Gente espelho da vida

Imagem: John Lee
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

Conscientização e diálogo intercultural

Paulo Freire

Quando penso Paulo Freire, penso-o sempre em movimento, no tempo-espaço e com o tempo-espaço, buscando construir dinamicamente o futuro sonhado a partir do concreto presente. Segundo ele, o futuro não é inexorável; temos de fazê-lo, de produzi-lo, ou não virá da forma como mais ou menos queríamos. Não podemos fazê-lo de forma arbitrária, mas com os materiais, com o concreto de que dispomos somado ao sonho por que lutamos.

Neste sentido a educação se coloca como uma questão fundamental enquanto ato de conhecimento, não só de conteúdos, “mas da razão de ser dos fatos econômicos, políticos, ideológicos, históricos, que explicam o maior ou o menor grau de interdição do corpo consciente a que estamos submetidos”. (Freire, Educação como prática da liberdade).

A conscientização para Freire é uma categoria e um processo central. Se para posições dogmáticas e mecanicistas, tanto no espectro da direita e da esquerda do pensamento político, a consciência toma forma como uma espécie de epifenômeno, como resultado automático e mecânico de mudanças estruturais, para Freire, a consciência crítica, por ele assim compreendida, não é puro reflexo, mesmo que não seja a causa fautora da realidade. E aqui gostaria de citá-lo literalmente quando disserta magistralmente sobre o processo de conscientização crítica:

Se não há conscientização sem desvelamento da realidade objetiva, enquanto objeto de conhecimento dos sujeitos envolvidos em seu processo, tal desvelamento, mesmo que dele decorra uma nova percepção da realidade desnudando-se, não basta ainda para autenticar a conscientização. Assim, o ciclo gnosiológico não termina na etapa do conhecimento, a conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade:conhecimento-da-realidade-e-transformação-da-realidade, em sua dialeticidade. (Freire, Ação cultural para a liberdade e outros escritos).

 

Diálogo intercultural

Um segundo tópico que proponho como contribuição, trata da questão do diálogo intercultural. Lembro que numa conversa com Boaventura de Sousa Santos, nos idos de 2008, tratando de algo que ele aponta como a necessidade de uma “sociologia das traduções”, no sentido de estabelecer uma base de sentidos e palavras compreensíveis entre as diversidades lutas travadas no tempo presente, as quais, por vezes ocasionam impedimentos de compreensão recíproca entre os sujeitos-e-grupos devidos ao fracionamento e especificidade das pautas em ação, perguntei-lhe sobre relatos de experimentos da aplicação desta sua teoria. Mas ele não soube, à época, apontar nenhum.

Freire anota algo de importância. Afirma que o caminho para realizar diálogos interculturais está em principalmente trabalhar as semelhanças entre si, e não apenas as diferenças, para criar unidade na diversidade, fora da qual não vê como aperfeiçoar-se e até como construir-se uma democracia (ou democracias, diria eu) substantiva e radical. (Freire, Pedagogia da Esperança).

Seguindo esta linha, coloca-se, portanto, a questão do diálogo, não como um componente acessório, mas central no processo de transformação da realidade, como meio para lançar pontes entre as diversas partes com seus projetos singulares, como também para reatar fios rompidos e iniciar novos formatos de comunicação entre culturas e liberdades. E neste sentido, continuando as indagações iniciadas com Boaventura, pergunto: quais seriam as pré-condições para que se possam realizar diálogos amplos, límpidos, honestos, acolhedores e proativos?

A italiana Chiara Lubich (1920-2008), ganhadora do prêmio Educação para a Paz (UNESCO-1996), oferece um método muito desafiador, muito próximo ao pensamento de Lao-Tse (604-517 a.C.), fundador do taoísmo. O núcleo central da dialógica por ela proposta está em “fazer-se um”. Este método implica um duplo movimento: sair de si (=esvaziar-se) para acolher a realidade do outro, num tipo de integração que não seria nem anulação de si nem tampouco uma fusão com o outro, mas concretizando uma disponibilidade de escuta efetiva e recíproca, libertando coração e mente, para criar dentro de si um lugar de silêncio no qual o outro pode falar sem sofrer constrangimentos. O segundo movimento consiste, como consequência, em conter o outro dentro de si, por meio da superação dos confins de si mesmo, estabelecendo uma nova residência relacional na qual os sentimentos e pensamentos tornem-se uma espécie de patrimônio mútuo, capaz de acionar mudanças e apontar caminhos. (Vera Araújo in O Conflito, manuscrito, 2010).

De fato, como lembra Alain Badiou, o Pensamento só pode ser libertado de sua impotência por meio de algo que exceda sua ordem.  Somente por meio de uma operação insubstituível, capaz de reorganizar a morte e a vida nos seus lugares, mostrando que a vida não ocupa necessariamente o lugar da morte. Para Badiou, essa operação chama-se “ressurreição”, entendida como a reinvenção de um modo de viver que desvia da repetição e produz novos modelos de pensar, viver e agir. Ressurreição implica uma nova fé juntamente com uma nova militância. O Sujeito vivo deve determinar-se não apenas em seu surgir, como também em seu labor. O amor é o labor do qual a fé é capaz. O acreditar mostra-se eficaz pelo amor. Pelo amor descobre-se que nossa energia não é contra a verdade, mas para a verdade. Uma energia só pode ser verdadeira se levar em consideração toda a humanidade, sem exceção. Somente há singularidade se houver o universal; senão, fora da verdade, só há particularidade. (Badiou in A fundação do universalismo, Boitempo, 2009).

Também como atesta Emmanuel Levinas, a responsabilidade do Eu diante de um rosto totalmente estranho que o fita constitui o dado primitivo da fraternidade humana, é a postura básica do humano ético. A responsabilidade por outrem é o que de mais substancial há em mim e que me constitui como humano. É o que confere “espírito ao húmus”. O outro, em sua vulnerabilidade, deixa-me igualmente vulnerável e não sou capaz de me esquivar ao seu olhar. Ao percebê-lo, não por meio apenas de minha inteligência, mas de minha consciência, sinto-o como sobre a minha pele. Coloco-me no seu lugar e sofro seu sofrimento em mim. Sentir em mim o sofrimento do outro é uma dimensão, como vimos acima, típica do “fazer-se um” lubichiano, para compreender ao máximo o outro em sua realidade e com ele ser solidário na busca de superar o seu sofrimento. A ética, entendida nessa perspectiva de Levinas, é afirmada através da relação face a face com outro. A passagem da ética para a política é marcada pela presença/chegada de um terceiro, significando outros, a multiplicidade de sujeitos que fundam e constituem a polis.(Apud. Lana in Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva, Revista de Sociologia Política, junho de 2000).

Ou como também se vê na perspectiva da “transmodernidade” que o argentino Enrique Dussel nos apresenta: é preciso quebrar a colonialidade do poder, do saber e do ser no mundo ocidental, baseando-se na exterioridade negada que surge como categoria da análise da alteridade, numa Ética da Libertação, que parte do outro como vítima da modernidade ocidental eurocêntrica.

Por fim, como afirma Albert Jacquard, recuando no passado, nos seis milhões de anos na qual se deu a origem do Homo, todos os seres humanos são aparentados porque oriundos do mesmo gérmen (irmãos = germanus). E mais, se recuarmos no período de três bilhões de anos, até a origem dos seres vivos, os seres humanos são aparentados com todos os seres vivos. Diferentemente dos outros, somente o Homo foi capaz de construir a humanidade, essa é sua especificidade. Ser humano é participar dessa construção. Resgatar a fraternidade é, portanto, sentir-se irmãos e irmãs de todos os humanos, para recuperar o sentimento gregário perdido no processo de civilização, para re-irmanar a humanidade. (Jacquard in Filosofia para não filósofos, Campus, 1998).

Concluo com Caetano Veloso:

Gente olha pro céu
Gente quer saber o Um
Gente é o lugar
De se perguntar o Um

Gente é muito bom
Gente deve ser o bom
Tem de se cuidar
De se respeitar o bom

Gente espelho da vida
Doce mistério

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (U

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Módolo Vladimir Safatle Leda Maria Paulani Fábio Konder Comparato Claudio Katz Dênis de Moraes João Paulo Ayub Fonseca Afrânio Catani Marilia Pacheco Fiorillo Dennis Oliveira Remy José Fontana Everaldo de Oliveira Andrade Heraldo Campos Eugênio Bucci Rodrigo de Faria Ronald Rocha Airton Paschoa Paulo Martins Luiz Bernardo Pericás João Adolfo Hansen Marjorie C. Marona Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Raimundo Trindade Érico Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Marques Osvaldo Coggiola Eleutério F. S. Prado Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Musse Celso Frederico João Carlos Loebens Bernardo Ricupero Ari Marcelo Solon Bruno Machado Flávio Aguiar Alexandre de Lima Castro Tranjan Armando Boito Matheus Silveira de Souza André Márcio Neves Soares Chico Alencar Carla Teixeira Ladislau Dowbor Manuel Domingos Neto Luiz Werneck Vianna Luis Felipe Miguel João Carlos Salles Rafael R. Ioris Francisco Pereira de Farias Andrew Korybko João Feres Júnior Daniel Afonso da Silva Fernando Nogueira da Costa Leonardo Boff Tadeu Valadares Samuel Kilsztajn Berenice Bento Caio Bugiato Benicio Viero Schmidt João Lanari Bo Jean Pierre Chauvin Rubens Pinto Lyra Roberto Bueno Marilena Chauí Michael Roberts Antônio Sales Rios Neto Chico Whitaker José Dirceu Jorge Branco Ronald León Núñez José Luís Fiori Eleonora Albano Luís Fernando Vitagliano Fernão Pessoa Ramos Daniel Brazil Gilberto Maringoni Roberto Noritomi Salem Nasser Alexandre de Freitas Barbosa Vanderlei Tenório Jorge Luiz Souto Maior Leonardo Avritzer Sandra Bitencourt Jean Marc Von Der Weid Gabriel Cohn Lincoln Secco Lorenzo Vitral André Singer Eliziário Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Celso Favaretto Luiz Renato Martins Atilio A. Boron Alysson Leandro Mascaro Antonio Martins José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Abramovay Gerson Almeida Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Costa Henry Burnett José Machado Moita Neto Paulo Sérgio Pinheiro Denilson Cordeiro Francisco Fernandes Ladeira Milton Pinheiro Paulo Fernandes Silveira Marcus Ianoni Anselm Jappe Valerio Arcary Elias Jabbour Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcos Aurélio da Silva Liszt Vieira Ricardo Antunes Valerio Arcary Igor Felippe Santos Otaviano Helene Leonardo Sacramento Bento Prado Jr. Flávio R. Kothe Julian Rodrigues Antonino Infranca Michael Löwy Annateresa Fabris Carlos Tautz Luiz Eduardo Soares Eduardo Borges Eugênio Trivinho Mariarosaria Fabris Paulo Capel Narvai Yuri Martins-Fontes Thomas Piketty Tarso Genro João Sette Whitaker Ferreira Luciano Nascimento Vinício Carrilho Martinez Ricardo Fabbrini Luiz Roberto Alves Boaventura de Sousa Santos Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo Renato Dagnino Alexandre Aragão de Albuquerque Marcelo Guimarães Lima Marcos Silva Mário Maestri Kátia Gerab Baggio Henri Acselrad Manchetômetro Gilberto Lopes Walnice Nogueira Galvão Slavoj Žižek Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira José Geraldo Couto Anderson Alves Esteves José Costa Júnior Sergio Amadeu da Silveira Juarez Guimarães

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada