Por JOÃO QUARTIM DE MORAES*
Os dois tribunais Russell deixaram um precioso legado ao movimento anti-imperialista e antifascista
O primeiro tribunal
Em 1966, com 94 anos de idade, o grande filósofo britânico Bertrand Russell, que na primeira década do século XX havia revolucionado os fundamentos lógicos da matemática e da filosofia da linguagem, pôs-se à frente da convocação de um Tribunal Internacional de Crimes de Guerra para julgar as inomináveis atrocidades que acompanhavam a intervenção bélica dos Estados Unidos no Vietnã.
No início de 1967, ele lançou War Crimes in Vietnam [Crimes de guerra no Vietnã], um livro básico do pensamento anti-imperialista, reunindo nove escritos incisivos e bem documentados, acrescidos do texto de três discursos, entre os quais aquele que ele dirigiu pela rádio da Frente Nacional de Libertação vietnamita aos soldados das tropas invasoras estadunidenses. A coletânea apresenta ainda dois anexos: a defesa e ilustração dos objetivos do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra e uma reportagem de Ralph Schoenman, que percorreu o Vietnã do Norte sob uma chuva incessante de bombas e armas químicas lançadas pelo Pentágono em nome da “democracy”.
Para Bertrand Russell, o caráter imperialista da guerra era evidente. Mas ele inicia o livro explicando por que essa evidência permanecia obnubilada: “O racismo do Ocidente, especialmente o dos Estados Unidos, criou uma atmosfera na qual é extremamente difícil deixar clara a responsabilidade estadunidense por problemas que são considerados ‘internos’ dos países subdesenvolvidos”. A guerra em curso, prossegue, é apresentada como “produto inevitável e trágico da pobreza, do atraso e da selvageria, supostamente inerentes ao Sudeste Asiático”.1
Reunido em maio de 1967 em Estocolmo, o Tribunal compunha-se de 25 membros, todos reconhecidos defensores de direitos sociais e de causas humanitárias. Entre eles havia ganhadores do Prêmio Nobel e de outras honrosas distinções. A presidência foi atribuída a Jean-Paul Sartre, que em seu discurso de abertura ponderou que o julgamento dos crimes dos nazistas no Tribunal de Nuremberg mostrou a necessidade de uma instituição destinada a investigar os crimes de guerra, mas que nem os governos nem os povos eram capazes de criá-la.
Por isso, acrescenta não sem certa ironia: “Estamos perfeitamente conscientes de que não recebemos mandato de ninguém, mas se tomamos a iniciativa de nos reunir é porque sabíamos que ninguém podia nos conferir mandato. O Tribunal Russell […] considera que sua legitimidade provém tanto de sua perfeita impotência quanto de sua universalidade”.2
Cerca de trinta testemunhas depuseram, relatando os tétricos efeitos dos criminosos bombardeios na população vietnamita. Um menino mostrou no Tribunal seu tronco e ventre atrozmente deformados pelo napalm. Baseando-se nos conceitos de “crime contra a paz” e de “crime de guerra” introduzidos no direito internacional penal pelo processo de Nuremberg e tendo em vista a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o Tribunal decidiu em 4 de dezembro de 1967, no final de sua segunda sessão, realizada em Roskilde (Dinamarca), declarar o governo estadunidense culpado do crime de genocídio do povo vietnamita.
Bertrand Russell morreu em 2 de fevereiro de 1970, mas o impacto moral e político do Tribunal do qual ele tinha sido o grande inspirador foi considerável. Seu nome foi merecidamente associado, post mortem, ao novo Tribunal Internacional, dito Russell II, sobre a repressão no Brasil, no Chile e na América Latina, cujo principal organizador foi Lelio Basso, senador, jurista e membro proeminente da esquerda socialista italiana, que havia atuado em Estocolmo.
Rumo ao Russell II – a tragédia chilena
A nova iniciativa retomava características básicas da experiência do Tribunal Russell I: organização extrapartidária autônoma; mobilização de intelectuais, notadamente juristas, dirigentes políticos e sindicais, escritores, artistas; procedimentos de investigação, coleta de provas, depoimento de testemunhas. Havia também diferenças evidentes: dessa vez, denunciados e acusados não eram os genocidas da máquina de guerra estadunidense, mas as ditaduras militares da América do Sul.
Quando o senador Lelio Basso iniciou a articulação do Tribunal Russell II, era sobretudo o terrorismo do Estado brasileiro que suscitava a indignação internacional, em especial nos meios progressistas europeus. Visitando o Chile em 1971, durante as transformações revolucionárias promovidas pelo governo de Unidade Popular presidido por Salvador Allende, ele conversou com um grupo de exilados brasileiros a respeito da viabilidade de montar um tribunal que julgasse os crimes cometidos pelo regime militar, que institucionalizara no AI5 seu caráter abertamente terrorista.
A sombriamente degradada imagem internacional do Brasil naqueles tempos pode ser aquilatada por um exemplo sintomático: Georges Pompidou, sucessor do general De Gaulle na presidência da França, numa alocução radiofônica, referiu-se indireta mas inequivocamente ao Brasil como “le pays de la torture” [o país da tortura]. O ambiente político europeu era, pois, propício à iniciativa de Lelio Basso. Onde havia núcleos significativos de exilados brasileiros, ele estimulou a formação de comitês que reunissem documentos comprovando a sistemática violação dos direitos humanos no Brasil. Também se ocupou de obter os fundos indispensáveis à organização do Russell II, à divulgação de seus objetivos e à mobilização da esquerda anti-imperialista europeia.
A convocação formal do tribunal estava prevista para novembro de 1973. Dois meses antes, porém, o golpe militar desfechado pela cúpula fascista das Forças Armadas instaurou sob o mando do general Pinochet um regime de terror no Chile. A morte heroica do presidente Salvador Allende, resistindo até o fim, reverberou no mundo inteiro. Ele recusou com altivez o ultimatum dos chefes da sedição fascista, que fixaram para as 11 horas o início do ataque ao Palácio de La Moneda. Sua última mensagem, transmitida pela rádio Magallanes, emissora do Partido Comunista do Chile, continha uma despedida junto a uma derradeira declaração de confiança no povo e no curso da história: “Compatriotas, esta será certamente a última chance de me dirigir a vocês. […] Não vou renunciar! Posto neste momento histórico, pagarei com a minha vida a lealdade ao povo. E digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, podem nos avassalar, mas os processos sociais não são detidos nem pelo crime nem com a força. A história é nossa e são os povos que a fazem”.3
Os disparos dos tanques e o voo rasante de dois caças Hawker Hunter, de fabricação britânica, anunciaram o assalto final, que começou às 11h50. Foguetes lançados pelos caças explodiram no interior do Palácio, provocando um incêndio. Um pelotão do Exército ocupou o pátio e iniciou a invasão do prédio. Segundo a versão mais aceita, decidido a não cair vivo nas mãos dos golpistas, Salvador Allende reservou para si uma bala do fuzil que empunhava.
A rádio Magallanes também caiu de pé. Antes de ser tirada do ar, transmitiu o discurso-testamento de Allende e em seguida a canção do grupo Quilapayún, que se perenizaria como o hino da luta contra o fascismo militar, “El pueblo unido jamás será vencido”. O regime golpista recorreu, desde as primeiras horas, a operações de aniquilamento para quebrar a resistência popular. Os Cordones Industriales, organizações de poder local do movimento operário, foram aniquilados um após o outro; corpos de militantes da Unidade Popular eram lançados no rio Mapocho, que atravessa Santiago; o Estádio Nacional transformou-se em campo de concentração de mais de vinte mil prisioneiros, via de regra torturados, muitos deles executados sumariamente.
Perante a comoção internacional provocada por tão terrível tragédia, Lelio Basso e os demais organizadores do novo tribunal atenderam imediata e convictamente ao pedido de Hortensia Allende, viúva do presidente, para incluir o Chile, ao lado do Brasil, na agenda do Russell II. Em 6 de novembro de 1973, foi formalmente anunciado em Bruxelas o início dos trabalhos do Tribunal Russell II sobre a repressão no Brasil, no Chile e na América Latina.
A data e o local do lançamento haviam sido escolhidos para responder a uma megaexposição montada com o objetivo de atrair investidores dos “ambientes de negócios” do grande capital europeu, celebrando o falacioso “milagre brasileiro”. Na capital da Bélgica estavam instalados os órgãos burocráticos da Comunidade Econômica Europeia (CEE), antecessora da União Europeia, bem como os da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), máquina de guerra do “Ocidente” imperialista.
De Roma a Roma
A primeira sessão de julgamento do Tribunal Russell II, presidida por Lelio Basso, ocorreu em Roma, de 30 de março a 6 de abril de 1974. Ao longo de treze audiências, as graves violações dos direitos humanos e das liberdades fundamentais que ocorriam nas ditaduras militares do Brasil, do Chile, do Uruguai e da Bolívia foram amplamente documentadas e comprovadas por testemunhas de inatacável idoneidade.
O Tribunal elaborou uma lista de mais de mil torturados no Brasil, identificando também muitos torturadores e descrevendo os métodos atrozes de que estes se serviam para extorquir rapidamente informações que permitissem localizar e aniquilar os núcleos de resistentes ou tidos como tais. Também no Uruguai, onde se desenvolveram movimentos de luta revolucionária, a tortura foi sistematicamente empregada com o mesmo objetivo.
No Chile, onde os golpistas exibiram de imediato sua fúria homicida, a tortura serviu para destruir fisicamente os militantes da causa popular, antes de se tornar, como alhures, um método sórdido de coleta de informações. Na Bolívia, o curto governo patriótico e progressista do general Juan José Torres (1970-1971) foi derrubado por um golpe da extrema direita militar, acintosamente apoiado pela Embaixada dos Estados Unidos, que instaurou a ditadura criptofascista do general Hugo Banzer.
Em nome da resistência popular em seus respectivos países, tomaram a palavra o ex-governador Miguel Arraes, então exilado em Argel, o senador Zelmar Michelini, da Frente Ampla uruguaia, exilado em Buenos Aires, e Carlos Vassallo, último embaixador na Itália do governo legal do Chile. Naquele momento, a ditadura militar no Brasil completava uma década, mas no Uruguai ela remontava a 27 de junho de 1973 e no Chile a 11 de setembro do mesmo ano.
Coube a Miguel Arraes tomar a palavra logo no início dos trabalhos. Ele salientou o agravamento das desigualdades sociais e a forte queda do poder aquisitivo dos salários na cidade e no campo desde 1964, mostrou que estava em curso uma “reforma agrária” ao contrário, com ampla distribuição de terra aos latifundiários, e denunciou a alienação ao capitalismo imperialista de setores-chave da economia.
Embora com menos impacto internacional, porque a instauração da ditadura aberta passou por uma lenta e gradual supressão dos direitos e garantias do Estado liberal-democrático, o terror policial-militar no Uruguai atingiu enormes proporções, como mostrou o senador Michelini em sua intervenção. Pelo menos 5 mil cidadãos haviam sido torturados e 40 mil aprisionados em uma população total de 2,5 milhões de habitantes. Num país como a Itália, com 50 milhões de habitantes, o número de torturados e aprisionados seria proporcionalmente vinte vezes maior.
Ao término das atividades da primeira sessão, o Tribunal concluiu que “as autoridades que, de fato, exercem o poder no Brasil, no Chile, no Uruguai e na Bolívia” foram declaradas “culpadas de violações graves, repetidas e sistemáticas dos direitos humanos”. Consideradas em conjunto, essas violações configuram “um crime contra a humanidade cometido em cada um dos quatro países em questão pelas próprias autoridades que exercem o poder”.4
Abrindo em Bruxelas a segunda sessão do Russell II, que transcorreu de 11 a 18 de janeiro de 1975, Lelio Basso salientou a repercussão dessas atividades não somente em organismos internacionais, como o Comitê de Direitos Humanos da ONU, mas também “em todas as partes do mundo”.
Uma das intervenções que suscitaram grande interesse nas audiências de janeiro de 1975 foi a do ex-ministro Pedro Vuskovic, um dos principais elaboradores da política econômica do governo de Allende. Ele começou por um conciso retrato da situação de seu país, dezesseis meses depois do putsch militar-fascista. Prosseguiam o estado de sítio, o toque de recolher, a onipotência dos tribunais militares e sobretudo prisões e assassinatos de militantes e de operários resistentes.
A previsível deterioração das condições de existência e de trabalho das massas populares se confirmava: brutal redução do poder de compra, taxas inéditas de desemprego, fechamento em larga escala de pequenas e médias empresas, reaparecimento de grandes contingentes de moradores de rua, que haviam saído da miséria durante o governo de Unidade Popular. Vuskovic também insistiu no papel dos trustes e do governo estadunidense na desestabilização da democracia chilena.
Na agenda da terceira e última sessão do Russell II, que transcorreu em Roma, de 10 a 17 de janeiro de 1976, estavam incluídas as intervenções militares dos Estados Unidos, as modalidades de dominação cultural imperialista, a montagem de sistemas jurídicos a serviço dos regimes militares e a estrutura do poder fascista. Também foram examinadas as violações dos direitos do homem e do cidadão na Guatemala, no Haiti, no Paraguai e na República Dominicana, bem como as dos indígenas do Brasil, vítimas do que foi considerado crime de genocídio cometido pelo governo militar.
Não escapou ao Tribunal a gravíssima deterioração das instituições políticas argentinas, fragilizadas pelo confronto violento entre alas opostas do peronismo. Chefe da ala de extrema direita e ministro mais poderoso da presidente María Estela Perón, José López Rega deu carta branca à Aliança Anticomunista Argentina, dita Triple A, que ele tinha organizado para proceder a operações de extermínio de militantes da esquerda, inclusive os que lá estavam exilados. O governo da Argentina foi condenado pelo Russell II por violar “todos os princípios do direito de asilo e cooperar em seu território na perseguição dos refugiados latino-americanos, pelas polícias de seus respectivos países”.
Entretanto, pouco mais de dois meses após essa condenação, em 24 de março de 1976, um golpe militar chefiado pelo general Videla instaurou um regime terrorista cujos crimes contra a humanidade se inscrevem entre os mais sórdidos e odiosos cometidos pelo militarismo fascista latino-americano.
Meio século depois
Os dois tribunais Russell deixaram um precioso legado ao movimento anti-imperialista e antifascista. Infelizmente, no ambiente reacionário e neocolonialista que tem prosperado na Europa atual, tão diferente daquela que foi solidária na luta de libertação nacional do povo vietnamita e acolheu os refugiados do terrorismo militar de extrema direita, tribunais internacionais como o de Haia servem sobretudo para satanizar, condenar e punir governos que se opõem ao neoliberalismo e ao hegemonismo dos Estados Unidos e de seus sócios menores do Velho Mundo.
Não há mais ditaduras militares na América Latina. Mas a dinâmica neofascista que nos anos 1960-1970 levou à instauração dos regimes de exceção do Cone Sul, longe de ter sido extinta, reativa-se em situações críticas, como mostraram o catastrófico surto bolsonarista e o golpe que derrubou Evo Morales em 2019. A homenagem das forças vivas da sociedade chilena à memória dos que, há cinquenta anos, caíram de pé enfrentando o golpe de Pinochet, a começar pelo presidente Salvador Allende, deve também ser compreendida como um ensinamento para o futuro.
*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular) (https://amzn.to/3snSrKg).
Publicado originalmente no blog da Boitempo.
Notas
[1] Bertrand Russell, War Crimes In Vietnam (Nova York, Monthly Review Press, 1967), p. 9.
[2] Jean-Paul Sartre, “Discours inaugural”, em Vladimir Dedijer, Arlette Elkaïm, Catherine Russell (orgs.), Tribunal Russell, le jugement de Stockholm v. 1 (Paris, Gallimard, 1967), p. 28
[3] Salvador Allende, “Último discurso”, em Vladimir Safatle (org.), A revolução desarmada: discursos de Salvador Allende (trad. Emerson Silva, São Paulo, Ubu, 2014), p. 158-9
[4] Giuseppe Tosi e Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (orgs.), Brasil, violação dos direitos humanos – Tribunal Russell II (trad. Fernando de Souza Barbosa Júnior, João Pessoa, Editora da UFPB, 2014), p. 372
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