O negacionismo militar

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Kátia Gerab Baggio*

Chama a atenção no documento a afirmação de que as “nações livres”, isto é, capitalistas, são regidas não só pela “liberdade, prosperidade e civilidade”, mas pelas “desigualdades”.

A “Ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964” – publicada no dia 30 de março de 2020 na página oficial do Ministério da Defesa, mas com data de 31, e assinada pelo ministro general Fernando Azevedo e Silva, e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica – pretende reescrever a história do Brasil e negar a existência do caráter ditatorial do regime inaugurado com o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 (iniciado com as movimentações de tropas no dia 31 de março).

A “Ordem do Dia” se inicia com a seguinte frase: “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”. E termina com as seguintes afirmações: “Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege [sic] as nações livres” e “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou”.

A pesquisa histórica sobre o período já demonstrou, de maneira absolutamente convincente e categórica, que o discurso dos comandantes militares, de que o “movimento de 1964” foi uma ação para “salvar a democracia contra o comunismo” não se sustenta. O golpe de Estado de 1964, como se sabe, inaugurou uma ditadura militar que durou duas décadas.

Em um governo, como o atual, de um presidente de extrema-direita que também nega o caráter ditatorial do regime inaugurado em abril de 1964, os comandantes militares querem negar fatos históricos. Mas não são eles que escrevem a História.

Chama a atenção, no documento, entre outras, a afirmação de que as “nações livres”, isto é, capitalistas, são regidas não só pela “liberdade, prosperidade e civilidade”, mas pelas “desigualdades”. Eis o reconhecimento, na escolha da palavra “desigualdades”, de uma verdade factual.

Na “Ordem do Dia” do Ministério da Defesa, de maneira reveladora, as “desigualdades” devem ser almejadas pelos países sem liberdade, ou seja, aqueles governados por partidos comunistas, conforme a retórica dos comandantes militares. É um reconhecimento, intencional ou não, de que conciliar a luta pelas liberdades com a luta pelas igualdades é o que caracteriza as esquerdas democráticas.

Às direitas, fica a aceitação – e mesmo a defesa – das desigualdades, junto com as falsas liberdades, porque restritas a uma parcela absolutamente minoritária da sociedade.

*Kátia Gerab Baggio é historiadora e professora de História das Américas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Referência

A “Ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964” pode ser acessada neste link.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • A ditadura do esquecimento compulsóriosombra escadas 28/09/2024 Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU: Pobres de direita se identificam com o funk ostentação de figuras medíocres como Pablo Marçal, sonhando com o consumo conspícuo que os exclui
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão
  • Guilherme BoulosValério Arcary 02/10/2024 Por VALERIO ARCARY: A eleição em São Paulo é a “mãe” de todas as batalhas. Mesmo se perder em quase todas as capitais fora do Nordeste, se a esquerda ganhar em São Paulo equilibra o desfecho do balanço eleitoral
  • Fredric Jamesoncultura templo rochoso vermelho 28/09/2024 Por TERRY EAGLETON: Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES