Narrativas da guerra – europeus e latino-americanos

Imagem: Alexander Zvir
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Por LORENZO VITRAL*

A opinião do chamado Sul global tende a se opor à opinião europeia dominante

A narrativa ocidental sobre a guerra da Ucrânia tem se imposto naturalmente tendo em vista o controle da opinião pública por meio das grandes corporações de imprensa. Comentamos, em artigo de 16 de março de 2022 (veja aqui), a abordagem de alguns dos veículos franceses sobre esse grande evento.

Estamos em condições agora de apreciar, nos primeiros textos que nos aparecem, em que termos certa intelectualidade europeia tem se posicionado em relação à guerra e também de confrontar esse posicionamento com a visão sobre o mesmo fenômeno de pensadores latino-americanos. Veremos que, nesse confronto, abre-se uma oportunidade rara de finalmente podermos rever o nosso reflexo de valorização, muitas vezes, acrítica, da contribuição dos nossos grandes mestres europeus.

Queremos assim cotejar, de um lado, as tomadas de posição dos filósofos europeus Edgar Morin, e Slavoj Žižek, e, de outro, as do Prêmio Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel e do cientista político brasileiro José Luis Fiori, da UFRJ.

É interessante acompanhar de perto a sutileza dos comentários dos europeus supracitados que relevam, apesar de uma aparente moldura de neutralidade, uma escolha por um dos lados o qual, como não poderia deixar de ser, é o lado da visão de mundo europeia.

Comecemos por Edgar Morin (veja aqui). Para ele, um dos aspectos simples no evento em pauta é “o fato de que o agressor é uma grande potência e o agredido uma nação pacífica” que, além disso, sofreu uma “revolução democrática” em 2014. De início, não nos parece apropriado considerar que o golpe de 2014 na Ucrânia, preparado pela inteligência americana, seja exatamente algo democrático nem que a influência neonazista nesse país e a guerra com as regiões separatistas ao leste torne a Ucrânia uma nação particularmente pacífica.

Mas continuemos. Vladimir Putin é descrito como um governante com “crescente ambição” de expansão de sua área de influência, assim como, o autor também o admite, é o caso das guerras americanas do Iraque, Líbia e Afeganistão. De acordo, trata-se, nos dois casos, de disputas geopolíticas do mesmo teor, mas é digno de nota a descrição de Putin como alguém “ambicioso”. O presidente americano da vez não o seria? Embora admita que os Estados Unidos instalaram bases militares nas ex-repúblicas soviéticas do Sul, Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão, fechando de fato o cerco na Sibéria, Vladimir Putin é retratado como alguém de “psicologia obsessiva”, o que explicaria o “endurecimento de seu regime autoritário”, ou seja, a política interna russa se deve aos traços subjetivos da personalidade de Putin.

Ora, as características do governo russo ou do governo de Putin poderiam ser atribuídas a um sem número de razões que vão desde uma tradição eurasiana não identificada com os cânones da democracia europeia ocidental a necessidades internas de segurança que podem, é claro, ser criticadas e refutadas, mas não necessariamente se deve à subjetividade de Putin. Se a direção proposta por Edgar Morin fosse boa, o que não o é, poderíamos, por exemplo, cogitar que George Bush Filho fez a segunda guerra do Iraque para superar, edipicamente, George Bush Pai o qual não conseguiu ou desistiu de chegar a Bagdá e assassinar Saddam Husseim….

A insistência psicologizante de Edgar Morin se mostra em todo seu esplendor no seguinte trecho: “a princípio prudente e ardiloso, Putin tornou-se audacioso em 2014 e, doravante, é impelido por uma terrível raiva”. Adentramos nesse ponto o nível de folhetim com Vladimir Putin assumindo todas as características dos grandes vilões do cinema americano. A certeza desse ponto de vista se mostra também quando Morin avalia como heroica a resistência do presidente Volodymyr Zelensky. Como se vê, o antagonismo vilão-herói surge com toda sua força.

Se passarmos um pouco para o nível racional, podemos nos perguntar se cabe apelar para o mito do herói a respeito de um presidente que sacrifica seu povo e seu país, jogando-os numa guerra que ele sabe que não pode ser vencida. Como sabemos, Volodymyr Zelensky faz o jogo americano de uma guerra a mais longa possível com o intuito de enfraquecer Vladimir Putin, a Rússia e, por tabela, a China. Ora, o envio constante de armas para a Ucrânia tem claramente esse objetivo.

Os mortos nas guerras americanas, com o apoio europeu, na Líbia, Iraque e Afeganistão, etc. são enfim lembrados, por Edgar Morin, numa tentativa de equalizar os fatos. Porém, sabemos que não houve nenhum tipo de boicote a produtos ou à cultura americana quando se mataram, no pior dos casos, 650 mil pessoas no Iraque; não houve também qualquer tipo de boicote a Israel, por exemplo, quando, nos bombardeamentos aos palestinos, feriram-se, segundo a UNICEF, só no primeiro semestre de 2021, 1241 crianças palestinas, com 76 mortes.

Por sua vez, o texto do superstar Slavoj Žižek (veja aqui) aponta, de início, que justamente agora que precisamos de muita colaboração devido aos problemas climáticos, escassez de alimentos e água, etc. vemo-nos, de novo, diante de uma crise e de uma guerra com graves consequências. Para ele, trata-se do antigo “choque de civilizações”, reciclado devido aos países recalcitrantes de aceitação da “pax” ocidental. Aponta a Coreia do Norte como um deles e também a China, conjecturando sobre o desejo chinês de um tipo de “exercício” de guerra com a tomada de Taiwan, o que tem sido, segundo o autor, incentivado pela “máquina de propaganda” chinesa. Por fim, a Rússia, é claro, que “se recusa a usar a palavra “guerra” para sua “operação militar especial” não apenas para minimizar a brutalidade de sua intervenção”. Para ele, esses tipos de movimentos vão contra “a necessidade urgente de civilizar nossas civilizações”.

A desqualificação russa é muito visível quando ele diz que Vladimir Putin dispõe de um “ideólogo”, isto é, Aleksandr Dugin, que não mereceria a categorização de “pensador”. O léxico usado para nomear as “coisas” russas mereceria um texto à parte: ninguém pensou em chamar, por exemplo, Henry Kissinger de ideólogo, mesmo quando ele coordena a Operação Condor que implantou as sanguinárias ditaduras militares na América latina, o que incluía assassinatos de opositores como o do embaixador chileno Orlando Letelier. Por sua contribuição enquanto “diplomata”, Kissinger ganhou o Nobel da Paz!

Ao que tudo indica, para Žižek, o problema começa quando países como os citados se recusam a se tornar “civilizados”, não aceitando a ordem mundial ditada pelos países ocidentais e passam a reivindicar áreas de influência geopolíticas e econômicas. Tudo indica que, pelo contrário, caminhávamos em paz e civilizados quando só os EUA e os países europeus se impunham pela força. Como bom marxista, ele sabe, no entanto, que Estados nacionais em competição capitalista vão terminar por fazer a guerra. A perda da universalidade, que perola seu texto, como uma das vítimas dessa guerra é, na verdade, a manifestação da própria história pelo motor da luta por reconhecimento.

Vejamos a seguir como o Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel (veja aqui), trata o nosso tema. A mudança do discurso salta aos olhos: o autor começa apontando a manipulação dos meios de comunicação que procura impor um pensamento único sobre o está a ocorrer. Prossegue denunciando aqueles que falam de paz, mas continuam a insuflar os ânimos, como se jogassem gasolina no fogo.

Relembra uma experiência por ele vivida ao se dirigir a Bagdá durante a guerra do Iraque cujo relato merece ser reproduzido: “segundo a informação dos grandes meios de imprensa, duas bombas inteligentes tinham entrado pelo tubo de ventilação e destruído um bunker militar. A verdade é que destruíram e mataram mais de 500 crianças com suas mães, era um refúgio, segundo Vamveyda, mãe de Veyda. A primeira bomba matou muitas pessoas, a segunda entrou e elevou a temperatura a mais de 500 graus, matando quase todos e destruindo a tubulação. Apenas 17 pessoas sobreviveram. Denunciamos os fatos em nível internacional, a resposta foi o silêncio. Os EUA justificaram o fato como “danos colaterais” em qualquer guerra”. Por fim, Esquivel clama para que os ocidentais desarmem “a razão armada” e busquem um cessar fogo entre Rússia e Ucrânia já que todos são responsáveis.

Por fim, José Luís Fiori (veja aqui), que nos traz dados bastante relevantes, historiografa o período do fim da guerra fria até o momento presente. Relembra que a potência unipolar vencedora, responsável por administrar a paz mundial, esteve continuamente em guerras, realizando 48 intervenções na década de 90 e se envolvendo em guerras “sem fim” desde então. Nas duas primeiras décadas do século XXI, os EUA realizaram 24 intervenções militares, com 100 mil bombardeios aéreos: só no governo Obama, jogaram-se 26.171 bombas sobre 7 países. Realista, finaliza constatando que o que concebemos como paz, embora desejo humano inatingível, é apenas o período de rearmamento dos perdedores da guerra anterior em busca de revanche, o que parece que está acontecendo agora com a busca da Rússia de ampliar sua influência geopolítica.

O contraste entre os dois grupos de autores é agora bastante claro. Morin e Žižek tomam posições que refletem sua visão de mundo europeia, ao passo que Esquivel e Fiori relembram a realidade geopolítica das últimas décadas, buscando, se não um posicionamento neutro, pelo menos, apontar a contribuição dos demais atores, sobretudo dos EUA.

O distanciamento comentado pode indicar que a opinião do chamado Sul global tende a se opor à opinião europeia dominante, o que é bem-vindo já que pode fomentar certa independência intelectual a qual consegue enxergar que um mundo multipolar pode ser mais benéfico para nós. O fato de países como a China, a Índia, o Vietnã, Iraque e a África do Sul, que representam quase metade da população mundial, buscarem neutralidade – o que pode se ampliar com o Irã, o Brasil, num governo atuante que preste, e outros países – parece mostrar que o sul global aguarda o desenrolar dos acontecimentos para se posicionarem de forma mais consistente.

*Lorenzo Vitral é professor titular de linguística da Faculdade de Letras da UFMG.

 

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