Um documentário imprescindível

Imagem: Jan van der Wolf
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Por SÉRGIO BOTTON BARCELLOS*

Documentário de Bob Fernandes desvela que através de uma rede de institutos e fundações, os EUA exportaram ideologias neoliberais para o Brasil, utilizando estratégias de hegemonia cultural e guerra ideológica, reestruturando o cenário político do país

1.

Em tempos de tarifaço de Donald Trump surge um documentário imprescindível. O que parecia teoria da conspiração no Brasil agora é documentado com clareza: Ao longo dos anos 2010 think tanks norte-americanos, financiados com recursos públicos e privados, participaram ativamente da formação da nova direita brasileira, da ascensão de Jair Bolsonaro e da reintrodução das Forças Armadas como protagonistas do poder civil.

No vídeo-reportagem lançado por Bob Fernandes, o jornalista entrevistando pesquisadores(as) traz documentos inéditos que escancaram como centros ideológicos como o Cato Institute, a Atlas Network e a Heritage Foundation se articularam — com apoio de agências como a USAID e a National Endowment for Democracy (NED) — para influenciar e propagar com ideias neoliberais corações, mentes e instituições do Brasil contemporâneo.

Não se trata de uma ingerência clássica com tanques e embaixadas, mas de um processo mais sutil e profundo, feito pela lógica da hegemonia cultural e da guerra ideológica. A partir da década de 2010, em meio à crise institucional brasileira, esses institutos norte-americanos passaram a financiar uma extensa rede de institutos e fundações locais, promovendo eventos, seminários e bolsas para jovens quadros liberais em universidades públicas e privadas. É uma “batalha das ideias” sendo travada com método, dinheiro e estratégia.

O documentário, por meio da pesquisa do Instituto de Estudos Latino‑Americanos (IELA) da UFSC, revela que a Atlas Network, uma rede global de think tanks com sede nos Estados Unidos, tinha como projeto explícito a reconstrução das elites liberais-conservadoras no Brasil e no mundo. Em relatórios internos obtidos por Fernandes, destacava-se a meta de formar lideranças “comprometidas com a liberdade econômica e os valores da civilização ocidental”, articulando desde campanhas contra o “marxismo cultural” até eventos para popularizar ideias como privatização ampla, escola sem partido e desmonte do Estado para manter a hegemonia do Estados Unidos.

Nick Cleveland‑Stout, atualmente Research Associate no Quincy Institute for Responsible Statecraft, integrou o vídeo com comentários e análises sobre a influência de think tanks americanos no Brasil. Ele realizou uma pesquisa em 2023 com bolsa Fulbright na UFSC analisando a relação entre política externa e ideologias liberais no Brasil. No documentário, Nick Cleveland‑Stout explica o financiamento de instituições como a Atlas Network e analisa como essas estratégias cruzam fronteiras ideológicas e comerciais.

A professora Camila Feix Vidal da UFSC que aparece nas entrevistas traz colaborações que são referenciadas no contexto das entrevistas com estudantes e pesquisadores locais, aprofundando a discussão sobre ideologias exportadas pelos EUA para o Brasil e no mundo.

2.

A partir da pesquisa documental em 143 arquivos feita na Universidade de Stanford – Instituto Hoover por Luan Brum e Jahde Lopez foi encontrada nas fontes que na década de 2010, em meio à crise institucional brasileira, que esses institutos norte-americanos passaram a financiar uma extensa rede de fundações, grupos e entidades no Brasil que operavam como seus braços ideológicos.

Com diferentes estilos e focos de atuação, essas organizações passaram a promover eventos, seminários, cursos e bolsas para jovens quadros liberais em universidades públicas e privadas, além de ocupar espaço nas mídias digitais e nos gabinetes políticos.

No centro desse projeto estavam instituições como o Instituto Millenium, que articulava empresários, economistas e jornalistas em torno de uma agenda de privatizações e desmonte do Estado; o Instituto de Formação de Líderes, presente em várias capitais, responsável por formar jovens empresários e aspirantes a políticos liberais, muitos dos quais viriam a ocupar cargos nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro; e a filial brasileira do Students For Liberty, que organizava eventos universitários e distribuía gratuitamente obras de Hayek, Mises e Ayn Rand, atuando como um celeiro de influenciadores digitais, parlamentares e militantes do liberalismo radical.

A essa constelação se somavam ainda o Instituto Mises Brasil, voltado à difusão da chamada Escola Austríaca de economia; o Instituto Liberal, que teve entre seus quadros fundadores nomes como Rodrigo Constantino; e plataformas midiáticas como o Brasil Paralelo, que utilizou a estética da pedagogia digital para embalar revisionismo histórico e nacionalismo conservador em linguagem sedutora para jovens. Além dessas, movimentos como o MBL e o Vem Pra Rua foram impulsionados por redes de empresários e influenciadores treinados por essas estruturas, muitos deles egressos de eventos e programas de formação da Atlas Network.

Já projetos como o RenovaBR e o Livres, embora mais moderados na retórica, operaram como linhas auxiliares da mesma doutrina ao oferecer cursos de “formação política” alinhados a uma ideia de meritocracia liberal, centrada no empreendedorismo como solução para as mazelas sociais.

Essas instituições não só formaram uma base social com parte dos participantes no pós-junho de 2013 como também passaram a ocupar um espaço que tradicionalmente era das universidades, dos sindicatos e dos partidos. Com financiamento robusto e alinhamento internacional, elas reestruturaram o que hoje se reconhece como “nova direita brasileira”: um campo político agressivo, antissocial, moralista e profundamente submisso aos interesses estratégicos norte-americanos.

Mais ainda: entre 2017 e 2018, quando o país vivia o auge da instabilidade política, documentos mostravam que esses mesmos grupos passaram a mirar também nas Forças Armadas brasileiras. Relatórios da Heritage Foundation e de parceiros da Atlas indicavam que os militares eram “o último bastião de confiança institucional do país” e que poderiam servir como vetores de estabilidade e “renovação moral”. Em outras palavras, havia um plano concreto para aproximar setores do Exército brasileiro das teses do liberalismo econômico, conservadorismo social e anticomunismo geopolítico — um tripé que viria a ser o alicerce do bolsonarismo.

3.

Bob Fernandes expõe que encontros fechados foram realizados com oficiais da ativa e da reserva, muitos dos quais ocupariam, meses depois, posições no alto escalão do governo de Jair Bolsonaro. Nesses eventos, difundia-se a ideia de que a corrupção era um problema civil, que a esquerda havia tomado o Estado e que a missão dos militares era restaurar a ordem. Palavras como “limpeza”, “retomada” e “defesa dos valores cristãos” eram mobilizadas com frequência em relatórios e apresentações. Tudo isso baseado em uma linguagem de tecnocracia, racionalidade econômica e liberdade de mercado.

A eleição de Jair Bolsonaro, longe de ser apenas um fenômeno de crise e ressentimento, foi celebrada por essas instituições como um exemplo bem-sucedido de inflexão ideológica. Um memorando interno da Atlas, em 2019, destaca com entusiasmo que “o Brasil virou a chave” e passou a ser “um modelo para outros países latino-americanos”. Nesse sentido, Jair Bolsonaro foi funcional — um personagem com discurso agressivo, mas que servia de cavalo de Troia para uma agenda mais profunda, marcada pela destruição do aparato estatal, o avanço da financeirização da economia e a militarização das instituições civis.

Não por acaso, os militares passaram a ocupar cargos de liderança em ministérios, secretarias e agências. Muitos deles, como já revelado por Fernandes e outras investigações, participaram de fóruns e formações com esses grupos liberais internacionais. A ideia de “reconstrução moral da nação” caminhava junto com a lógica de “desregulamentação e livre mercado”. O ultraliberalismo e o autoritarismo já não se apresentavam como opostos, mas como complementares.

Essa operação toda não foi espontânea. Houve planejamento, houve financiamento e houve doutrinação. Jovens lideranças foram formadas. Acadêmicos foram cooptados. Parlamentares receberam apoio. Setores da mídia, especialmente canais de opinião digital, foram instrumentalizados por uma rede que trabalha com algoritmos, patrocínios e eventos “formadores de opinião”. E enquanto se falava em “defesa da democracia”, atacava-se sistematicamente qualquer projeto de soberania nacional, justiça social ou participação popular.

É preciso entender que esse modelo de intervenção não é uma exceção. A Atlas Network opera em mais de cem países, com recursos que ultrapassam 28 milhões de dólares anuais. Boa parte desse dinheiro vem de fundações como a Templeton e, até recentemente, dos irmãos Koch e da ExxonMobil. E embora seus porta-vozes aleguem neutralidade e compromisso com a liberdade, os dados revelam que suas ações estão sempre alinhadas com os interesses geopolíticos dos Estados Unidos, especialmente quando se trata de enfraquecer governos progressistas e fortalecer elites alinhadas ao mercado financeiro internacional.

Esse novo modo de fazer guerra — com ideias, planilhas e influenciadores — precisa ser nomeado. É uma forma sofisticada de neocolonialismo ideológico, que não precisa mais de embaixadores ou soldados. Se baseia no investimento na formação de quadros locais, nos discursos de liberdade seletiva e nas estruturas de poder que já estão minadas por dentro. Como aponta o documentário, o Brasil é apenas um caso exemplar, mas não isolado.

Esse documentário pode ser considerado um marco interpretativo da nossa história que compõe e traz elementos de suma importância para repensar as origens e a amplitude dos processos sociais relativo as manifestações de 2013, Escola Sem Partido, o Golpe de Estado de 2016 e a ascensão de Bolsonaro ao poder. Ou seja, documentário mais que necessário, que já fez história.

*Sérgio Botton Barcellos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).


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