Quem é o mais poderoso, o vento ou o leão?

Imagem: Idriss Belhamadia
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Por SALEM NASSER*

Alegoria para compreender a complexa realidade no Oriente Médio, em que EUA e Israel já não gozam de capacidades incontestes

Não é a primeira vez que me vejo lembrando de uma carta escrita por “Mulay Hamid El Raisuli, Lord of the Riff, Sultan to the Berbers, Last of the Barbary Pirates” e enviada a Theodore Roosevelt. A carta é ficcional e aparece em um filme épico de 1975, estrelado por Sean Connery e Candice Bergen.

Inspirado numa história real, o roteiro conta sobre um Chefe Berber Marroquino que retém como prisioneiros uma mulher greco-americana e seus filhos e exige o pagamento de um resgate, por parte do Sultão do Marrocos, pela sua libertação; isso o coloca em curso de colisão com o presidente dos EUA.

A história verdadeira foi a do sequestro de um cidadão greco-americano, o Sr. Perdicaris, e seu enteado. Esse incidente teve uma influência relevante na campanha presidencial de Theodore Roosevelt que, depois de ter herdado a presidência de McKinley, concorria agora em seu próprio nome.

Não faço aqui a recomendação do filme nem os convido a assistir, apesar de considerá-lo divertido. Deixo a seu critério a decisão.

Tampouco pretendo construir um balanço crítico do filme. Não tentarei determinar o quanto ele apresenta uma leitura favorável ao imperialismo ou quão intrinsecamente orientalista é esse produto cultural. Esses esforços podem ser válidos, mas o meu propósito é mais modesto, neste momento.

Eu quero apenas brincar com algumas citações e discutir o modo como elas conversam com a minha leitura sobre eventos e realidades da atualidade. As trocas que tenho em mente se dão quando o filme chega ao seu final.

Primeiro, enquanto Roosevelt se prepara para ser apresentado ao seu urso grisly …, alguém lhe diz ao ouvido: “Os primeiros relatos são de que podemos fazer o que quisermos no Marrocos senhor… podemos por quem quisermos no trono!” Logo, em resposta à observação de outra pessoa, segundo quem “Não há dúvida sobre o resultado da eleição!”, Roosevelt responde: “Senhores, nada neste mundo é certo, absolutamente nada: o destino da nação será decidido pelo povo americano em novembro; e o destino do Marrocos será decidido amanhã, por mim”.

Deixado só, Roosevelt se senta aos pés do urso e lê a carta que lhe tinha mandado o Raisuli: “Você é como o vento e eu como o leão. Você forma a tempestade. A areia faz arder meus olhos e o chão está ressecado. Eu o desafio com o meu rugido mas você não ouve. Mas entre nós há uma diferença. Eu, como o leão, devo ficar em meu lugar. Enquanto você, como o vento, nunca saberá o seu”.

A primeira das ideias que quero examinar, brevemente, é inspirada pelo argumento do filme: o resgate de uma senhora americana e seus filhos, por meio da demonstração de força militar, colocando pressão sobre governos estrangeiros, servia perfeitamente ao propósito de melhorar a imagem política interna de um candidato à presidência – e de um presidente em serviço – já que o apresentava como um salvador de cidadãos americanos e um protetor de seus direitos.

A segunda ideia é esta, que se iluminou em meu espírito um dia e que agora já não consigo lembrar de onde veio a inspiração: a liberdade de uns se apoia na servidão de outros.

Porque, veja, o destino da nação americana deve ser decidido pelos seus cidadãos livres, em um sistema dito democrático; mas o destino do Marrocos será decidido “amanhã”, pelo presidente americano, uma entre outras tarefas ordinárias de que se deve encarregar. Nenhuma democracia para os marroquinos, não há necessidade disso.

Mas a ideia que mais me interessa é aquela contida na imagem proposta por Raisuli em sua carta, a do vento e do leão. Quem é o mais poderoso, o vento ou o leão?

Se falamos da realidade concreta, no deve haver dúvida: o vento pode fazer o que não está ao alcance do leão. Mas metáforas permitem variações que escapam aos limites do concreto.

Em sua carta, Raisuli usa as imagens do vento e do leão para referir as diferenças entre ele, como um homem da montanha, como líder tribal, como berber, cuja vida depende de sua relação com a terra, e Roosevelt, que iria exercer seu poder sobre lugares longínquos, sobre os quais sabe pouco, mas com a mesma ligeireza com que o vento iniciaria uma tempestade.

Raisuli, porque ele sabia seu lugar, sabia quem ele era por conta de sua ligação com a terra. Roosevelt, porque não conhecia seu lugar, não podia saber quem ele era. Seria esse o prêmio de consolação para o derrotado: não ter perdido sua identidade, sua alma?

Pode-se também pensar na comparação como dizendo respeito ao poder relativo das nações e dos povos, entre o colonizador, que pode projetar domínio sobre a geografia do globo inteiro, e o colonizado, circunscrito e ligado ao seu pedaço próprio de geografia, mas agora incapaz de se manter em posse do próprio poder ao se confrontar com outro muito maior: o leão ruge mas o vento sequer escuta!

Essas parecem ser as mensagens subentendidas no filme ou, ao menos, estas podem ser as impressões com que se fica quando se assiste a ele. Agora, será a imagem da vitória imperial sobre o local ainda acurada? Ou poderá o leão afirmar o seu poder contra o vento, se as condições mudarem?

Para mim, essa questão se tornou central enquanto eu pensava nas guerras contra o Afeganistão e contra o Iraque, e sobre suas consequências para o poder americano… É claro, pode-se ver paralelos na experiência do Vietnã, por exemplo, mas penso que os efeitos sobre as capacidades do “vento” são agora mais profundos.

Naquelas duas guerras, os EUA conquistaram vitórias iniciais relativamente fáceis, e com o tempo já não podiam sustentar a ocupação contínua por conta da baixa tolerância aos altos custos humanos e financeiros.

Agora, enquanto escrevo, os EUA e Israel estão experimentando em conjunto o desafio de uma guerra contra a resistência palestina em Gaza e de um confronto com o Irã.

No primeiro desses fronts, uma força militar altamente avançada, como a de Israel, parece ter encontrado os limites a suas vitórias no campo de batalha: mostra-se muito capaz para a morte de civis e para a destruição da infraestrutura civil, desde uma grande distância, mas, assim que põe as botas no chão para o combate de proximidade, sangra mais do que pode aguentar.

No segundo dos fronts, o Irã se apresenta como um oponente muito mais duro do que o Iraque e o Afeganistão foram um dia. E tem um arsenal de drones e de mísseis, a nova grande coisa nos assuntos militares e o velho, mas renovado ativo de guerra. E a tecnologia já não é a exclusividade das grandes potências imperiais e seus amigos, e o mesmo se pode dizer sobre as capacidades de coleta e processamento de informações.

As duas frentes nos contam que agora, se o vento quiser exercer poder no território do leão, ele precisa estar disposto a sangrar, profusamente, e ainda assim, muito provavelmente, sairá derrotado e expulso. Terá que ir soprar em outro lugar.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina) [https://amzn.to/3s3s64E]


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