à autodefesa é, evidentemente, inflexível, irredutível, inegociável. Mas o direito à autodefesa não é um “olho por olho”, a justiça da Idade do Bronze.

A tática socialista – nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade – não autoriza a conclusão de que não aceitamos discutir nossas ideias contra as ideias dos fascistas. Não estão errados os militantes que participam de debates com lideranças neofascistas nos sites da internet, ao contrário, estão certos. Não é nem verdadeiro nem justo que a única tática diante das provocações é “sair na porrada”.

O movimento político-social da extrema direita é uma corrente poderosíssima na sociedade brasileira. Não tem apoio somente m uma fração da classe dominante, ou nas camadas mais elevadas da classe média. Penetrou em todos os espaços: nas fábricas, nos bairros populares, nas escolas e universidades, e em boa parte de nossas famílias. Seria um absurdo política desconsiderar que a luta de ideias é não só legítima, mas urgente, inadiável e incontornável.

Quase quatro em cada dez pessoas são contra a prisão de Jair Bolsonaro. A luta pela punição dos golpistas assumiu a bandeira Sem Anistia para, justamente, alimentar o debate de que o neofascismo não pode ser normalizado como uma corrente ou tendência política que pode fazer o que quiser, inclusive, tramar um golpe de Estado, e permanecer impune.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc].


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