Por VALERIO ARCARY*
A aposta marxista da transição socialista: mais consciente e mais rápida?
“Não podemos falar de verdadeira passagem ao capitalismo senão quando regiões suficientemente extensas vivem sob um regime social completamento novo. A passagem somente é decisiva quando as revoluções políticas sancionam juridicamente as mudanças de estrutura, e quando novas classes dominam o Estado. Por isso a evolução dura vários séculos. Ao final, é acelerada pela ação consciente da burguesia. Portanto, a instalação do capitalismo será no final mais rápida que a do feudalismo, da mesma forma que a instalação do socialismo, mais consciente ainda, tem a possibilidade de ser ainda mais rápida”
(Pierre Vilar) [1].
Mais consciente, e mais rápida era a aposta. O socialismo sempre foi um projeto que tem pressa. Durante muitas décadas, prevaleceu no marxismo um robusto otimismo sobre o futuro do socialismo. Na II Internacional os partidos marxistas se denominavam, com cautela, socialdemocracia ou Labour, porque após a Comuna de Paris de 1871, a campanha antissocialista tinha sido tão devastadora, que era mais prudente uma mediação para poder aproveitar a legalidade. O programa, porém, era o socialismo, fosse por via gradualista ou revolucionária. Os marxistas sabiam que revoluções em um país abriam o caminho para reformas em outros. Ou que a impossibilidade de reformas abria o caminho para a revolução.
Não foi tampouco acidental a escolha de Partido dos Trabalhadores como o nome da esquerda que ser reorganizava no Brasil a partir de 1979/80. Mas a estratégia era derrubar a ditadura e o programa era socialismo. Foi assim em todo o mundo desde a vitória da revolução russa, e depois da derrota do nazi-fascismo o socialismo passou a ser a referência da esquerda. Reformista ou revolucionária, ser socialista era ser contra o capitalismo, portanto, contra a inviolabilidade da propriedade privada.
Mais consciente mais rápida? Algumas “certezas” dos marxistas do século XIX e XX, finalmente, desabaram pelo caminho, e sabemos que a transição socialista será mais difícil do que eles imaginavam. No laboratório da história não vingou ainda uma transição ao socialismo. Nem a regulação socialdemocrata, nem o stalinismo abriram um caminho. Mais difícil, entretanto, não quer dizer que não seja possível.
O problema é que hoje, três décadas depois da restauração capitalista, prevalece uma triste melancolia. Muitos círculos de esquerda parecem uma confraria de mortos, feridos e mutantes. Essa “redução de expectativas” se refugia em nostalgia romântica do passado, em diásporas teóricas do catastrofismo, em elaborações elegantes do pessimismo, ou em adaptações pragmáticas de possibilismo. A disjuntiva, para muitos, não é mais socialismo ou barbárie. Passou a ser barbárie ou extermínio.
As respostas para o futuro da esquerda não vão ser elaboradas em um “mosteiro” de copistas dos textos clássicos. Não precisamos nos refugiar em “museus”. Mais do que nunca devemos estudar a história das revoluções vitoriosas e derrotadas. Mas é a imersão na luta social que pode fortalecer a esquerda marxista. Porque fomos colocados diante da emergência da luta ambiental contra o ecosuicídio, ou das mulheres contra a opressão patriarcal, ou dos negros contra o racismo, ou dos LGBT’s contra a homofobia. O desafio permanece sendo compreender a realidade cruel do tempo que nos coube viver. E manter a disposição de lutar. Com fúria, com ardor, com esperança.
Mais acelerada e mais consciente era a aposta. Quais eram os fundamentos dessa hipótese? Entre outros postulados teóricos (contradição entre produção crescentemente socializada e apropriação privada; oposição entre mercado mundial e preservação das fronteiras nacionais), destacavam-se duas premissas políticas (que são sempre uma aposta no futuro, portanto, no risco e na incerteza):
(a) a primeira era a identificação da tendência do capitalismo à precipitação regular e recorrente de crises de superacumulação de capital, na forma de superprodução de mercadorias, com um custo social gigantesco: a destruição e o desperdício crônico desabariam como uma catástrofe inelutável sobre os ombros da sociedade [2];
(b) a segunda era o novo protagonismo revolucionário atribuído ao proletariado como sujeito social: uma classe despojada de propriedade e, mesmo que heterogênea, muito mais homogênea que todas as outras classes da sociedade. Agrupada em grandes massas, com força social superior às multidões camponesas dispersas, dotada de autoconfiança em si mesma, apta para atrair o apoio das outras classes oprimidas, inclinada à ação política coletiva, concentrada em imensos centros urbanos, com nível cultural mais alto, impulso político de classe mais definido, maior capacidade de auto-organização e solidariedade, e mais elevado “instinto de poder”.
Teriam esses vaticínios se confirmado ou não, e em que medida? Há muitos na esquerda que não estão muito convencidos que as crises do capitalismo serão inexoráveis, e ainda mais numerosos são aqueles que perderam a esperança nos trabalhadores.
Mas estão errados. Os últimos trinta anos indicam que as crises serão apocalípticas, e as massas populares irão resistir e lutar. Mas nada pode garantir por antecipação a vitória, e diminuir a incerteza, porque a ferocidade da contrarrevolução não será menor. Porque está de novo colocado no centro da reflexão estratégica o perigo do fascismo.
São inesquecíveis as páginas em que Marx explica em O 18 do Brumário de Luiz Bonaparte, com horror, as monstruosidades do regime bonapartista na França, depois da derrota de 1848. Mas o bonapartismo do século XIX não pode ser, nem remotamente, comparado ao horror da contra-revolução no século XX.
O mesmo, possivelmente, se possa dizer até para Lênin, que, contudo, vinha de um país onde os pogroms eram frequentes. Mas, se não se escandalizou com a decretação da Primeira Guerra Mundial pelos imperialismos modernos, embora tenha se surpreendido com o apoio da socialdemocracia ao governo do Kaiser, tampouco conheceu os grotescos desfiles nazifascistas, e o horror do genocídio como método e política de Estado.
Mas nós sabemos o que foi o fascismo. E estamos vivendo o ressurgimento de uma corrente neofascista à escala internacional. Nada será mais importante que derrotá-la no Brasil e no mundo. O argumento deste artigo é que a luta contra o fascismo não será vitoriosa se a esquerda não abraçar uma estratégia socialista.
O conceito de estratégia não esteve presente na revolução burguesa. O que se explica por uma pluralidade de razões: os amálgamas das relações capitalistas de produção com relações pré-capitalistas, pelo menos, desde o século XI na Europa, muito antes da conquista do poder político; a possibilidade de fusões e pactos entre as diferentes classes proprietárias; a ambiguidade da relação da burguesia com as massas camponesas; a violência contrarrevolucionária da aristocracia; o atraso secular das revoluções políticas, a imaturidade subjetiva ou o próprio estágio embrionário do pensamento histórico e das artes militares. Os elementos de consciência na transição burguesa eram embrionários.
O marxismo incorporou o vocabulário da ciência militar no processo de construção de uma teoria da crise. Entre eles, se destacam o de estratégia e o de tática. O conceito de estratégia é chave porque ele delimita a existência dos fins e os hierarquiza entre si, e nas relações com os meios, ou as táticas. Ocorre que fins e meios são conceitos relativos, já que, o que eram meios podem se transformar em fins e vice-versa. Esta delimitação envolve uma escolha. Escolhas remetem às noções de tempo e espaço.
O tempo demanda resiliência e firmeza, e o espaço exige inteligência e audácia. Uma esquerda sem estratégia está condenada a um comportamento bipolar e um destino errático. Oscilará entre euforia e depressão em função dos desenlaces da tática.
Durante, pelo menos, os últimos sessenta anos, a ideia do socialismo esteve de tal forma associada com a experiência histórica das ditaduras burocráticas, que o próprio conceito de socialismo, ou seja, o sentido mais geral do projeto da luta igualitarista do movimento dos trabalhadores foi colocado sob suspeita.
Alguns ex-marxistas consideram que essa desconfiança veio para ficar. Muitos socialistas avaliam que seria transitória. Talvez os desenlaces trágicos da luta socialista no século XX estejam alimentando, ainda hoje, algum pudor até com algumas palavras que, por terem sido usadas e abusadas, caíram em desgraça. Estratégia é um desses conceitos. Por isso, parte significativa da literatura de esquerda contemporânea reabilita e até exalta fórmulas menos militares, e mais literárias (também mais imprecisas), como “paradigma utópico”.
A dimensão utópica de um projeto igualitarista nunca poderia der minimizada, já que a aposta política sempre dependerá de um engajamento que exige o enfrentamento de dúvidas e riscos, para não esquecer dos perigos e das derrotas. Todas as fórmulas que depositam “na história” a esperança de definição de uma luta que exige empenho e vontade só podem ajudar a semear ilusões fatalistas ou cepticismos deterministas.
A “história” não pode decidir nada porque não é sujeito, mas processo. Já o socialismo sempre foi entendido pelo marxismo como um projeto que depende da capacidade de organização de forças sociais com interesses anticapitalistas, e da presença de sujeitos políticos capazes de traduzir esses interesses numa perspectiva de poder. Mas sem a “fé” na possibilidade desses sujeitos sociais serem vitoriosos, o que, sumariamente, poderíamos chamar uma identidade de classe, seria muito difícil sustentar de forma continuada uma militância que exige sacrifícios e abnegação. Esta confiança na disposição revolucionária dos trabalhadores e dos oprimidos é indispensável para alimentar um projeto político, e tem uma evidente dimensão utópica.
O problema, todavia, é que a fórmula “paradigma utópico” tem sido utilizada como uma alternativa a socialismo. Uma espécie de “flor mais bonita” no “jardim da democracia”. Em uma situação como a que vivemos, de crise do capitalismo, mas, também, de crise e reorganização da esquerda, portanto, de grandes incertezas, não é estranho que as inseguranças ideológicas ganhem terreno.
De qualquer maneira, é desconcertante como tantos socialistas a aceitem no lugar de socialismo. Essa não é uma escolha inocente. E confessa mais sobre as atuais dificuldades de crítica diante das “virtudes” da “democracia republicana” (o “mantra” dos valores absolutos repetido à exaustão), do que explica sobre o que se pensa como um projeto de sociedade igualitária e libertária. Pós-marxista ou mesmo pós-socialista, crítica da ideia de projeto e elogio da ideia de processo, defesa da indivisibilidade dos imperativos morais e da política, tem sido uma coqueluche teórica: mais Kant, menos Lenin.
Mas a esquerda não poderá derrotar o perigo neofascista sem uma estratégia socialista. Quando se colocam em movimento, como no Chile no ano passado, as massas populares não querem somente democracia. Querem mais e têm pressa.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).
Notas
[1] Sobre o tema da transição do feudalismo ao capitalismo, existe uma extensa discussão histórica. Mais especificamente sobre a noção de longa duração e a natureza semi-catastrófica (inconsciente), semi-revolucionária (consciente) do processo, e a alternância de ritmos gradualistas e rupturas revolucionárias, vale a pena consultar Pierre Vilar. VILLAR, Pierre. “A transição do Feudalismo ao Capitalismo” In SANTIAGO, Theo Araujo (org.). Capitalismo Transição. Rio de Janeiro, Eldorado, 1974. p. 35-6.
[2] Um fragmento interessante sobre esses prognósticos encontramos nos Grundisse: “Pelo contrário, deve empobrecer-se (…) visto que a força criadora do seu trabalho como força do capital, se estabelece perante ela como uma potência alheia (…) Todos os avanços da civilização, portanto, ou em outras palavras, qualquer aumento nas forças produtivas sociais, se você quiser as próprias forças produtivas do trabalho – derivadas da ciência, invenções, divisão e combinação do trabalho, meios de comunicação aperfeiçoados, criação do mercado mundial , máquinas, etc. – não enriquecem o trabalhador, mas o capital, mais uma vez, apenas aumentam o poder que domina o trabalho, apenas aumentam a força produtiva do capital.” (MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia politica. GRUNDISSE,1857/8. Mexico, Siglo XXI, 1997. p. 214-5).