Refazendo a história

Imagem: Inga Seliverstova
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Por LUIZ MARQUES*

O fascismo como produto do colonialismo

Nascido na Martinica, Aimé Césaire (1913-2008) é um dos mais importantes poetas surrealista. Na década de 1930, época em que estudou em Paris, escreveu no jornal L’Étudiant Noir o artigo “Nègreries: conscience raciale et révolution sociale”, no qual formula o conceito de “negritude”, no sentido de ideologia e/ou ontologia. Na síntese de Jean-Paul Sartre, “contra a Europa e a colonização”.

Em 1950, Aimé Césaire lança o Discurso sobre o colonialismo. Tornada a bíblia dos militantes anticolonialistas, inspirou a doutrina pan-africana e os Panteras Negras. É citada na abertura do livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon. Compõe o acervo básico das bibliotecas escolares francesas, de segundo grau. A autorreflexão pelos colonizados é um ato performático de libertação. A atualidade do libelo está em apontar o fascismo como produto do colonialismo.

Para o intelectual insurgente, “embora se disfarce de humanista e cristão, o burguês carrega consigo um Hitler sem saber, Hitler vive nele, Hitler é seu demônio, se o vitupera é por falta de lógica; o que ele não perdoa em Hitler não é o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco; é haver aplicado na Europa os procedimentos colonialistas que atingiam apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África”. Corta, agora, para uma breve recapitulação da história verde-amarela recente.

 

Status quo

Dois meses e meio depois de assumir a presidência, Jair Bolsonaro reuniu-se nos Estados Unidos com representantes da extrema direita estadunidense. Com todas as letras, expôs o programa de destruição das bravas conquistas alcançadas pelos governos progressistas, no primeiro decênio do século XXI. Foi incisivo ao anunciar o ataque aos direitos sociais, pelo desgoverno que iniciava.

O desprezo aos direitos humanos já era de conhecimento geral. Fora reiterado em cerimônias laudatórias a covardes torturadores. Assim, quando as entidades empresariais, o aparato judicial e a mídia corporativa brasileira avalizaram o golpe ao mandato legítimo de uma presidenta honesta para, a seguir, cancelar o líder das intenções de voto nas pesquisas, em 2018, as “elites do atraso” tinham ciência de que seu Hitler interno chancelava um Hitler externo. Ninguém foi ludibriado. “Essa é a acusação que eu dirijo ao pseudo-humanismo: ter reduzido os direitos humanos, ter uma concepção tendenciosa deles e, sordidamente, racista”, parafraseando a denúncia do vate caribenho.

Isso não tirou o sono das pessoas de bem, nem constrangeu o lero sobre a liberdade e a igualdade nos saraus da “casa grande”. Os pobres, na maioria negros e pardos, pagariam a conta. A esquerda levaria a culpa. Tudo delineado de acordo com a gramática da tradição para perpetuar as hierarquias sociais, herdadas do domínio colonial. O caráter extrativista da burguesia local não viu nenhum problema no retrocesso que fez, o Brasil, voltar a ser um mero entreposto comercial das potências maiores. As privatizações de empresas e de riquezas estratégicas bloquearam o promissor projeto desenvolvimentista para amainar as iniquidades, que avolumavam na periferia. Com o que os vira-latas do capital abraçaram um homem sem qualidades, com a alegação de que era “sincero”.

As oscilações das classes dirigentes dependem do comprometimento com o sistema-mundo. Para o agronegócio, tanto faz se a nação preserva o Estado democrático de direito ou se encarna o regime iliberal. “Os países compram alimentos, sem perguntar sobre a procedência”. A convicção utilitária reproduz o imperialismo das commodities. A fábula meritocrática dos exportadores nutre-se de ideias inescrupulosas. Os ressentidos, sublinhe-se, não com as cruéis injustiças que infernizam a população, mas com sua posição específica no edifício das discriminações, respaldaram o candidato que elogiava os 500 anos do status quo de desigualdades, para que suspendesse a mobilidade social.

Os setores globalizados da economia tendem à contemporização. Não por que possuam uma ética superior, afinal, endossaram a escalada ao Palácio do Planalto do “palhaço sociopata”, na expressão de Noam Chomsky. Prospectam negócios, com mais variáveis intervenientes. Não quer dizer que os aspectos processuais da trama sejam secundários, e sim que a identificação ideológico-moral com o extremismo de direita foi decisiva para a adesão da escumalha elitista. O Coisa Ruim é o seu “eu” profundo, onde fracos não têm vez, gays são linchados, mulheres se acomodam no degrau debaixo, negros obedecem o sinhô, negras servem à concupiscência e precarizados limpam os banheiros.

Tristes trópicos em que as classes detentoras do poder concentram a renda e o consumo, não a capacidade de socializar a cidadania e garantir a soberania nacional. Por instinto de sobrevivência, dias antes do memorável segundo turno, banqueiros, investidores, empresários declararam apoio à chapa que aglutinou a Frente da Esperança contra a corja de canalhas, encabeçada pelo genocida.

Anos atrás, o jornal O Estado de S. Paulo cravara, em editorial, que a escolha era difícil. A mentalidade antirrepublicana não se alterou. Em 2022, as classes médias retornaram à cena do crime e quase reelegeram o corrupto que vocalizou os preconceitos colonialistas da dominação e subordinação. O país ainda não ultrapassou a fase de acumulação primitiva, o que explica os delitos dos bilionários. Se o andar de cima não cuida do ralo da pia, a caixa de gordura entupida transborda no condomínio.

 

La bête humaine

Sob o tacão bolsonarista, a ignorância e a truculência eram normais. La bête humaine, porém, era um pária em assembleias da ONU, sem que uma alma se dignasse cumprimentar. O negacionismo científico em plena pandemia do coronavírus, o negacionismo político em relação à importância das instituições republicanas, o negacionismo afetivo com o sofrimento de vulneráveis empurrados para o mapa da fome e o negacionismo climático frente ao desmatamento da floresta amazônica feriram a razão iluminista ocidental que, apesar dos pesares, influiu na opinião pública esclarecida. As maneiras de miliciano, desbocado, esteve sempre em contradição com o respeito e o decoro.

A invasão do Capitólio pela turba trumpista acendeu o alerta. Uma generalização dos Estados de exceção acarretaria uma instabilidade no planeta, transformando-o num barril de pólvora, e deixaria a bandeira da paz e da democracia de posse dos defensores radicais da justiça social e ambiental.

Acostumadas a cálculos geopolíticos, frações da burguesia perceberam que, criar o Frankenstein, é uma tarefa simples comparada ao controle do monstrengo, uma vez instalado no centro do aparelho estatal na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas. A lição, amiúde esquecida, remonta à experiência na Alemanha, com o Führer, o exterminador de estimação dos extremistas.

O capitalismo tem se mostrado, incapaz, de assegurar um direito dos povos (vide o fracasso das conferências sobre o clima) e, impotente, para estabelecer uma moralidade individual (vide o papel dos yuppies na crise de 2008, fruto da especulação financeira e da desregulamentação econômica). “No final do beco, há Hitler. No fundo do capitalismo, ansioso por sobreviver, há Hitler. No fundo do humanismo formal e da renúncia filosófica, há Hitler”. Trump, Putin, Orbán, Erdogan, Meloni…

O núcleo do hitlerismo está condensado na seguinte assertiva: “Nós aspiramos, não à igualdade, mas à dominação. O país de raça estrangeira terá que se tornar novamente um país de servos, diaristas agrícolas ou trabalhadores industriais. Não se trata de eliminar as desigualdades entre os homens, mas de ampliá-las e torná-las uma lei”. A receita de selvageria foi adotada pelo Consenso de Washington, nos estertores da Guerra Fria. Era o neoliberalismo que, com pompa, se apresentava como La nouvelle raison du monde, para evocar a ótima obra de Pierre Dardot e Christian Laval.

Políticas impúblicas necessitam do autoritarismo para impor o laissez-faire protoescravista. O mercado recicla e renova as graves disparidades no tecido social, e barra ou omite as contestações orgânicas por parte dos ofendidos, em cada momento. O modelo ideal de gestão da modernização neoliberal combina o velho colonialismo com o novo fascismo – a trágica tríade da necropolítica.

Os Yanomami, a exemplo dos demais povos originários, compreendem o dilema. Submetidos ao totalitarismo da mercadoria, em que a devastação da natureza anda junto com a extração ilegal de minerais (ouro, diamantes) em terras oficiais demarcadas, a comunidade é um obstáculo à rapina. O mesmo vale para os trabalhadores excluídos da cadeia produtiva, que formam o triste exército de marginalizados rumo à “solução final”. A dinâmica capitalista, ao justificar a colonização, premiou a força e a morte. “A civilização doente, de negação em negação, chama seu Hitler, seu castigo”.

 

Angelus novus

Aimé Césaire incomoda os reacionários. Em uma ocasião, um deputado direitista confrontou-o diretamente. “O que seria de você sem a França?” – “Um homem de quem não teriam tentado tirar a liberdade”, respondeu. “Mas você ficou feliz que nós o tenhamos ensinado a ler!” – “Aprendi a ler graças ao sacrifício de milhares e milhares de martinicanos que sangraram suas veias para que seus filhos pudessem ser educados e pudessem defendê-los um dia”, arrematou com altivez e destemor.

“Posso ver bem o que a colonização destruiu: as admiráveis civilizações indígenas, e nem Deterding nem a Royal Dutch, nem a Standard Oil jamais me consolarão dos astecas ou dos incas”, desabafa o poeta. Imagine o quadro Angelus novus, de Paul Klee, em que o anjo é empurrado para a frente pelo progresso, enquanto volta a cabeça e olha para as terríveis ruínas do belo que ficam pelo caminho.

A colonização é igual à coisificação. Não há espaço para o efetivo exercício dos afetos autênticos na dialética entre o colonizador e o colonizado. Só há espaço para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, os impostos, o roubo, o estupro, a imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, as covas rasas, a presunção, a grosseria, o insulto, a loucura, as elites descerebradas, as massas aviltadas. “Falo de proletarização e mistificação. Faço a apologia das civilizações para-europeias”.

A Europa burguesa liquidou civilizações inteiras, dissolveu pátrias, arruinou nacionalidades e arrancou a raiz da diversidade. Maquiou a barbárie com avenidas cheias de automóveis, o moderno shopping norte-americano e a crença em soluções hiperindividualistas. Multiplicou a violência, o excesso, o desperdício, o mercantilismo, o comportamento de manada, a vulgaridade, a desordem. Se prevaleceu, é que o sistema aprendeu a absorver a “grande recusa”, interpreta Herbert Marcuse.

Reconhecer o continuum que liga o colonialismo ao neoliberalismo e ao fascismo, por meio de Estados de exceção, significa assumir a longa história de duras batalhas (o “bom combate”, a que se referia o apóstolo Paulo) pela emancipação dos oprimidos e explorados. Significa enriquecer o imaginário e a práxis populares com o elã de personagens anônimas, que resistiram às atrocidades. Organização sociopolítica e de parentesco, linguagem, cosmologia, artesanato, ritualística, cultos, hábitos, vivências, lendas, conflitos, mártires são memórias que perpassam as múltiplas gerações.

“Transformar o mundo”, disse Karl Marx. “Mudar a vida”, disse Arthur Rimbaud. As duas palavras de ordem se encontram na encruzilhada esperada da historicidade com a cotidianidade. Quando restabelecemos os elos escondidos da corrente de opressão e exploração; quando recuperamos a percepção coletiva de lutadores redivivos sobre elos perdidos de dignidade e resiliência, em nossa ancestralidade, reapropriamo-nos da energia capaz de erguer a democracia igualitária e libertária, com participação cidadã. Refazendo a história, o horizonte se reabre e a utopia afigura-se perto.

Com o otimismo da vontade, é possível quebrar os grilhões. Como nos versos surreais do poema de título A hurler (A uivar): “Mon temps viendra que je salue / grand large / simple // Et là là / bonne sangsue / là origine des temps / là fin des temps (Meu tempo virá e eu o saúdo / grande vasto / simples // E então então / boa sanguessuga / então a origem dos tempos / então o fim dos tempos).

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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