Por RODRIGO DE FARIA*
Ao se negar a assumir as responsabilidades no planejamento e na coordenação para enfrentar os problemas sanitários e econômicos, o atual Governo Federal explicita uma verdade crua e direta: a de que não teve e não tem qualquer tipo de projeto para o desenvolvimento nacional
O Governo Federal brasileiro não apresentou até o presente momento nenhuma proposta de planejamento e coordenação geral para confrontar o problema sanitário provocado pela COVID-19. Ao mesmo tempo, Governadores e Prefeitos, tentam coordenar essas ações em seus Estados e Municípios, mas o elo mais forte dessa estrutura federativa, exatamente o Governo Federal, foi e está absolutamente omisso até agora. Sua atuação limitou-se a algumas poucas ações realizadas pelo Ministério da Saúde. Ações essas que o próprio Chefe do Executivo resolveu boicotar, pois sua proposta de planejamento-coordenação se resume em aprovar uma normativa para uso de medicamento cuja eficácia, até agora, não foi comprovada em nenhum país do mundo.
Esse cenário coloca em pauta um tema importante para o país: o planejamento nacional e suas articulações com o planejamento estadual-metropolitano e o planejamento municipal. Desde o século XIX e início do XX, especialmente a partir de 1930, no primeiro governo Getúlio Vargas, o planejamento foi assumido como instrumento central para construir respostas aos mais diversos problemas nacionais. Esse planejamento, desde então, não apenas foi aprimorado, mas sobretudo, passou por relevante processo de institucionalização na administração pública brasileira de todos os entes federados. Ao longo de décadas, foram propostos planos e programas os mais diversos e amplos, como o Plano de Obras e Equipamentos (1943-1946), o Plano SALTE (1946-1950), o Programa de Metas (JK), o Plano TRIENAL (1963), o PAEG (1964), o Plano DECENAL (1967), os PNDs (1972-1979), os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (Governo FHC), as Políticas Nacionais de Desenvolvimento Regional e Ordenamento do Território (Governo Lula), além de diversas instituições, desde o Conselho de Economia Nacional (1937), passando pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (1964/1965), o Ministério do Interior (1967) até os Ministérios da Integração Nacional e das Cidades, estes dois últimos extintos pelo atual governo e reorganizados numa única estrutura ministerial.
Todas essas propostas-planos e instituições apresentam uma característica em comum, que é o fato de terem sido criados no âmbito do executivo federal. No entanto, no Brasil, o ente federado municipal também teve importante papel na construção de conhecimento sobre a realidade urbano-regional do país. E em relação a essas questões urbano-regionais, especialmente aquelas relacionados ao urbanismo, foi no Município onde primeiro se deu o importante processo de institucionalização na administração pública, particularmente a partir da década de 1930, com a criação das chamadas Comissões de Planos das Cidades, depois transformadas, muitas vezes, em Departamentos de Urbanismo. No governo federal, apenas na década de 1960, é que esse campo profissional diretamente relacionado aos problemas urbano-regionais foi incorporado como parte da estrutura funcional e administrativa.
Ao mesmo tempo, e como parte das discussões que ocorreram sobre o planejamento no Brasil, o ideário municipalista em sua defesa sobre autonomia político-econômica, também contribuiu com essa institucionalização, especialmente a partir da criação da Associação Brasileira de Municípios (1950) e, sobretudo, do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (1952), momento em que, mais do que a própria defesa irrestrita dessas duas autonomias, falava-se muito mais em cooperação intermunicipal. Este conceito, inclusive, está no nome adotado pela instituição interamericana criada em 1938 para discutir temas relacionados aos interesses municipais: Organización Interamericana de Cooperación Intermunicipal, criada em La Habana, à qual os municipalistas brasileiros estavam vinculados.
Com a Constituição de 1988, tão importante em relação a diversos aspectos, como o da criação do SUS e dos capítulos sobre política urbana, muito do esforço de articulação entre os entes federados no campo do planejamento foi perdido por causa de uma visão muito restritiva da autonomia municipalista. Nesse momento definiu-se o que se pode chamar de neo-municipalismo, que de novo não tem nada. Esse neomunicipalismo pós-1988 é contemporâneo à (re)construção dos preceitos do pensamento neoliberal, para os quais tudo se resume em competição, privatização, financeirização e maximização do lucro, sobrando pouco ou nenhum espaço para processos cooperados em qualquer campo do saber, especialmente no planejamento estatal. Planejamento é, nesse contexto, ação empresarial para eliminar concorrentes e o planejamento estratégico urbano, o apanágio para a salvação dos Municípios a partir da criação de imagens urbanas que seriam comercializadas no mercado global. Foi nesse contexto, que os municípios assumiram a guerra fiscal como seu “instrumento de planejamento”, literalmente matando o princípio programático da cooperação intermunicipal, que para muitos municipalistas das décadas de 1950, 1960 e 1970, poderia, inclusive, estruturar as ações de planejamento regional para reorganizar as cadeias produtivas e diminuir os fortes desequilíbrios regionais que ainda hoje vigoram no Brasil.
Ao abandonar esse princípio da cooperação, esse neo-municipalismo abandonou qualquer possibilidade de ação coordenada, seja entre os próprios municípios de uma mesma “região geoeconômica”, seja entre os Estados e o Governo Federal. No máximo, o que colocou no lugar, foram ações pontuais articulando, sobretudo, as duas pontas da federação (Federal-Municipal), em grande parte limitadas à transferência de recursos do ente Federal para o ente Municipal, principalmente para os municípios com dificuldades econômicas e produtivas, que são a maioria no Brasil. O resultado dessa situação é a da precarização da oferta de serviços urbanos, especialmente em algumas áreas, como as da habitação e da saúde. E neste ponto é que o atual problema da COVID-19 tem relevância e indica um quadro dramático para as populações mais pobres e que moram em áreas periféricas das grandes metrópoles ou em municípios espraiados pelo interior do Brasil.
Pobreza, precarização do trabalho, moradias sem infraestrutura de saneamento (água e esgoto), ausência de políticas públicas na área da saúde, entre tantos outros serviços urbanos fundamentais são, agora, fatores que dramatizam ainda mais a péssima situação urbano-regional no Brasil. Na medida em que o atual governo federal simplesmente não assume seu papel no planejamento nacional, e está pautado unicamente por uma agenda ultraliberal estruturada por política financeira (baseada na rigidez fiscal, na privatização e na redução dos direitos sociais), muito diferente de uma proposta de planejamento e política econômica (baseada no desenvolvimento e distribuição da renda), a COVID-19 encontra condições perfeitas para se disseminar descontroladamente, como podemos acompanhar diariamente pela imprensa.
Ao se negar a assumir as responsabilidades no planejamento e na coordenação para enfrentar os problemas sanitários e econômicos, neste caso, com uma política direta de transferência de renda e de apoio às cadeias produtivas microempresariais, o atual Governo Federal explicita uma verdade crua e direta, qual seja, a de que não teve e não tem qualquer tipo de projeto para o desenvolvimento nacional. Em relação à política sanitária, o negacionismo científico só poderá resultar em tragédia. Um governo que está limitado à sua cruzada ideológica-cultural contra inimigos inexistentes e consumido pela ideia de que a solução para os problemas do Brasil está em armar a população. A COVID-19 não poderia encontrar ambiente mais favorável para se reproduzir, colapsando o SUS (que esses mesmos ultraliberais queriam e querem privatizar) e aniquilando o trabalho e a renda da população pobre e marginalizada. O resultado: um país abandonado pelo seu Governo Federal, que se consome internamente criando tensões e conflitos diários com os demais poderes da República.
*Rodrigo de Faria é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB.