Vida em comum – ensaio de antropologia geral

Wassily Kandinsky
image_pdf

Por RODRIGO PETRONIO*

Comentário sobre o livro de Tzvetan Todorov

A antropologia surgiu como ciência no século XIX. Contudo, ao longo do século XX, a partir de uma articulação de diversos ramos do conhecimento, criou-se uma vertente que passou a ser chamada de antropologia geral ou antropologia fundamental.

Não se trata mais de analisar as variáveis culturais, mas de compreender algumas das estruturas fundamentais que determinam o ser humano como espécie, ou seja, como antropos. Gehlen, Illies, Kirschof, Welsch, Kummer, Durand, Putnam, Landmann, Plessner, Portmann, Rothacker, Ruffié, Scheler, Uexküll, Tugendhat e Vossenkuhl. Estes são alguns dos representantes internacionais desse campo de estudo.

O filósofo, historiador e crítico literário búlgaro-francês Tzvetan Todorov adentra o coração desse campo interdisciplinar com Vida em comum: ensaio de antropologia geral, título que inaugurou a Coleção do autor na Editora Unesp.

Todorov toma como ponto de partida as chamadas “tradições associais”. Como se criou o mito da relação entre verdade e isolamento? Tanto na filosofia antiga e nos moralistas franceses do século XVII (Pascal e La Rochefoucauld) quanto em Hobbes, Kant e Rousseau, o pensador búlgaro identifica o mesmo problema: a possibilidade de dissociação entre indivíduo e grupo e entre um indivíduo e outros indivíduos. Mais do que isso: imaginam que essa dissociação seja sinônimo de liberdade.

Uma guinada no pensamento ocorre com Hegel e seu grande intérprete no século XX, Alexandre Kojève. A partir da chamada “teoria do reconhecimento”, a existência de um indivíduo depende da consciência de outros indivíduos. Não existe indivíduo fora de um infinito espelhamento de consciências, umas em relação às outras. O indivíduo é uma teia intersubjetiva. A partir desse painel, Todorov adentra um novo campo correlato: o da psicologia e da psicanálise, sobretudo das escolas inglesas: Adler, Fairbairn, Bowlby, Winnicott, Klein.

Sugere limitações da teoria clássica de Freud para pensarmos alguns fenômenos humanos. Uma dessas limitações diz respeito a duas manifestações humanas difíceis de serem explicadas: o amor e a solidariedade. Todas as psicologias do eu e das pulsões, as filosofias pessimistas e dualistas, ou seja, todas as teorias que valorizam o conflito sociedade-indivíduo ignoram um dado elementar: o ser humano apenas sobreviveu e veio a se tornar humano porque conseguiu gerar forças de solidarização e de preservação da vida.

Os seres humanos se enredam em um movimento triangular: ser, viver, existir. O ser quer apenas se preservar em si mesmo, como diz Espinosa. Por isso, o ser é amoral e demanda uma moral. Esse horizonte de valores morais tampouco se realiza na simples vida, pois as plantas e os animais também vivem.

Quando o ser humano toma consciência de sua própria existência, percebe que é um ser e uma vida radicalmente relacional. Existir é tomar consciência dos laços da vida comum que nos unem a todos os indivíduos. A vida comum é anterior à vida individual. Existimos à medida que percebemos o tecido de relações de nossas vidas com outras vidas e seres.

Uma crítica que se pode fazer à abordagem de Todorov é que ela se mantém muito vinculada às chamadas filosofias da consciência. Parece ignorar as críticas feitas a essas vertentes ao longo do século XX. A despeito disso, além de impecável do ponto de vista a acadêmico, a obra de Todorov alia as sutilezas estilísticas de um ensaísta a intuições de grande valor humano e intelectual.

A partir do horizonte de uma antropologia geral, é possível visualizar a fisionomia singular de um futuro comum para a espécie humana. Um futuro no qual os seres humanos terão superado todas as seduções e ilusões do isolamento.

*Rodrigo Petronio, filósofo e ensaísta, é pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP.

Referência


Tzvetan Todorov. Vida em comum: ensaio de antropologia geral. São Paulo, Unesp, 2014, 224 págs.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES