Traidores da pátria

Imagem: Vincent Sébart
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Por ROSIMAR GONÇALVES*

Quando Lula se nega a fazer um pronunciamento à altura do que o cargo da Presidência da República exige, está politicamente sendo omisso em suas obrigações de manter a sociedade consciente dos perigos que correu com a tentativa de golpe

Desde a época romana (Plínio, o Velho – Naturalis Historia) afirmava-se que os avestruzes enterravam a cabeça no chão acreditando que todo o seu corpo estaria escondido. Mas como mitos sem fundamento científico são frequentes na percepção humana, nem tudo o que supomos ser ou, ao menos, nem todas as interpretações que construímos a partir do que vimos tem correspondência com a realidade factual.

Neste caso, é verdade que avestruzes são frequentemente vistos com suas cabeças em buracos no chão, no entanto, o motivo é zelo e não estupidez. Por serem os seus ninhos construídos no solo, o reposicionamento constante dos ovos é feito com a sua cabeça, demonstrando que a construção da teoria de negacionismo ou fuga da realidade sobre essa ação costumeira dessa ave não passa de um mito.

Mas também é fato que esse falseamento da verdade vem sendo repetido, há tantas gerações, que se tornou um ditado popular que associa a prática de fuga da verdade a ser enfrentada por uma pessoa ao equivalente realizado pela ave que enfiaria sua cabeça em um buraco (seu nicho protetor) para fugir do mundo externo.

Nesse aspecto, eu tenho me perguntado se seria justo atribuir ao Presidente Lula esse ditado…? Em minha percepção, ao evitar a todo custo qualquer embate político, Lula estaria praticando uma fuga da realidade, aquela espécie de negacionismo que é comum ser atribuída somente ao campo político da extrema-direita.

Depois de sua vitória nas eleições, em um governo composto pela esquerda diluída em uma frente ampla (partidos de direita) decidiu que a discussão sobre a Defesa Nacional e Segurança Pública não deveria ser objeto de um Grupo Específico (em seus mais de trinta grupos técnicos constituídos na fase de transição) que avaliasse as estruturas, formação, atividades, programas, projetos, ações em andamento, custos, entre outros pontos relativos às Forças Armadas.

Oras, se tanto a Marinha Brasileira, o Exército Brasileiro e as Força Aérea Brasileira são instituições custeadas pelo dinheiro público e alocadas sob o comando do Ministério da Defesa, por consequência e obviamente todas as três são de competência e responsabilidade suprema do Presidente da República eleito e, se o regime é mesmo democrático, ele  negou aos civis que o elegeram o exercício dessa democracia  ao sequer abrir a possibilidade de que fossem feitas discussões sobre defesa nacional e segurança pública, cujos resultados são precários e nocivos pro país.

O total de generais no Brasil equivale ao existente naquela do mais, se não a mais poderosa Força Armada planeta: EUA, o que é uma aberração, já que a posição dos dois países na divisão internacional econômica da relação capital – trabalho é antagônica: eles são o império, nós o mero país subdesenvolvido e dependente que não está, como eles, em continuada missão de invasão e ocupação de territórios estrangeiros. Uma infinita lista de privilégios custeados pelos civis brasileiros é completamente blindada pelo presidente Lula que repete todos os dias ser um defensor da democracia, esquecendo-se que o significado do termo é povo no governo e não simplesmente a defesa das ferramentas que supostamente proporcionariam isso: instituições públicas e estado democrático de direito.

Ao vetar à sociedade o acesso aos dados e ressignificação do que seja defesa nacional e segurança pública com a não criação do grupo de transição para o tema, Lula apequena a posição dos civis brasileiros a meros custeadores das Forças Armadas, na condição de alheamento e total submissão (sem o direito de fazer qualquer intervenção ou questionamentos) ao que, ali dentro, for decidido exclusivamente pelas próprias corporações sobre seus rumos, objetivos, estrutura, formação, privilégios e afins,.

Lula impede que o Brasil seja realmente passado a limpo, conforme apregoou em sua campanha eleitoral quando disse que faria mais e melhor, quando  nega a todo momento o aspecto político que seu cargo de Presidente da República representa e quando se limita meramente à atuação como um gestor administrativo nacional neutro restrito à implantação de políticas públicas que se esquiva da premissa fundamental de um Presidente da República que é o de enfrentar questões conflitantes entre forças antagônicas que disputam entre si seus interesses.

De um lado, grupos historicamente dominantes repletos de privilégios (incluindo FA), de outro, brasileiros que querem: o que foi prometido em sua campanha eleitoral (revisão das reformas trabalhista, previdenciária, recuperação da Petrobrás para o país, impostos para grandes fortunas, bem estar social etc.) e deixarem de ser sobrecarregados com a obrigação desse custeio infindável de privilégios para a classe dominante, que incorpora as Forças Armadas.

A posição acovardada do Presidente, no início deste ano, que impediu que manifestações fossem feitas contra a ditadura militar, alegando que o passado não interessa e que deve tudo ser esquecido e apaziguado, foi só a continuidade dessa sua subordinação declarada na transição que negou aos brasileiros a apresentação de, no mínimo, um diagnóstico sobre as Forças Armadas, que segue sendo uma “caixa preta” para os civis. Sabemos de suas vilas, hospitais, regime de previdência, pensão e aposentadoria, justiça, penduricalhos nos salários completamente exclusivos e muito caros para o orçamento da união, mas nada é tornado transparente. Se estamos em um regime democrático, o próprio Ministério da defesa deveria ter um ministro civil  que colocasse na pauta de discussões a modernização e otimização dessas estruturas e não um porta-voz das corporações que só são muito caras e retrógradas em todos os sentidos colocando, além de tudo, o país em completa desvantagem no panorama internacional nessa área.

Nesses últimos dias, sem surpresa alguma para aquele que tenha mais que dois neurônios, foram divulgadas as provas definitivas sobre o que era evidente: a existência de um motim militar que estava em andamento no governo anterior para que, independentemente do resultado das eleições, os militares se perpetuassem na Presidência do país pela força. No plano, estavam incluídos três assassinatos: o do presidente e vice-presidente eleitos e o de um ministro do STF.

Lula, novamente nega a centralidade e gravidade política nacional do revelado nessas investigações ao tratar tudo somente como mais um caso policial a ser resolvido pela Polícia Federal e pelo Poder Judiciário. Não fez um pronunciamento em rede nacional aos brasileiros sobre essa tentativa de destruição da liberdade assegurada na Constituição brasileira, conquistada com muito sangue derramado durante anos por muitos brasileiros combativos.

Lula fez apenas uma chacota sobreas revelações bombásticas, alegando ter sorte por continuar vivo. Além de desrespeitoso com a democracia que diz defender,  revela também seu alto grau de vaidade, já que o objetivo central do motim militar que foi descoberto, caso os assassinatos fossem efetivados, não seriam as mortes em si (neste caso, apenas necessidades circunstanciais) mas a retomada do governo do Brasil para submetê-lo novamente ao regime totalitário, reacionário e militar, o que envolve o interesse de toda a população, que segue alienada por decisão política absurda de Lula que camufla a verdade dos fatos com silêncio.

A mesma reação personalista foi em 2016, quando o PT diz que o golpe foi contra a Dilma, mas o fato mostra que foi contra os brasileiros que perderam seus direitos trabalhistas, previdenciários e muito de sua riqueza em empresas públicas construídas com impostos pagos (na maioria pela classe trabalhadora) entregues aos capitalistas estrangeiros e cujos efeitos estão sendo sofridos ainda pela classe trabalhadora enquanto Dilma segue leve e feliz como Presidente dos BRICS. Politicamente o golpe de 2016 foi então contra ela ou contra nós, os brasileiros da classe trabalhadora? Evidente que o Presidente que estiver no cargo irá ser retirado, mas o objetivo nunca se encerra em sua retirada, se inicia nela! O objetivo sempre é o país e suas riquezas.

Matar os vitoriosos de uma eleição presidencial é um golpe contra os milhões de eleitores que o elegeram, logo o cerne do caso é aniquilação do direito democrático de milhões de cidadãos que decidiram por quem queriam ser representados e Lula ao não explicitar esse fato, nega o conceito básico de democracia: povo no governo. Lula e o PT insistem no culto ao personalismo que diminui todos os movimentos da guerra de classe à meros desentendimentos entre líderes de um e outro campo, mas o que está em jogo sempre são os bens, direitos e riquezas públicas coletivas e não de um ou outro personagem da vez.

Os alvos a serem eliminados no primeiro momento não eram os “CPFs”, mas os cargos da República ocupados por essas três pessoas, que tomados por força bruta pelo motim das forças armadas se torna o fato político recente de mais alta gravidade e de interesse nacional.

Um presidente que se furta a essa missão de ofício que é a de conscientizar seu povo politicamente, não está à altura do cargo que ocupa. Colocar em risco a liberdade da nação é muito maior do que a ameaça à própria vida, pelo menos para todo aquele Presidente que tem na política um objetivo nobre de transformação da realidade social em que vive e não para aqueles que realmente acreditam que o poder da Presidência está neles próprios e não por representarem em sua voz a voz de milhões de brasileiros que o elegeram. 

Querer impor uma versão de que foram pessoas e não as corporações militares que se amotinaram é subestimar a inteligência nacional e também negar a realidade factual.  Não estamos falando de um soldado raso em um rompante de coragem a elaborar um plano mal feito, mas de meses em que as mais altas patentes estavam no governo anterior planejando dentro dos prédios da Presidência, com estratégia e táticas pensadas e monitoradas com órgãos do próprio governo da República, que incluíam a disseminação de falsas verdades e terrorismo moral ao povo, de maneira à obtenção de seu apoio em qualquer situação de anormalidade institucional que culminaram em prisões e mortes de muitas pessoas vítimas dessa manipulação.

Tentar salvaguardar os comandantes que, agora, alegam ter negado a participação no motim militar, mas que até o momento não tinham denunciado o ocorrido a ninguém é compactuar com a falta de compromisso militar coma nação, reforçando e estimulando sua conduta covarde de proteção da própria corporação em regime estamental diferenciado que está acima do país reforçando que, dessa maneira, lealdade de cada militar é só com os seus coleguinhas de farda. Então se alguém te propõe um triplo assassinato e você nega participação, mas não denuncia nada, você é um herói? E se estiver em um exercício de cargo público de alta patente militar, qual deve ser sua lealdade: com os traidores da pátria ou com o povo que jurou defender?

Lula está construindo outra farsa que santifica forças armadas completamente desprovidas de respeito diante qualquer cidadão que conhece a história e enxerga a realidade como ela é.

Quando Lula se nega a fazer um pronunciamento à altura do que o cargo de Presidência da República exige, está politicamente sendo omisso em suas obrigações de manter a sociedade consciente dos perigos que correu. Ele nega a dor e efeito da ditadura, dizendo ser passado, mas ao fugir de uma posição política necessária, neste momento, que contextualize o motim militar como algo que colocou nossa liberdade em risco, está colaborando para que isso continue a acontecer, portanto comprometendo nosso futuro, pois sem essa consciência coletiva sobre as traidores Forças Armadas, ela continuará sendo intocável e auto gestora, exigindo apenas que continuemos a arcar com os custos de corporações desprovidas de inteligência estrutural.

Dúvidas: estaria minha percepção também equivocada como ainda é o da maioria sobre os avestruzes? Estaria Lula não enterrando sua cabeça para negar a realidade, mas esperando o momento certo para reconfigurar as estruturas constituintes da FA e sua conduta que aparenta uma traição com a classe trabalhadora ser somente uma impressão que mascara sua verdadeira intenção de transformar mesmo o país em uma sociedade justa e igualitária em oportunidades?

Não sei responder!

Rosimar Gonçalves é mestranda na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.


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