Lula na Europa

Pae White, Morceau Accrochant, 2004
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

O choque de civilizações e o discurso de Lula no Parlamento europeu

Samuel Huntington (1927-2008) foi um intelectual estadunidense de direita, autor de O Choque de Civilizações (Ed. Objetiva): ensaio que teorizou a fase da política internacional dos Estados Unidos, após a Guerra Fria. “Minha hipótese é que a fonte fundamental do conflito neste novo mundo não será primordialmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte principal do conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nas questões mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As rupturas entre as civilizações serão as frentes de batalha do futuro”. Soou como uma declaração.

No espectro que Huntington reputava de “sete ou oito civilizações”, o que não fica claro, duas são destacadas: o Islã e o Ocidente. Esse é o primeiro problema, considerar homogêneas as culturas existentes em cada entidade civilizacional. É muita pretensão, critica Edward W. Said em um texto intitulado O Choque da Ignorância, traduzido por Emir Sader e incluído na coletânea Política e Cultura (Ed. Boitempo). Nem o Ocidente, nem o Islã estão fechados em si mesmos. Possuem “uma história de trocas, fertilização mútua e compartilhamento”. Trocar a realidade pela ficção é um erro.

Com efeito, “eles” tinham o terrorista muçulmano Osama bin Laden. “Nós”, os discípulos do reverendo Jim Jones na Guiana; o terrorista cristão Anders Behring Breivik que matou dezenas de pessoas e feriu outras tantas na Noruega; o maluco Mark David Chapman que assassinou John Lennon defronte o prédio em que o ex-beatle morava em Nova York… Na verdade, essas contas macabras podem ser multiplicadas em qualquer direção. Não provam nada, exceto a irracionalidade dessa balança para legitimar governos.

Não obstante, os ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de setembro de 2001, planejados por “militantes enlouquecidos” e “patologicamente motivados”, foram apresentados à opinião pública como uma prova da correção da tese huntingtoniana. Alguns chefes de Estado repercutiram a suposta correspondência entre a abstrata teoria e o criminoso atentado, com citações do livro tidas como visionárias. O bufão Berlusconi chegou a dizer que nós temos Mozart e eles não.

É dever ético de qualquer cidadão esclarecido tratar o complexo, sem cair na tentação das simplicações grosseiras. Deveria ser um imperativo também para os meios de comunicação, para que não disseminassem e fortalecessem preconceitos. “Quão inadequados são os rótulos, as generalizações e as asserções culturais”, lamenta Said.

Reduzir o construto conceitual do Islã a uma caricatura totalitária não é sinal de inteligência. No interior do próprio islamismo pairam contrariedades em relação à direita religiosa e à tirania de governantes, aos moldes do Talibã, que querem regulamentar o comportamento pessoal, promovendo “uma ordem islâmica reduzida a um código penal, despojada de seu humanismo, estética, buscas intelectuais e devoção espiritual… O fenômeno distorce a religião, degrada a tradição e deturpa o processo político onde quer que ele ocorra”. Isso revela uma instrumentalização política, igual a que se observa no Ocidente com o fundamentalismo católico ou evangélico (Damares, presente!).

A demonização do Islã no Ocidente, em meio à crise econômica geral não surpreende, embora seja inaceitável. Os bolsões islâmicos se alastraram já pela França, Itália, Alemanha, Espanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Talvez remexendo no medo atávico das conquistas árabe-islâmicas a partir do século VII. Sem mencionar o papel que o judaísmo e o Estado de Israel podem desempenhar na propagação dos temores. Temas que precisam de uma reflexão não submetida a razões de ordem tática dos poderes.

Donald Trump, na Casa Branca, foi mais pragmático, sonhou com um muro na fronteira com o México ocidentalista. Escolheu a China como “civilização” a combater no plano industrial / tecnológico e comercial e, Bolsonaro, como bobo da corte ao transformar o Brasil numa colônia para espoliar a Petrobrás, com ajuda da operação Lava Jato, e ocupar o território da base de Alcântara para lançar foguetes e satélites.

Felizmente no meio do caminho tem Lula da Silva que, em 15 de novembro do corrente no Parlamento Europeu mostrou a falta que faz um verdadeiro estadista em tempos tão sombrios para pôr os pingos no “i” e jogar no esquecimento as profecias de ocasião e o habitus colonizado de vira-lata. Transcrevo os primeiros e os últimos parágrafos da peça de oratória que foi aplaudida de pé no Velho Continente.

Com a palavra, Lula: “Eu quero começar falando não da América Latina, nem da União Europeia, nem de algum país, continente ou bloco econômico em particular, e sim do vasto mundo em que vivemos todos nós: latino-americanos, europeus, africanos, asiáticos, seres humanos das mais diferentes origens.

“Vivemos em um planeta que tenta a todo momento nos alertar de que precisamos de novas atitudes e de uns dos outros para sobreviver. Que sozinhos estamos vulneráveis às tragédias ambientais, sanitárias e econômicas. Mas que juntos somos capazes de construir um mundo melhor para todos nós”.

Encerrou o discurso, com uma profissão de fé no futuro: “Acreditamos que somos capazes de construir no mundo uma economia justa, movida a energia limpa, sem a destruição do meio ambiente e livre da exploração desumana da força de trabalho.

“Acreditamos que outro Brasil é possível e outro mundo é possível – porque num passado recente fomos capazes de construí-lo. Podemos ser felizes juntos, e seremos.”

Said, por sua vez, concluiu assim o seu libelo contra a ignorância metida à besta: “A tese do ‘choque de civilizações’ é uma farsa como a ‘guerra dos mundos’, que serve mais para reforçar o auto-orgulho defensivo que para uma compreensão crítica da desconcertante interdependência de nosso tempo”.

A mídia brasileira não cobriu. Está em greve de notícias.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • O caso Sílvio Almeidasilvio almeida 4 11/09/2024 Por ANDRÉ RICARDO DIAS: Considerações sobre a idealização reificada do negro pelo discurso identitário
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES