Surpresas desagradáveis

Imagem: Pok Rie
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Chegamos a um ponto de que se não trocarmos o modo devastador dos ecossistemas, podemos ir ao encontro de nosso extermínio como espécie humana

Desde a mais alta antiguidade a Terra sempre foi tida com Mãe, que junto com outras energias cósmicas, nos fornece tudo o que a vida sobre o planeta precisa. Os gregos chamaram-na de Gaia ou Demeter, os romanos Magna Mater, os orientais Nana, os andinos de Pachamama. Todas as culturas a consideravam-na com um super ente vivo que, por ser vivo, produz e reproduz vida.

Somente na modernidade europeia, a partir do século XVII, a Terra foi considerada com uma “mera coisa extensa”, sem propósito. A natureza que a cobre, não possui valor em si, somente quando for útil ao ser humano. Este não se considera parte da natureza, mas seu “seu senhor e dono”. Fizeram de tudo com ela, sem qualquer respeito, umas boas e outras letais. Essa modernidade arrojada criou o princípio de sua própria autodestruição com armas de podem destruir totalmente a si mesmo e a vida.

Deixemos de lado este modo fúnebre de habitar a Terra ecocida e geocida, por mais ameaçador que possa ser em qualquer momento. Deixemo-nos desafiar (sem a pretensão de explicar) os últimos eventos extremos ocorridos: grandes enchentes no sul do país e na Líbia, terremoto arrasador no Marrocos, fogos indomáveis no Canadá, nas Filipinas e alhures.

Em grande parte, se está criando um consenso entre a comunidade científica (menos na política e nos grandes oligopólios econômicos dominantes) de que a causa principal, não única, se deve à mudança do regime climático da Terra e os limites de insustentabilidade do planeta. É a famosa Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot Day): consumimos mais do que ele nos pode oferecer. E ele já não aguenta mais.

Como é um super ente vivo, reage, enviando-nos aquecimento global, ondas de eventos extremos, terremotos, furacões, vírus letais etc. Chegamos a um ponto de que se não trocarmos o modo devastador dos ecossistemas, podemos ir ao encontro de nosso extermínio como espécie humana. Os últimos fatos são prenúncios.

De tudo deve-se tirar lições. Hoje conhecemos, o que era negado às gerações anteriores, como funcionam as placas tectônicas que compõem o solo da Terra. Conhecemos suas fendas perigosas, quais placas podem estar se movendo. A consequência é se construirmos nossas cidades e casas sobre estas fendas, poderá chegar um dia em que ocorre um deslocamento ou entrechoque de fendas, produzindo um terremoto com sacrifícios humanos e culturais incalculáveis. Lá se vão obras da genialidade humana. A consequência que hoje devemos tirar: não podemos construir nossas habitações e cidades sobre estes lugares. Ou devemos desenvolver tecnologias, como os japoneses o fizeram, que edifícios tendo por base metais que equilibram todo o prédio a ponto de suportar os movimentos de terremotos.

Algo semelhante vale para as grandes enchentes de magnitude avassaladora. Sabemos que todo o rio tem seu leito por onde correm as águas. Mas a natureza previu que deve haver espaços suficientemente grandes em suas bordas que suportem alagamentos. Estes espaços são parte de se leito alargado. Neles em vão se edificam prédios e inteiras cidades. Ao chegar a enchente, as águas reclamam o seu espaço por onde elas escorrem. Então ocorrem as grandes calamidades. Cientes destes dados, impõem-se medidas de contenção ou simplesmente não permitir que nesses lugares se construam casas, fábricas e bairros. Em termos mais radicais, estas partes da cidade devem encontrar um outro lugar seguro para não sofrerem sua danificação ou sua destruição.

Estes são conhecimentos que os governantes e operadores do poder público devem tomar em conta. Caso contrário, por falta de conhecimento que beira à irresponsabilidade, deverão, de tempos em tempos, enfrentar catástrofes que matam pessoas, destroem casas e tornam certa região inabitável.

Estas catástrofes pertencem à história da Terra. Chegamos a conhecer 15 grandes extinções em massa. Uma das mais importantes ocorreu há 245 milhões de anos por ocasião da formação dos continentes (a partir do único Pangeia). Nela desapareceram 90% das espécies da vida animal, marinha e terrestre. A Terra precisou de alguns milhões de anos para refazer sua biodiversidade. A segunda maior extinção em massa ocorreu há 65 milhões de anos quando um asteroide de quase 10 km de extensão caiu em Yucatan, no sul do México. Isso provocou um imenso maremoto, com grande volume de gás venenoso e uma treva imensa que obscureceu o sol e assim impediu a fotossíntese e 50% de todas as espécies pereceram. Os dinossauros que por 130 milhões de anos vagavam por parte da Terra foram as principais vítimas.

Curiosamente, depois de cada extinção em massa, a Terra conheceu uma floração fantástica de novas espécies. Depois da última, apareceram especialmente os mamíferos, dos quais nós mesmos descendemos. Mas, misteriosamente, começou também uma terceira extinção em massa. A atual não é como as duas anteriores que ocorreram de golpe. Ela se faz lentamente, por diversas fases, começando na era glacial há 2,5 milhões de anos. Constata-se nos últimos tempos uma aceleração desta extinção. O regime climático está aumentando dia a dia e eventos extremos se multiplicam como temos descrito. Entramos num alarme ecológico, pois, como disse severamente o Papa na Fratelli Tutti: “Estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

Como diz Peter Ward, em seu livro O fim da evolução (Campus): “Há 100 mil anos atrás, outro grande asteroide atingiu a Terra, dessa vez na África. Este asteroide chama-se homo sapiens”. Quer dizer, é o ser humano moderno que inaugurou o antropoceno, o necroceno e o piroceno. Se grande é o risco, dizia um poeta alemão, grande também é a chance de salvação. É nessa que espero e confio, não obstante as calamidades descritas acima.

*Leonardo Boff é eco-teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra (Vozes). [https://amzn.to/45TOT1c]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Atilio A. Boron Vanderlei Tenório Fernão Pessoa Ramos Marilena Chauí Paulo Capel Narvai José Luís Fiori Alexandre de Lima Castro Tranjan Slavoj Žižek Alysson Leandro Mascaro Luiz Bernardo Pericás Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonio Martins Everaldo de Oliveira Andrade Jean Pierre Chauvin Marcos Silva Érico Andrade Marilia Pacheco Fiorillo João Paulo Ayub Fonseca Jorge Luiz Souto Maior Gabriel Cohn Remy José Fontana Otaviano Helene Luiz Eduardo Soares Carla Teixeira Salem Nasser Dênis de Moraes Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Sandra Bitencourt Leda Maria Paulani Manchetômetro Vinício Carrilho Martinez Lincoln Secco Gilberto Maringoni Paulo Sérgio Pinheiro Celso Frederico Marcelo Módolo Claudio Katz Marcelo Guimarães Lima Gilberto Lopes Leonardo Avritzer Ladislau Dowbor Luciano Nascimento Fábio Konder Comparato Ricardo Antunes Maria Rita Kehl João Feres Júnior Tadeu Valadares Fernando Nogueira da Costa Eugênio Trivinho Milton Pinheiro Liszt Vieira Valerio Arcary José Raimundo Trindade Luiz Werneck Vianna Rodrigo de Faria Francisco Pereira de Farias Igor Felippe Santos Flávio R. Kothe Armando Boito Paulo Martins Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Branco Michael Roberts Osvaldo Coggiola Andrés del Río Julian Rodrigues Eduardo Borges José Machado Moita Neto Boaventura de Sousa Santos Elias Jabbour Ricardo Musse Flávio Aguiar Carlos Tautz Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Loebens Bento Prado Jr. João Lanari Bo Antonino Infranca Eliziário Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Vladimir Safatle Jean Marc Von Der Weid Bruno Machado Celso Favaretto Anselm Jappe Caio Bugiato José Dirceu Henri Acselrad Ronald Rocha Francisco Fernandes Ladeira Rafael R. Ioris Andrew Korybko Bernardo Ricupero Daniel Brazil Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Chico Alencar Gerson Almeida Denilson Cordeiro Leonardo Sacramento Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Juarez Guimarães Antônio Sales Rios Neto Marcus Ianoni José Costa Júnior Daniel Costa Berenice Bento André Singer Luiz Renato Martins Henry Burnett José Micaelson Lacerda Morais Luiz Marques João Sette Whitaker Ferreira Alexandre Aragão de Albuquerque Marcos Aurélio da Silva Ronaldo Tadeu de Souza Benicio Viero Schmidt Priscila Figueiredo Paulo Fernandes Silveira Luiz Roberto Alves Tarso Genro Eleutério F. S. Prado Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Afrânio Catani Dennis Oliveira Luís Fernando Vitagliano João Carlos Salles Ricardo Abramovay José Geraldo Couto Eleonora Albano Ricardo Fabbrini Michel Goulart da Silva Luis Felipe Miguel Chico Whitaker Samuel Kilsztajn Walnice Nogueira Galvão Eugênio Bucci Leonardo Boff Michael Löwy Heraldo Campos Renato Dagnino Mário Maestri Paulo Nogueira Batista Jr Rubens Pinto Lyra Tales Ab'Sáber Airton Paschoa Thomas Piketty Lorenzo Vitral Bruno Fabricio Alcebino da Silva Kátia Gerab Baggio Mariarosaria Fabris Marjorie C. Marona Ronald León Núñez Ari Marcelo Solon André Márcio Neves Soares

NOVAS PUBLICAÇÕES