Por ROSA ROSA GOMES*
Resposta ao artigo de Julian Rodrigues
Respeito muito a trajetória de Julian Rodrigues, militante que ajudou a construir o Partido dos Trabalhadores, que tanta discussão gera em nossa sociedade e que sim, tem e teve um papel central na história brasileira desde os anos 1980 até hoje. Julian vem realizando um trabalho importante na Fundação Perseu Abramo, do qual participei em um projeto que resultou no livro Fascismo ontem e hoje, tão necessário na conjuntura atual do Brasil e do mundo.
Ele publicou no site A Terra é Redonda um comentário sobre um artigo meu. No entanto, dado o grau do ataque realizado através de uma crítica ligeira, agressiva, sem fundamento, cheia de lugares comuns não recuarei!
Julian Rodrigues sente-se pessoalmente decepcionado pelas críticas que faço ao Partido dos Trabalhadores (PT). Não é algo que escondo de ninguém. Em diversos textos e debates aponto as críticas ao PT, sem deixar de mencionar a importância do partido, mas sem vedar os olhos para o fato de que sua direção há muito tempo está mais preocupada em ganhar a eleição e gerir o conflito de classes no Brasil do que avançar na mobilização, na conscientização das suas próprias bases, daqueles que o seguem. Preferem sentar à mesa com Geraldos do que organizar suas bases para pressionar o congresso contra o orçamento secreto, por exemplo, ou a política de preços da Petrobras.
Como “radical livre”, de fora do partido, tenho uma liberdade de crítica maior, e ao mesmo tempo pouco comprometida, uma vez que não ajudo a construir a organização cotidianamente. No entanto, assustar-se com a crítica de que o PT escolheu o lado da ordem, parece ser uma defesa incondicional da lei antiterrorismo aprovada durante governos do partido ou do segundo governo Dilma, por exemplo, que colocou Joaquim Levy e Kátia Abreu no executivo. O ajuste fiscal começou com o governo do PT. Mesmo em tempos de bolsonarismo, é importante lembrar disso para não repetir.
O PT escolheu o lado da ordem após uma eleição absolutamente ideológica em 2014. A população havia escolhido o programa keynesiano, mas o aplicado foi o liberal. É claro que muita coisa aconteceu antes e depois, mas considero este um momento fundamental para entendermos a ascensão do fascismo no Brasil. Interessante também pensar que o PT escolheu a ordem, em um momento em que não havia ordem a ser reestabelecida, mas apenas revolucionada. O caldo do fascismo estava se formando, não havia caminho do meio a escolher, e isso influenciou a reação de camadas médias e também populares no Brasil em 2015. É claro que há a mídia, a conspiração no Congresso, Michel Temer etc., mas não podemos eximir os erros cometidos pela maior força de esquerda no Brasil. É disso que estamos falando.
E sim, guardadas as devidas proporções, o PT lembra muito o SPD em sua transformação como partido da ordem. Julian Rodrigues esqueceu de citar que não sou eu a primeira pessoa a comparar o PT à social-democracia europeia. Internacionalmente Eric Hobsbawm e, no Brasil, Lincoln Secco fizeram isso antes de mim e estão citados no artigo. Claro que as perspectivas são diferentes, mas não é possível declarar surpresa sobre o assunto.
Assim como no artigo criticado,[i] não me estenderei sobre as questões relativas ao PT. Como resposta à essa questão, só posso ficar com Rosa Luxemburgo, considerando-me assim muitíssimo bem acompanhada: “Não estaremos perdidos, e venceremos, se não tivermos desaprendido a aprender”.[ii]
Em relação à teoria de Rosa Luxemburgo, dois pontos a elucidar.
O primeiro é que Luxemburgo e Lênin não estão exatamente em debate sobre esta questão quando tratamos do livro A acumulação de capital e da brochura Imperialismo, estágio superior do capitalismo. Luxemburgo escreveu antes de Lênin discutindo com os alemães que acreditavam ser possível um acordo de paz, argumentando que as relações econômicas no período seriam muito imbricadas entre os países. Luxemburgo demonstrou, então, como apesar disso a concorrência fala mais alto, porque o motor do sistema é o lucro, o que no limite leva à guerra.
Lênin, por outro lado, sequer cita o trabalho de Rosa, apesar de conhecê-lo. Não há, portanto, debate aqui. Há duas exposições diferentes sobre o assunto, em épocas e contextos diferentes e que podem ser cotejadas e digeridas por nós atualmente em uma nova interpretação.
Ainda mais considerando que suas exposições não são exatamente opostas, são diferentes, mas entendo que complementares em vários pontos. A questão é que Lênin centra sua análise nas relações conjunturais de sua época e Luxemburgo procura entender o imperialismo inscrito dentro das contradições internas do capitalismo em seu desenvolvimento histórico e lógico.
O segundo ponto acredito ser urgente que seja debatido com a seriedade que merece. Não é ponto pacífico que Rosa Luxemburgo é circulacionista, subsconsumista ou qualquer coisa que o valha nesse sentido. Esses rótulos vêm sendo imputados à militante há décadas às vezes sem reflexão crítica e estudo aprofundado de sua obra. Ela é simplesmente rechaçada sem que se tome o tempo de ler, na íntegra, seu livro e suas discussões.[iii]
Em minha pesquisa,[iv] debrucei-me sobre o tema, apontando que o estudo de Rosa Luxemburgo é sobre a reprodução ampliada no capitalismo e não sobre a circulação. Se seu problema é apresentado na esfera da circulação é porque, segundo ela mesma, este era o ponto frágil da obra deixada inacabada por Marx. Em seu livro, deixa como pressuposto toda a explicação marxiana da produção e o seu problema central sobre a realização da mais-valia parte do pressuposto de que a produção capitalista é voltada para o lucro, tal qual Marx aponta.
Dizer que “é meio que estabelecido reconhecer que Rosa Luxemburgo errou ao atribuir os problemas do capitalismo à falta de consumidores” demonstra um total desconhecimento da obra da autora, uma crítica “apressada, superficial, tosca mesmo”. Luxemburgo não atribui os problemas do capitalismo à falta de consumidores, ela parte da questão da demanda solvente para entender o movimento da reprodução ampliada. E o problema da reprodução do capital é o limite dado para a sua expansão sobre áreas não capitalistas.
Essas áreas não servem apenas à realização da mais-valia, de onde Luxemburgo parte para construir o raciocínio, mas também são espaços para exportação de capitais, pois a produção capitalista se expande também para essas áreas, além de adquirir parte de matérias-primas e força de trabalho nesses locais. Os limites objetivos do capitalismo encontram-se nos limites tendenciais dessa expansão que atua na esfera da circulação e da produção.
Os problemas do capitalismo estão vinculados à produção voltada para o lucro em escala sempre ampliada e não para a satisfação das necessidades sociais. É a partir desse fato que se desenvolve todas as questões de queda tendencial da taxa de lucro, sobreacumulação, saturação de mercados etc.
Isso está mais do que claro na obra de Rosa Luxemburgo, logo em seu primeiro capítulo. Ela não se debruça sobre o assunto porque isso já estava muito bem explicado por ninguém menos que Karl Marx, no entanto, apesar de gênio o homem morreu antes de completar sua obra. O erro de Luxemburgo até hoje parece ter sido criticar o homem! E, por isso, poucos se dedicam a entender sua obra e dar a ela o lugar de respeito que merece entre os e as grandes intérpretes da economia política.
*Rosa Rosa Gomes é mestra em História Econômica pela USP. Autora de Rosa Luxemburgo: Crise e Revolução (Ateliê Editorial).
Notas
[i] Julian se refere a artigo publicado no livro Rosa Luxemburg, band 1 – Leben und Wirken, organizado por Frank Jacob, Albert Scharenberg e Jörn Schütrumpf em 2021. O título do artigo é “Rosa Luxemburg’s Accumulation Theory and the SPD: a peripheral perspective”. Pode ser lido no site do GMARX-USP: https://gmarx.fflch.usp.br/publicacoes.
[ii] LUXEMBURGO, Rosa. “A Crise da Social-Democracia”. In: LOUREIRO, Isabel (org.) Rosa Luxemburgo: textos escolhidos, volume II. São Paulo: Editora Unesp, 2011, pp. 30.
[iii] Ainda que o debate marxista acerca da centralidade da produção ou da circulação no processo de reprodução tenha rendido muitas reflexões de grande proveito para a compreensão do mundo e o desenvolvimento da teoria econômica. Essa etiqueta é colada em Rosa Luxemburgo desde o primeiro momento como forma de rechaçar seu pensamento econômico e relega-lo à crítica roedora dos ratos.
[iv] GOMES, Rosa Rosa. Rosa Luxemburgo: crise e revolução. Cotia: Ateliê Editorial, 2018.