Por LUIZ RENATO MARTINS*
Semelhanças e distinções entre o cinema de Godard e a tendência predominante nas artes plásticas norte-americanas entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960
Transição
Quais as relações entre o cinema e a pop art, pergunta-se? À diferença do que hoje parece, as pontes entre ambos não estavam dadas nem foram fáceis de construir, e a emergência da pop art nos EUA, entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, não se deu sem obstáculos. Para emergir –e tornar-se a tendência dominante das artes plásticas norte-americanas –, a pop art teve de se inventar como contraponto crítico à hegemonia do expressionismo abstrato ou da action painting, modo como o movimento também foi denominado. A action painting comandava a cena desde meados dos anos 1940, quando havia inaugurado o modernismo nos EUA, e, a seguir, conquistado na Europa um reconhecimento internacional que a arte norte-americana nunca tivera – salvo por meio de expressões avulsas, absorvidas por movimentos europeus, como ocorreu nos casos de Man Ray (1890-1976) e de Alexander Calder (1898-1976), por exemplo, incorporados pelo surrealismo.
Resumidamente, quais os termos do embate? Além de nascido já híbrido e internacionalizado devido à condição nova-iorquina (imigração europeia, levas de refugiados do nazismo, impacto da revolução mexicana na vida cultural da cidade), no plano das ideias, o expressionismo abstrato incorporara duas premissas da arte moderna: a de liberdade e universalidade do sujeito e a de autonomia estética, ou seja, a da primazia da forma ante determinações externas.
Com efeito, no plano prático dos resultados, a também chamada “escola de Nova Iorque”, ao produzir obras de grande originalidade e com uma eloquência condizente com um drama histórico de escala inédita – a II Guerra Mundial –, abrira um capítulo próprio na arte moderna. Por certo, a action painting atuara de início dentro do legado pictórico do surrealismo, mas, na medida em que havia conferido ao seu léxico reflexividade e consciência radicalizadas do processo produtivo, renovara a concepção do plano e do suporte, e, antes de tudo, da imanência do gesto pictórico em função da autonomia do corpo.
Em resumo, valores como a refundação ou o resgate da integridade da condição humana e a consciência aguda da universalidade da crise histórica, conjugados à inteligência e à inventividade dos achados estéticos do expressionismo abstrato, engendraram um conjunto de obras, de marcante originalidade, que mudaram, grosso modo, o mapa da arte moderna, deslocando sua capital para Nova Iorque.
Não obstante, enquanto o expressionismo abstrato circulava e finalmente colhia louros nos meios culturais europeus (revertendo então a dependência tradicional da arte norte-americana ante os influxos oriundos do Velho Mundo), despontaram nos EUA os primeiros sinais – híbridos, todavia – daquilo que no início dos anos 1960 viria a ser conhecido como pop art. Os prenúncios de mudança tinham vindo, pouco antes, por meio dos trabalhos de Larry Rivers (1923-2002), Grace Hartigan (1922-2008), Robert Rauschenberg (1925-2008), Jasper Johns (1930) e outros.
Em que consistiam? Em síntese, na ideia de superação do teor artesanal e do valor de originalidade da obra de arte. E ainda, na consciência de uma ampla alteração histórica que apartava o homem da destinação suprassensível tradicional –“desligando-o” de estruturas cognitivas transcendentais, ao mesmo tempo em que espedaçava a sua percepção, ao completar sua submersão na voragem das megacidades, da produção em série e dos mercados de massa.
Para uma visão precisa desse momento de transição de escolas pictóricas nos EUA, como também de mutação cognitiva rematando a troca de valores qualitativos por quantitativos, deve-se, decerto, situar a perspectiva crítica e intermediária que cresceu no período de 1955 a 1962 e que foi denominada posteriormente de hand-painted pop (pop pintado à mão).[i] Aqui, nos trabalhos de Rauschenberg e Johns irrompem formas de agressividade, de negatividade e de reflexividade herdadas da vanguarda dadaísta e do seu desdobramento na obra de Marcel Duchamp (1887-1968). É o que irá diferenciar tais autores, no curso da crítica ao expressionismo abstrato, das diretrizes da pop art, reconhecidas nos anos 1960 e então tidas como independentes da negatividade própria à arte moderna, ou como sistemicamente integradas.
Economia e escala de massa
Quanto ao termo pop art, cabe ter cautela. Sua tradução literal seria “arte popular”. Para nós, membros de uma sociedade baseada na desigualdade excludente, tal ideia traz, falando sumariamente, algumas conotações marcadas: a de técnicas tradicionais (artesanais) de trabalho artístico e de uma linguagem (léxico e meios) que, até certo ponto, evoca valores mnêmicos de resistência – voltados, portanto, para o passado.Tais manifestações, associadas à sinceridade e a alguma singeleza, podem comportar por vezes traços de combatividade.
Diversamente, o que se deve entender por pop art, ou, literalmente, por “arte popular!” dos EUA, na passagem dos anos 1950 para os 1960, é outra coisa (nada tem a ver, no caso, com arte tida por indígena, dita native art, que fora referência para o expressionismo abstrato). A pop art expressa os valores de uma nação militarmente vitoriosa e mundialmente dominante; pressupõe uma produção extensa de bens de massa, em face da qual o consumo está implantado como hábito majoritário.
Logo, tal arte não traz traços artesanais, mas sim de extração industrial; nasce e se destina a consumidores afluentes e não a um público de excluídos. E, gerada da crítica ou confronto com o expressionismo abstrato, é dotada de certo nível de reflexividade. Por fim, sua matéria vivida não é perpassada pela incerteza da sobrevivência inerente às sociedades periféricas, mas sim por rotinas de consumo e lazer às quais se mesclam expectativas bipolares padronizadas, ora de tédio ora de entretenimento.
Logo, a pop art pode ser considerada – antes mesmo de qualquer juízo detido – como uma poética da mercadoria. Reflete um tête-à‑tête inédito entre arte e mercadoria, visto que a mercantilização e a coisificação já se haviam convertido (no curso da expansão econômica, em parte mundializada, do pós-guerra) nas formas gerais e apriorísticas da experiência, que prepararam, por assim dizer, o surgimento da pop.
Qual a tradução de tal dinâmica no plano plástico? Abstraindo a análise concreta dos casos intermediários, pode-se estabelecer uma série de novidades: o espaço pictórico perde a organicidade e a unidade mediante as quais o expressionismo abstrato visava à constituição de uma linguagem pictórica universal e transcendental, correspondente a um ideal universalista da condição humana. Ao invés, surge um espaço desintegrado e propício a justaposições, ou seja, o duplo da esfera prosaica regida pelas leis do mercado, característica do dia a dia no capitalismo.
Janelas da alma
Em que pé encontrava-se, em meados dos anos 1950, a outra face da questão posta acerca das relações entre o cinema e a pop art? Se, no caso dos EUA, a contiguidade foi construída, e logo se fez concreta e crescentemente visível, no caso europeu, a questão foi posta talvez um pouco antes, mas com diminuto impacto. Assim, apesar dos primórdios da pop art[ii] na Inglaterra antecederem o movimento nos EUA, a pop-art inglesa, como tendência, não deitou raízes – aliás, seus materiais (revistas ilustradas, anúncios publicitários e congêneres) eram em boa parte norte-americanos. Enfim, no ambiente do Reino Unido a pop art não adquiriu pujança comparável à do ramo mais recente, nativo dos EUA.
Fato análogo se verificou no cinema. Salvo por duas tentativas avulsas da cinematografia italiana, a de Visconti [1906-1976] (Bellissima [Belíssima], 1951) e a de Fellini [1920-1993] (Lo Sceicco Bianco [Abismo de um Sonho], 1952), o cinema europeu mantinha-se naquela altura distante e desinteressado das demais técnicas de reprodução industrial da imagem, preferindo modelos autorais e prestigiosos das artes pré-industriais. De fato, faltava solo histórico-social na conjuntura europeia para que a pop art como ideia ou proposta avulsa vingasse e se implantasse como fato público, na recepção coletiva.
Em resumo, não obstante o impulso do Plano Marshall, o cinema dito de arte ou de autor, no ambiente europeu do início dos 1950, basicamente estava às voltas ainda com as perdas da guerra, que havia destruído amplamente a indústria e disseminado a penúria, extraviando legiões de pauperizados dos parâmetros éticos tradicionais – como mostra Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicleta, De Sica [1901-1974], 1948). Nesse quadro, as forças mais vivas do cinema preocupavam-se com a refundação ética e enfocavam, no entorno, as sequelas da grande destruição e as agruras da luta geral pela sobrevivência, como mostrou com grande força trágica Germania, Anno Zero (Alemanha, Ano Zero, Rossellini [1906-1977], 1948).
Em síntese, a modernização do cinema europeu, como ilustram bem os casos do neorrealismo italiano e da arte de Bresson (1901-99), na França, ocorreu, pois, sob o signo da escassez e do ascetismo. O que mostra o paradigmático cinema italiano de então? Quase sempre a situação de exclusão do mercado. O desemprego é tão comum que o trabalho surge à luz de uma aura (Umberto D, De Sica,1952). Comprar e vender é privilégio de poucos. Nesse quadro, a subjetividade se sobrepõe à mercadoria como tema dramático. Igualmente, esmaece o impacto da forma-mercadoria sobre a subjetividade. Assim pouco se distinguem, dentre os temas, os traços da alienação pessoal – dados pela cristalização de si, na forma da coisificação, sob os moldes da especialização e da quantificação.
Nesses termos, o impulso de sobrevivência e as situações pungentes, em que a existência está por um fio, ganham a cena. E a humanidade das personagens, no contexto em questão, define-se sob diferentes ângulos, mas sempre por oposição ao consumo e à mercantilização da força de trabalho: seja na aspiração por um emprego (Ladri di Biciclette), seja no desânimo e ociosidade (I Vitelloni [Os Boas Vidas], Fellini, 1953), ou na expiação (La Strada [A Estrada da Vida], Fellini, 1954); seja ainda na exclusão forçada após a tentativa de transformação estrutural e política (La Terra Trema [A Terra Treme], Visconti, 1948), ou na via solipsista e martirológica, por exemplo, de: Stromboli (1950) e Europa 51 (1952), de Rossellini; ou de Pickpocket (1959), de Bresson…
Em suma, estabelece-se, aí, uma dicotomia entre condição humana e forma-mercadoria – anterior ao consumo massificado e à mercantilização extensa que subjazem à pop. Como exceção a esse quadro dual, esboça-se a perspectiva precursora de La Strada, que determina – mas mediante uma narrativa em tom de parábola – o processo de reificação ou coisificação humana sob os traços de Zampanò – com o contraponto de figuras plenamente existenciais (Gelsomina e o equilibrista) que, significativamente, morrem, enquanto Zampanò sobrevive.
Cabe notar que Antonioni, com La Signora Senza Camelie (A Dama sem Camélias, 1953) e Le Amiche (As Amigas, 1955) – ambientados em grupos urbanos, sediados na Itália do norte, onde o consumo já era hábito e o trabalho, rotina –, também traz à cena, sob o ângulo subjetivo, a questão da coisificação. Mas o cinema europeu mais significativo, entre os anos 1940 e o fim dos anos1950, não prioriza, em última análise, o tema da mercadoria, e sim a descrição dos estados da alma – para o que constrói degraus e galga escadas, instala-se em andaimes emprestados às outras artes, de extração pré-industrial. Porém, quanto à questão posta, ou seja, as bases da pop, encontram-se ausentes as experiências constantes da forma-mercadoria e do consumo: faltam o acesso regular aos bens, a empregabilidade estável e consolidada, a reordenação da vida em termos de massa e a partir da forma-mercadoria.
Réquiem e pop-cine
La Dolce Vita (A Doce Vida, Fellini, 1959) e À Bout de Souffle (Acossado, Godard [1930], 1959) são quem põem o cinema europeu na rota da pop. Do ângulo do juízo histórico, La Dolce Vita faz o réquiem do cinema da alma, em geral. Para não alongar, o passo veio, dentre outros sinais, com o relato distanciado e nos termos de um fato jornalístico, do suicídio de Steiner (o requintado admirador da pintura de Morandi – que tira a vida dos próprios filhos, antes de se matar). Destacou-se, em consequência, decisiva e inequivocamente o novo quadro geral. A premissa implícita era a de que o boom econômico dos anos 1950, dito “Il miracolo economico”, havia livrado a sociedade da escassez e gerado uma nova cultura. O marketing permeia doravante todas as estratégias individuais. Submete tudo e todos aos cálculos do consumo. E o hedonismo (“La dolce vita“) vence o fator opressivo da tradição na vida social.
Além de um cosmopolitismo marcado, de ambientações inovadoras e da apresentação de uma série de ícones congêneres aos da pop (um carro “rabo de peixe”, uma Vênus platinada, um Tarzan aculturado etc.), La Dolce Vita também traz uma fotografia inspirada na tevê e na publicidade – com muitos closes–, e um encadeamento narrativo à base de colagens ou justaposições, nos moldes da pop.
Com isso, o filme provoca nacionalistas, cristãos, existencialistas (aguilhoados pelo fim de Steiner) e neorrealistas – enfim, os formadores de parâmetros correntes de opinião à época – para um debate. A rigor, produz um choque. Põe a reificação geral, ironicamente rotulada de dolce, como um processo geral e inexorável, correlato à constituição do mercado. O terremoto cultural, desencadeado pela redefinição, por La Dolce Vita, do horizonte estético e social obriga Fellini a intervir no debate: “Vamos ter um pouco mais de coragem? Vamos deixar de lado as dissimulações (…)? Tudo se rompeu. Não acreditamos em mais nada. E daí?”.[iii]
Indústria, consumo e Nouvelle Vague (instantâneo de Godard – 1)
Na França, À Bout… inova de modo análogo. Sem ditar um juízo histórico acabado como o de La Dolce Vita, porém com um senso agudo da mesma problemática e uma reflexão formal ousada, o filme propõe uma nova dinâmica narrativa. Destaca-se, de saída, pela fluência narrativa nova e pelo uso ostensivo e inteligente de modelos da cultura de massa. Comecemos pelo último ponto, ou seja pela coleta (em ritmo de assemblage rauschenberguiana) de materiais processados pela indústria cultural – um ato negativo e irônico ante as premissas de naturalidade e realidade, advogadas pela crítica de André Bazin (1918-1958), conforme adiante se verá. Desse modo, rumando contra as convenções literárias e teatrais que debilitavam o cinema francês ante outras linguagens já modernizadas (da publicidade, do jornalismo, da literatura de massa…), À Bout… incorpora esquemas narrativos do filme B norte‑americano e recorre a enquadramentos e cortes abruptos que remetem às técnicas reprodutivas gráficas. Assim, o filme traz o discurso cinematográfico a um patamar de contemporaneidade ante as linguagens industriais, programadas para o consumo de massa.
Em linhas gerais, no plano abstrato e estritamente formal, como modernizador da retórica cinematográfica francesa, À Bout … torna-se o carro chefe, mas, no esquema, não se diferencia – senão no grau de ousadia e de empenho com o programa inovador, traduzido com inventividade em muitos aspectos do filme – do restante da Nouvelle Vague. A emergência no cinema dessa corrente de ideias, originária da imprensa especializada, renovou o discurso cinematográfico, conferindo-lhe novos aspectos de intimismo e coloquialidade. Por esse tom menos teatral, e sem impostação – estimulado pelo consumo individual, gerado nas novas formas de mercado –, a Nouvelle Vague se distingue da produção italiana de Fellini e Antonioni, que – mesmo ao esboçarem o panorama social do consumo – são levados, em razão da desigualdade social italiana e do debate com o neorrealismo, a fazê-lo dentro de molduras mais amplas, buscando abranger a fratura exposta constitutiva da sociedade italiana.
No plano concreto das opções icônicas e semânticas, porém, a singularidade de Godard é, desde logo, mais nítida e ele aparece como o mais impactante e independente dos realizadores da Nouvelle Vague, criando uma série de cenas e logo-imagens do movimento. De fato, é ele, dentre todos, quem esboça, de saída, uma reflexão estética sobre a recém-criada sociedade de consumo francesa e se destaca pela visão mais clara do quadro socioeconômico de origem e a consequente elaboração de um discurso independente ante modelos anteriores da cultura francesa.
Em resumo, Godard não renova só o cinema, mas a cultura. E lança os marcos de uma visão cosmopolita e global, como haviam feito Antonioni (L’Avventura [A Aventura], 1960) e Fellini. Desse modo, À Bout… traz personagens “comportamentais” gerados pelo mercado e, portanto, dotados de mera fímbria de interioridade – em contraposição, por exemplo, ao pungente intimismo de Les Quatre Cent Coups (Os Incompreendidos, Truffaut [1932-1984], 1959), às personagens densas e dramáticas, à l’ancienne, de Louis Malle (1932-95) – traçadas segundo o modelo baziniano (nos moldes do “personalismo” de Mounier). A vinculação do trabalho de Godard com temas ligados ao consumo direciona-o, como se verá, para um diálogo intenso, mesmo que não exclusivo, com a pop. Constitui por isso um caso emblemático para o exame da reciprocidade cinema-pop.
Fluência e dispersão (instantâneo de Godard – 2)
À Bout… traz um modelo narrativo rarefeito e à base de dissociações, intensificadas nos trabalhos seguintes. As cenas incluem inúmeras ações supérfluas para a trama. São eventos banais que multiplicam os alvos de atenção e criam vazios dramáticos ou causam o distanciamento do espectador ante a estória, cujo enredo faria supor um filme de suspense ao modo dos filmes B –dos quais, aliás, tantos elementos são extraídos.
Além desses sorvedouros semânticos, que esgarçam o fio da trama, notam-se também dispersões ou dissociações intrínsecas ao modo de narrar, caracterizando uma economia narrativa nova no cinema – dotada de uma dispersão elástica e surpreendente, inerente a um novo tipo de organicidade narrativa. Assim, tantas vezes a objetiva parece flanar; as personagens, tagarelar; a música, correr autonomamente, dispensada da função tradicional de comentário… De onde vem e para onde vai esse fluxo à primeira vista errante e estranho?
É notório que o cinema de Bresson já tornara independentes imagem e som, como linguagens específicas e com autonomia própria. Um evento podia motivar uma apresentação visual e, antes ou depois, também oral. Mediante essa nova economia, o cinema francês finalmente incorporara algumas das linhas centrais do programa crítico-estético moderno, segundo Kant (1724-1804) e Lessing (1729-1781): as da especificação, formalização e autonomização das linguagens e dos saberes. Noutro plano, e com outros moldes, também o neorrealismo, ao optar por uma arte de situação, já dera lugar a acidentes e errâncias em seu discurso, mais rarefeito do que os “uníssonos” (som, imagem, luz etc.) da canônica hollywoodiana, na qual tudo é usualmente capitalizado para o desenvolvimento dramático.
Contudo, na obra de Godard, essa dissociação dos componentes cinematográficos alcança níveis explosivos e ultrapassa o limiar da gratuidade, indo muito além do horizonte estético e ético de Bresson. Com que objetivo? Nesse aspecto, o discurso de Godard se aparenta ao do free jazz e à disjunção entre cor, linha, gesto e desenho, introduzida na pintura por Rauschenberg e Johns, e adotada pela pop, como se vê em muitos trabalhos de Warhol. Assim, o meio de representação – outrora duplo transcendental de uma dimensão infinita, projetada como universal e unificada pela razão (garante da ordem teleológica do discurso) – torna-se o duplo do meio urbano loteado e reificado. Ou seja, é desintegrado por elementos que parecem existir por si mesmos – retalhando e consumindo o meio de representação, tal como indivíduos que, numa multidão, concorrem entre si pela obtenção de oportunidades.
Uma tal quebra da teleologia narrativa tem correspondência com o evidente amoralismo das personagens e o seu descompromisso com as situações, nos moldes do consumidor padrão. Michel Poiccard, o personagem de À Bout de Souffle, não para de mexer nas coisas; quer se apoderar de tudo feito um consumidor compulsivo numa loja de departamentos. Seu problema é a falta de moeda, acentuada em termos dramáticos pelo traço da posse de um cheque difícil de ser descontado. Nessa condição instável – símile à sua clandestinidade diante da lei –, avulta, na sua figura, o consumidor, de voracidade ilimitada, marcado pelo fascínio imediato e inadiável pelos bens, e pela volubilidade, que leva à reposição incessante de demandas.
A atração de Poiccard pelos bens é complementada pelo comportamento opaco, interesseiro e calculado de Patricia– fria e hesitante até distinguir, em cada relação, o proveito a extrair. Sob essas duas faces, expõe-se o dinamismo da mercadoria, festejada e ironizada pela narrativa, inscrita nas feições modernizadas de Paris – percorridas por longos travellings da objetiva, que flana por entre ruas, escritórios, vitrinas, transeuntes…
Todos os caminhos levam à cidade
Se a objetiva de Godard evolui ao léu, ou flana, e com isso abrange em seus planos o fortuito e o efêmero, já a decisão que a constitui – em termos de volubilidade e instabilidade – é refletida e estratégica. A flexibilização do mecanismo narrativo contribui para o distanciamento em vários graus: ao inscrever na trama detalhes miúdos e sem valor; ao abandonar as personagens em favor de traços idiossincráticos ou da prática cênica dos atores; ao submergir a narrativa, enfim, num estado genérico de dispersão…
No plano maior da estratégia estética, a essa negatividade corresponde a positividade das sequências, ao modo de documentário, que são recorrentes nos trabalhos de Godard. Noutras palavras, o esvaziamento da dramaticidade narrativa é compensado por um objeto efetivo, criado pelo perambular ou flanar: o interesse pela cidade e seu processo de modernização.
A cidade, de fato, despontará a seguir como matriz de todos os cenários dos trabalhos de Godard. A recorrência do uso cenográfico e documentário de Paris é potencializada pela constância de um traço de comportamento das personagens: o de comprar e consumir incessantemente – cigarros, bebidas, cafés, cosméticos, ou formas de lazer e informação: jukeboxes, cinema, jornais, revistas, livros, discos, postais, panfletos etc… Assim, essa voragem peculiar das figuras de Godard – que pontua a narração como um fator a mais de dispersão narrativa – implica positivamente a cidade como polo interativo, somando-se ao registro documentário e instituindo-a no papel dramático de fornecedora de bens e serviços.
É possível reconhecer aqui uma dinâmica complexa, de negação e afirmação simultâneas: por uma, o esvaziamento do valor dramático da narrativa, ou seja, a produção do distanciamento; e por outra, o reforço do valor cognitivo, mediante a afirmação do viés documentário. Do atrito sistemático de ambas, gera-se uma síntese, ou inter-relação dialética, na forma de uma reflexão cujo eixo é o consumo.
Estabelecida essa dinâmica, será possível obter um importante paralelo: a saber, entre a poética reflexiva, de Godard, que enfoca o mundo dos consumidores e, de outra parte, o Passagen-Werk,[iv] isto é, o projeto teórico de Walter Benjamin (1892-1940), de desnudar a vida moderna a partir das fantasmagorias do consumo.
Formas elementares: em Godard e no trabalho das passagens
Assim, em suma, salientei o dinamismo da mercadoria exposto sob as faces do casal de À Bout de Souffle – um consumidor febril e uma vendedora ambulante, ambiciosa e disposta a tudo –, e comparei o regime visual da objetiva ao da flânerie, com dois propósitos: 1) antecipar momentos marcantes da produção de Godard, entre os quais Vivre Sa Vie (Viver a Vida, 1962) e 2 ou 3 Choses que Je Sais d’Elle (Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela,1967) – em que a ideia de mercadoria emerge no núcleo da trama; 2) aproximar a poética de Godard do trabalho de Walter Benjamin, para poder utilizar os conceitos visuais ou ideias-imagens (Denkbild)[v] deste último, entre os quais, o do flâneur.
Os dicionários falam da flânerie como um passeio ao acaso. Benjamin, porém, precisa essa definição, determinando-a num contexto e numa situação histórica. Assim, tal como o termo herboriser (“herborizar”, no português) refere-se a uma prática correspondente a certo estágio das ciências naturais e entrou em uso no francês no século 17 (tendo sido muito usado no século seguinte por Rousseau [1712-1778]), o termo flânerie entrou no francês em 1808 e corresponde, conforme Benjamin, a uma prática e contexto precisos: o passeio no ambiente urbano, nos moldes de uma pesquisa de mercadorias e de rostos – entrevistos na multidão ao modo de objetos expostos nas vitrinas.
Logo, para Benjamin, a flânerie corresponde a uma conexão entre olhar e devanear, ligada ao vagar no meio urbano como parte da multidão. Precisamente é a visão de relance, a que motiva fantasias. Sua forma originária (Urform), afirma Benjamin, vem da mercadoria e do modo específico de contemplação que ela provoca. A forma da flânerie, sintetizada por Benjamin, reside numa regra de comportamento: “Observe, mas só com os olhos” (PW 968).[vi]
A flânerie, em síntese, consiste num perambular mesclado de fascinação, volubilidade, expectativas gratificantes e outros elementos do desejo específico que precede o consumo. Como tal, a figura-tipo do flâneur consiste num conceito visual ou ideia-imagem (Denkbild) extraído do comportamento padrão dos frequentadores das “Passagens”[vii] e concebido como instrumento para a investigação de Benjamin sobre a sociedade moderna, a partir de Paris.
Flanar e narrar
Em síntese, o flâneur, para Benjamin, é o transeunte convertido em “especialista do mercado” (PW 473) ou em fantasista, pois a vivência do mercado é, por excelência, a da fantasmagoria: ou seja, a da consideração da mercadoria independentemente do seu processo de produção.[viii] Vale dizer, o flâneur é o espectador-modelo, forma básica do consumidor.
Nesse sentido, conforme salienta Susan Buck-Morss em um comentário sobre a Passagen-Werk de Benjamin, a flânerie é o modelo de uma atitude perceptiva que “satura a vida moderna, em particular a sociedade de consumo de massa (e é a fonte de suas ilusões)”. Morss enxerga a flânerie numa série de comportamentos deambulatórios da vida contemporânea: além do consumidor, no público de tevê e de rádio, no turista, no jornalista, num tipo de escritor, num tipo de espectador etc…[ix]
Em síntese, a flânerie é reprodutível, como modo de recepção passiva, a partir de dois elementos básicos: a possibilidade de substituição do objeto visual – isto é, o seu caráter de produto em série e descartável; e a gratificação puramente imaginária daí suscitada. Nesse sentido, Benjamin afirma que o flâneur porta consigo o próprio conceito de “ser à venda”;[x] noutras palavras, porta a forma-mercadoria como forma a priori de sua experiência.
Personificação e exposição do desejo de consumo, o flâneur de Benjamin tem como correspondente, no plano das coisas, a mercadoria em exibição e, como termo correlato, na calçada, a prostituta, que, de acordo com os Manuscritos de 1844, de Marx, é a “expressão específica da prostituição geral do trabalhador”.[xi] Logo, a dualidade entre flâneur e prostituta será apenas aparente, para encobrir uma homogeneidade estrutural, cujo princípio é a forma-mercadoria.
Figuras das filmagens
Um passo atrás, encontramos essa mesma polaridade, entre flâneur-protagonista-narrador e prostituta-personagem central ou coadjuvante, nas figuras de Godard. Assim, o flâneur é a matriz de uma série de figuras – o ladrão (À Bout…), o mercenário (Les Carabiniers [Tempo de Guerra], 1962-1963), o roteirista (Le Mépris [O Desprezo], 1963), a dupla de vigaristas (Bande à Part [Bando à Parte], 1964), o investigador-literato (Alphaville, 1965), o leitor (Pierrot Le Fou[O Demônio das Onze Horas], 1965), o pesquisador (Masculin Féminin [Masculino, Feminino], 1966) etc.– que integram o mosaico masculino das obras dos anos 1960.
Do lado feminino, o modelo do bem de consumo está presente na maioria das variações figurativas, sejam personagens, sejam imagens da cidade – termos que entre si permutam significações. A mesma matriz é válida nos âmbitos da ficção e do documentário.
No primeiro, a prostituição explícita ou implícita, sob alguns dos seus índices, está presente na composição das figuras femininas. E no segundo caso, seja como cenografia, seja como objeto documentário, Paris aparece como cena-matriz de todas as cenas, e se adaptará aos diferentes gêneros e artifícios narrativos adotados no curso da obra – que vêm compor um rol tão heterogêneo e variado quanto aquele das assemblages de Rauschenberg.
Para além da representação
A reiteração das matrizes – que põe uma polaridade nuclear, estampada nos dois eixos figurativos inerentes à produção godardiana do período pré-1968– conjuga-se, no caso, ao progresso da reflexão. Assim em À Bout… a figura de Patricia é caracterizada como inescrupulosa e leviana. Fica evidente que a tipologia da representação traz o perfil da prostituta como figura embutida, e, ademais, como objeto de condenação moral…
Já em Vivre as Vie, a prostituta Nana, como protagonista, é alvo de uma aproximação complexa. A narração representa a personagem, segundo dois ângulos opostos – e dramatiza essa dilaceração da figura: ou seja, explicita tanto sua liberdade subjetiva como sua condição de mercadoria. Por um lado, vê-se a personagem como subjetividade em busca de emancipação. E, por outro, ela aparece em sua condição objetiva genérica, como força de trabalho e objeto, no caso, ora de um interrogatório policial, ora de uma pesquisa sociológica.
Para abreviar o rol, finalmente em 2 ou 3 Choses que Je Sais d’Elle (1967), a dualidade das matrizes figurativas torna-se objeto, de certo modo, de uma síntese: as duas perspectivas, a da liberdade subjetiva, dotada da faculdade de escolher, e a da mercadoria, surgem unificadas em Juliette, a protagonista, apresentada no cumprimento de sua rotina diária – como dona-de-casa e mãe de família consumidora – e, ao mesmo tempo, como força de trabalho, na figura da prostituta.
Nesse ponto, os dados figurativos (homem, mulher, cena urbana e respectivas derivações) são revistos como momentos de uma mesma estrutura, cujo núcleo consiste na forma-mercadoria. Cumprido um ciclo reflexivo, essa configuração dramática encaminha a obra de Godard para um novo ciclo, essencialmente combativo; ciclo que só será claramente delineado no ano seguinte, com a fundação do Grupo DzigaVertov, desencadeado pelas mobilizações de Maio de 68, e que atuará nos limites do antiespetáculo e da ação militante, voltada para a transformação social.[xii]
Ordem das razões
Mas com que materiais e procedimentos se deu o progresso da reflexão que permitiu ao cinema de Godard ir além da esfera cênica da representação e da fenomenologia dos comportamentos? Ambas, saliente-se, barreiras estanques – como diques de fato –, dentro dos quais se manteve a maior parte das obras da Nouvelle Vague (sem o grau de reflexão e radicalidade crítica do porte daquelas de Godard), mesmo em seus desenvolvimentos mais felizes e inventivos, sem falar de parte significativa da obra posterior dos cineastas que integraram inicialmente esse movimento.
Retomemos o fio da análise abrangendo o primeiro ciclo da obra de Godard, até 1968. Se, de 1959 a 1967 – ou de Patricia (talhada como mercadoria), passando por Nana (objeto dotado de interioridade, nos termos da fenomenologia), até Juliette (que reflete existencial e politicamente sobre os fatores estruturais de sua condição) –, o ganho de complexidade na elaboração das figuras é evidente, a evolução do modo figurativo na obra de Godard não demonstra, porém, a raiz do seu sistema estético. Vale dizer, o desenvolvimento do processo figurativo é secundário na poética de Godard nesse período.
De fato, enquanto no horizonte crítico imediatamente anterior à Nouvelle Vague, o modus operandi neorrealista e o princípio estético-crítico de André Bazin supunham, ambos, a imagem como vestígio ou índice de uma manifestação maior,contrariamente, no cinema de Godard, a origem semântica da imagem veio a ser esvaziada. Com efeito, por isso não se encontra, no plano ontológico, diferença relevante entre a imagem godardiana e aquela publicitária, conforme, aliás, ressalta o conhecido aforismo godardiano: “Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image (“não é a imagem certa; é certamente só uma imagem”).[xiii] A indistinção é repetida e provocadoramente sublinhada e reiterada, por Godard em diferentes filmes, via paródias de cenas publicitárias…
Em suma, nota-se assim que, enquanto o valor de raiz da imagem mostra-se desprezível nos trabalhos de Godard, o gerador fundamental de sentido e o fator decisivo de significação – que submete o momento figurativo e organiza os dados da obra – é, na realidade do seu trabalho, o curso da montagem. Nesse sentido, a preocupação de Godard com a montagem vem de longe e é notável pela precocidade, como testemunha um artigo – escrito aos vinte e seis anos – sobre o tema para os Cahiers, em 1956.[xiv]
Aí, a independência da intuição do jovem crítico opera quase já como um turning point histórico, quando se considera a ascendência, à época, no meio cinematográfico francês, de André Bazin, para cuja concepção ontológica (do cinema), a montagem exercia um papel secundário, diante da primazia atribuída ao plano-sequência, enquanto hipotética imersão direta no fundo de significação dos fenômenos.[xv]
Montagem em questão
No turning point quanto à montagem – e à ontologia do cinema –, anunciado por Godard, reside mais um sinal de parentesco com a nova linguagem pictórica norte-americana que sucedeu ao expressionismo abstrato. Mas, aqui, a equiparação de procedimentos cinematográficos e pictóricos vale apenas se por montagem se entender unicamente a sua primeira operação, isto é, as ações de corte e extração: o ato negativo de interrupção do contexto. Nesse sentido, Rauschenberg, Johns e mesmo a pop propriamente dita (Warhol, Rosenquist, Lichtenstein…) praticam recorrentemente a montagem – entendida como descontextualização.
Contudo, atenção: no caso dos norte-americanos, respeitadas as diferenças de estilo e de humor – que vão da rebeldia e da irreverência neodadaísta, da sabotagem individual do preciosismo das belas-artes, até o mal-estar civilizado, glacial e tanático de Warhol – não se distingue em tais usos da montagem qualquer ambição de reflexão histórica maior, enfim, de uma síntese que explicite uma nova inteligibilidade sobre o contexto histórico-social dos signos implicados, mesmo que, para o bom entendedor, baste a meia palavra de Warhol.
Diferentemente, para Godard, a montagem cumpre um papel didático decisivo como geradora de uma nova visão de conjunto. Ela revela aspectos ocultos dos dados visuais extraídos dos diferentes contextos e ressignifica as imagens relacionadas, sintetizando-as segundo um processo de totalização. Assim, por exemplo, uma montagem picotada de imagens de super‑heróis de quadrinhos norte-americanos, em La Chinoise (1967), sugere rajadas de metralhadoras, estabelecendo um paralelo fulminante entre o imperialismo cultural e o militar.
Analogamente, em 2 ou 3 Choses…, a imagem em close dos circuitos (envoltos pela fumaça dos cigarros) de um rádio, que transmite o discurso de uma autoridade norte-americana,colhe uma sequência típica de filme caseiro (no caso, a cena da diversão doméstica, na qual dois amigos se entretêm com a escuta banal, após o jantar, de transmissões em ondas-curtas), para transfigurá-la – em cena dramática de filme de guerra. A operação, propiciada pela montagem, que combina som e imagem nos termos acima referidos, abole subitamente todas as barreiras erguidas em torno da vida privada, como esfera protegida dos conflitos históricos externos…
Enfim, os exemplos nesse sentido são incontáveis e recorrem indiscriminadamente no âmbito visual, no sonoro ou no das legendas – aqui, especialmente, mediante a proliferação de chistes, trocadilhos ou jogos de palavras. Desse modo, o projeto reflexivo e totalizador que atende o recurso da montagem, para Godard, salienta-se mediante diferentes traços e em vários níveis, a saber: pela aspiração narrativa, que se manifesta com insistência e via sinais variados; por uma perspectiva de conjunto e politizada da problemática em tela; e também pela leitura, em chave genética,da relação sujeito/objeto, constitutiva da objetividade, segundo referências postas pela fenomenologia francesa (textos de Sartre [1905-1980] e Merleau-Ponty [1908-1961] – ora apropriados pela narração, ora tomados como segmentos de paisagem ou bens do mobiliário urbano, de Paris, ao modo de som ambiente ou de digressões proferidas por figurantes –,vem a ser incluídos nas “colagens” ou assemblages sonoras godardianas, em mais de um filme).
Desse modo, Godard afirma, acerca de 2 ou 3 Choses…, que “este ‘conjunto’ e suas partes (das quais Juliette é a que escolhemos […]), é preciso descrevê-los, ao mesmo tempo como objetos e como sujeitos. Quero dizer que não posso evitar o fato de que todas as coisas existem conjuntamente a partir do interior e do exterior”.[xvi]
A seguir, o cineasta refere-se ainda a uma noção de Merleau-Ponty, para explicar e qualificar seu projeto: “(…) tendo podido situar certos fenômenos de conjunto, e continuar ao mesmo tempo a descrever eventos e sentimentos particulares, isso nos levará por fim para mais perto da vida (…). Talvez, se o filme acertar (…), talvez então se revelará o que Merleau-Ponty chamava de L’existence singulière (a existência singular) de uma pessoa, em Juliette mais particularmente. Importa em seguida combinar bem esses movimentos uns com os outros”.[xvii]
Para além da montagem (com Brecht e Benjamin)
Resumindo, para fixar: a montagem tem, para Godard, valor didático e pertence a um projeto cognitivo. Desfaz o fetiche da forma – ou seja, critica o significado cristalizado e encaminha a forma para uma reinterpretação – a fim de preparar uma nova síntese. Desse modo, ao revés da doutrina de Bazin, que priorizava o plano-sequência como portador de uma verdade ontológica, a montagem prevalece, aqui, sobre os seus topoi figurativos (o flâneur, a prostituta, a cidade-cenário…). E ainda opera como síntese reflexiva, contraposta ao momento descritivo gerado pela objetiva, cujo automatismo de funcionamento, especialmente no registro documentário, é comparável ao regime da flânerie, em sua entrega a um horizonte dado de imagens – o da vitrina, por excelência.
Nesse sentido, o princípio sintético da montagem, para Godard, filia-se antes à noção de Brecht (1898-1956) de “pensamento interveniente” (eingreifendes Denken), que designa, mediante o efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt), para além da simples fragmentação ou da interrupção do contexto inicial, uma reinterpretação ou apropriação intelectual – entendida como desnaturalização do objeto e sua inserção numa história aberta, na qual diferentes perspectivas se entrechocam…[xviii]
Na teoria de Brecht, o “pensamento interveniente” se opõe à passividade correspondente ao fascínio irradiado pela mercadoria, à identificação por empatia (Einfühlung) que estrutura modernamente a contemplação passiva tradicional, de molde originalmente aristotélico – tal como o princípio da montagem para Godard se contrapõe criticamente à incorporação de objetos reificados, às imagens obtidas pela filmagem (como flânerie) – e propõe uma visão maior ou totalizante acerca dos temas e objetos envolvidos.
A dimensão filosófica desse ponto de vista, consubstanciado na primazia da montagem, é exposta por Walter Benjamin, que incorporou o termo “princípio da montagem”, provindo do léxico cinematográfico, ao vocabulário filosófico, atribuindo-lhe, no Passagen-Werk, a função de princípio formal do seu pensamento.
Benjamin parte da observação do “princípio da montagem” como próprio às novas técnicas industriais de reprodução da imagem; propõe, na investigação filosófica, algo similar ao uso artístico da montagem, feito no cinema, na fotografia e no teatro, por artistas como Eisenstein (1898-1948), Vertov (1896-1954), John Heartfield (1891-1968) e Brecht. Nos trabalhos destes, recorria‑se ao emprego de imagens diametralmente opostas para deflagrar um conflito na perspectiva do espectador, com o fim de originar uma terceira imagem, sintética e mais forte do que a soma das partes precedentes.[xix]
Nesse sentido, Benjamin concebeu, por sua vez, mediante noções como a de “imagem dialética” ou “ideia-imagem” (Denkbild) – resultantes da aplicação do princípio de montagem –, a construção de uma imagem “cujos elementos ideacionais permaneçam irreconciliáveis, em vez de se fundirem numa perspectiva harmônica”.[xx] E afirmou expressamente, a propósito do Passagen‑Werk:”este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem usar aspas. Sua teoria está intimamente ligada à da montagem.[xxi]
Como se sabe, “há outro uso da montagem que cria ilusão ao fundir seus elementos tão habilmente que elimina toda evidência de incompatibilidade e contradição, enfim, toda evidência de artifício”. Tal era, como salienta Buck-Morss, o princípio de construção dos “panoramas” – uma forma de diversão muito popular no século 19 e que está na raiz do cinema. Consistia na apresentação, para observadores individuais, de réplicas artificiais de cenas de batalhas, de paisagens célebres etc.[xxii]
Sucedâneo dessa linguagem visual de massa, o realismo, em suas diversas acepções no século 20 (o espetacular, praticado pela indústria de Hollywood; o de Luckács, que Benjamim e Brecht refutam; o neorrealismo, cuja ontologia Bazin expressa), busca a univocidade, a maximização, a otimização e a cristalização das significações. O método para uns e outros, seja para obtero lazer de massa;o alinhamento com a dogmática dos partidos comunistas satélites (de Moscou),ou ainda a compaixão e a comoção moral, é:o do condicionamento emocional da consciência, pela eliminação de dúvidas e efeitos contraditórios de modo geral.
Dialetizar a imagem
Ao revés, Benjamin – em paralelo com Brecht e consoante à orientação antidogmática do Verfremdungseffekt e da concepção reflexiva e crítica de ambos acerca do marxismo – propõe a construção da “imagem dialética” e, para isso, o uso da montagem, essencialmente, como questionamento ou prática problematizante, geradora de uma recepção ativa ou práxis visual nas antípodas da fascinação pela mercadoria.
O caso do flâneur, tomado como ideia-imagem (Denkbild) – pertinente, no caso, ao comportamento geral na sociedade moderna de consumo –, exemplifica o que Benjamin entende por “dialetização da imagem”. Assim, a produção da ideia-imagem do flâneur requer a fragmentação de um contexto (o mundo da flânerie, nas “passagens” do século 19) e a apropriação de uma parte (a imagem do flâneur) a ser reelaborada nos termos de um processo de pesquisa – no caso, a investigação da sociedade moderna a partir das fantasmagorias do consumo. Sociedade moderna que – à luz da aceitação e reprodução em escala de massa de um padrão sensível ligado à gênese do varejo diversificado e massivo e da perspectiva do consumo estendida à jornada inteira, o modo perceptivo do flâneur– expõe sua estrutura intrinsecamente arcaica, fundada no fetichismo.
Em suma, na perspectiva filosófica operante no Passagen‑Werk, cabe à montagem papel decisivo como fator de sínteses no bojo de um projeto crítico-cognitivo de cunho totalizante, no curso do qual a investigação estética da imagem acopla-se àquela da forma-mercadoria e, ainda, a uma prospecção da subjetividade própria à modernidade – da qual não está alheia a descoberta de Freud (1856-1939) dos processos associativos e contraditórios que opacamente constituem os atos de fetichismo.
Godard/pop…
Isso posto e fixada a homologia constitutiva que permite, na quadra descrita, se falar em programa estético-crítico-reflexivo do “consórcio Godard-Brecht-Benjamin”, alguns pontos de apoio comuns, bem como tangências e oposições revisitadas, ante a pop art, se esclarecem. Mas como completar a investigação, sem solver a questão específica decorrente: – “em que medida a obra de Godard pré-68 pertence ou não pop?”. Para recapitular, sumariamente:
–tem traços pop na medida em que deriva da consciência aguda que a pop traz da mercantilização extensa das relações e da fragmentação correspondente do espaço social e de valores. E, tal como no trabalho precursor, antiaurático e antissubjetivo de Rauschenberg, recorre a apropriações, a dissonâncias, à heterogeneidade, à serialidade – restringindo, enfim, o valor de representação da arte;
– analogamente, encontra paralelo com a pop na medida em que a sua linguagem, ao negar a profundidade visual ilustrativa da infinitude do espírito, recorre insistentemente a imagens achatadas ou unidimensionais e a superfícies descontínuas, segundo os padrões da linguagem gráfica – aí, Godard demonstra desacreditar de uma liberdade absoluta, capaz de prevalecer sobre qualquer condicionamento cultural ou social. Ou, em outras palavras, aproxima-se da pop,na medida em que, ao prescindir da tradicional relação de continuidade figura-fundo – própria à concepção de um espaço unificado de representações, à imagem e semelhança do caráter uno e suprassensível da razão – insere decididamente a sua linguagem na circunscrição da imanência e entre as demais formas de produção social;
– o cinema de Godard traz, ainda, traços pop, na medida em que a sua linguagem, ao referir insistentemente conteúdos preexistentes, implica uma ação semântica sem naturalidade e autenticidade, que identifica, na ordem dos fenômenos, apenas ocorrências já reificadas ou com um valor social dado – tal como os números, as bandeiras, as latas de cerveja e outros objetos de Jasper Johns e, analogamente, outros ícones da pop (cadeiras elétricas, latas de sopa Campbell, efígies de Marilyns, Jackies, Maos etc.)
Contudo, Godard escapa à pop na medida em que os seus trabalhos – a despeito do empréstimo de procedimentos de Rauschenberg e Johns e do léxico e da metodologia pop em vários tópicos – vão além, superando a mimese pop (ainda que irônica) do caos urbano ou do marketing. Diferentemente, o cinema de Godard constitui a visualidade como esfera dialógica e superfície de trabalho didático…
Assim, os trabalhos de Godard alcançam também o questionamento da própria premissa da perspectiva pop (premissa, salvo engano, não discutida efetivamente por nenhum dos pop norte‑americanos e nem por seus precursores ditos neodadas).
Em conclusão, o cinema de Godard escapa à pop na medida em que foge à raiz empirista da cultura norte-americana e à correlata petrificação do processo histórico segundo a premissa capitalista, para introduzir na perspectiva pop uma inflexão sintética – que irá determinar criticamente, nos termos do marxismo, a ideia posta da forma-mercadoria como fundamento atual, mas provisório, da organização do trabalho e da produção cultural.
A conclusão de 2 ou 3 Choses… explicita essa progressão de ideias, que retoma progressivamente o fio do debate ligado ao avanço dos movimentos políticos de trabalhadores no século XX. E afirma a necessidade de superação da forma-mercadoria, como princípio de ordem, ao mostrar, no último plano, várias embalagens no gramado, dispostas de modo a sugerir a visão dos prédios de uma cidade moderna, e concluir: – “já que me levam ao zero é de lá que é preciso recomeçar”.[xxiii]
Essa visão de conjunto, que implica o fim da dualidade na representação da liberdade humana e do mundo reificado, é que leva o trabalho de Godard – num ato de humor, mas também de perspicácia histórica–, em La Chinoise (A Chinesa,1967), a cotejar palavras de ordem da juventude maoísta e o “rock”, no caso, como padrão estético e de comportamento da juventude ocidental.
A “ideia dialética” resultante da convergência desses dois modelos de massificação (o da política chinesa e o da indústria cultural ocidental) desfaz contradições aparentes – distinguindo ritmos e rumos de modernização similares e antecipando proximidades que a diplomacia, com Kissinger (1923) e Nixon (1923-1994), só viria a reconhecer cinco anos depois. Assim, anos antes do reconhecimento diplomático e das centenas de retratos-múltiplos de Warhol, acerca de Mao (1972-3), que se seguiriam ao fato diplomático, o cinema de Godard anteviu, para além das ilusões de ruptura histórico-civilizacional, e inscreveu – numa série de imagens dialéticas – a dinâmica e a rítmica chinesa dentro do universo simbólico da pop.
A convergência e a comparação das duas matrizes econômico-simbólicas igualmente indica, consoante a rítmica pujante de então (1967), o desempenho superior e exemplar e, consequentemente, a prevalência simbólica,a médio prazo, do padrão ocidental de coisificação. Com efeito, hoje não é novidade que a cena chinesa, sistemicamente integrada ao comércio global, é o novo must do capitalismo avançado.
* Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); e autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019).
Revisão e assistência de pesquisa: Gustavo Motta.
Editado a partir do texto publicado originalmente sob o título “O Cinema e a pop art: o flâneur, a prostituta e a montagem”, in: Ismail Xavier (org.), O Cinema no Século, Rio de Janeiro, Imago, 1996, pp. 319-333.
Notas
[i]Ver Russell Ferguson (ed.), Hand-Painted Pop American Art in Transition 1955-62, Los Angeles, The Museum of Contemporary Art, 1993.Para discusses instigantes acerca da obra de Rauschenberg, em curso desde 1949, ver Branden W. Joseph (ed. by), Robert Rauschenberg/ October Files 4, Cambridge, Massachusets, 2002; ver também Walter Hopps and Susan Davidson et alii., Robert Rauschenberg/ A Retrospective, New York, Guggenheim, 1997.
[ii]ParallelofArtand Life, primeira mostra do The Independent Group, formado em 1952, por Nigel Henderson (1917-85), Eduardo Paolozzi (1924-2005) e outros,ocorreu no ano seguinte, no Institute of Contemporary Arts, em Londres.Trabalhos individuais de Paolozzi que prenunciam claramente o programa da pop, contudo, já datam de 1947-48, coincidindo na prática com a implementação do Plano Marshall (1948-52).
[iii]Cf. Tullio Kezich, Fellini, Milano, Rizzoli, 1988, p. 183.
[iv]Ediçõesconsultadas: Walter Benjamin, Parigi, Capitale del XIX Secolo: I “passages” di Parigi, a cura di RolfTiedemann, ed. italiana a cura di Giorgio Agamben, trad. vários, Torino, Einaudi, 1986; idem, Paris, Capitale du XIX Siècle/Le Livre desPassages, traduction Jean Lacoste d’après l’édition originale établie par RolfTiedemann, 2ème édition, Paris, Cerf, 1993, pp. 133-63.
[v]A tradução literal do termo é: “pensamento-imagem”. Para a concepçãodestetermopor Benjamin, ver Philippe Ivernel,”Passages de frontières: Circulations de l’image épique et dialectique chez Brecht e Benjamin”, in Hors Cadre/ 6 –Contrebande – 6, Printemps 1988, Saint-Denis, Presses Universitaires de Vincennes – Université Paris VIII, 1988.
[vi] A ideia deUrform deriva, conforme afirma o próprio Benjamin (Passagen-Werk 577), do conceito goetheano de Urphänomen. Para a correlação dessa ideia com aquela de “imagem dialética” e a oposição de ambas às “essências” da fenomenologia, ver Susan Buck-Morss, “Le Flâneur, L’Homme-sandwich et La Prostituée: Politique de La Flânerie”, in Heinz Wismann (éditeur), Walter Benjamin et Paris/ Colloque International 27-29 Juin 1983, Paris, Cerf, 1986, pp. 366-7.
[vii]Galerias comerciais de Paris, espécie de formas ancestrais dos atuais shopping-centers.
[viii] Cf. Susan Buck-Morss, op. cit., p. 369.
[ix] Idem, pp. 366-7.
[x] Idem, p. 369.
[xi] Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, Berlin, Dietz Verlag, 1960, V, X2, 1, apud Susan Buck-Morss, The Dialectics of Seeing/ Walter Benjamin and the Arcades Project, Cambridge (MA), The MIT Press, 1991, nota 147, p. 430. Ver ainda Morss, idem, pp. 184-185.
[xii] O grupo realizou 4 filmes: Pravda (1969), Vent d’Est (Vento do Leste,1969), Lotte in Italia (Lutas na Itália,1970) e Vladimir et Rosa (Vladimir e Rosa,1971). Dois de seus membros, Jean-Henri Roger e Jean-Pierre Gorin, participaram também de outros trabalhos com Godard, não assinados pelo grupo, a saber, Roger, de British Sounds (1969); e, Gorin, de Tout Va Bien (Tudo Vai Bem, 1972) e de Letterto Jane (Carta para Jane,1972).
[xiii] Cf. cartela apresentada em Vent d’Est, em torno dos 36’40’’.
[xiv] “Montage, mon beau souci”, Cahiers du Cinéma, 65, décembre 1956. Cf. Alain Bergala (éd.), Jean-Luc Godard par Jean‑Luc Godard, Paris, Cahiers du Cinéma – Éditions de l’Etoile, 1985, pp. 92-94.
[xv]Fundador dos Cahiers du Cinema, André Bazin, muito mais do que um autor de leituras episódicas de filmes, que pontificaram, foi um pensador do cinema cuja concepção ontológica deste – muito influente à época – avizinhava-se à filosofia denominada de “personalista”, de Emmanuel Mounier (1905-1950), gerada da mescla de fenomenologia, existencialismo e cristianismo.
[xvi] “Cet ‘ensemble’ et ses parties (dont Juliette est celle à qui nous avons choisi […]), il faut les décrire, en parler à la fois comme des objets et des sujets. Je veux dire que je ne peux éviter le fait que toutes les choses existent à la fois de l’intérieur et de l’extérieur”. Cf. Jean-Luc Godard, “Jean-Luc Godard: ma démarche en quatre mouvements”, apudAlain Bergala, “Deux ou trois choses que je sais d’elle, ou Philosophie de la sensation”/ articles et documents rassemblés par Alain Bergala”, livret, p. 11, in J.-L Godard, 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle, DVD Argos Films – Arte France Développement EDV 236/ INA, 2004.
[xvii]“(…) d’avoir pu dégager certains phénomènes d’ensemble, tout en continuant à décrire des évènements et des sentiments particuliers, ceci nous aménera finalement plus près de la vie (…) Peut-être, si le film est réussi (…), peut-être alors que se révélera ce que Merleau-Ponty appelait L’existence singulière d’une personne, en Juliette plus particulièrement. Il s’ agit ensuite de bien mélanger ces mouvements les uns avec les autres”. Cf. Jean-Luc Godard, 2 ou 3 Choses que Je Sais d’Elle/Découpage intégral, Paris, Seuil/Avant-Scène, 1971, pp. 15-16, republicadoem A. Bergala, op. cit., pp. 12-3.
[xviii]Ver Ivernel, op. cit., pp. 137-8.
[xix]Ver Morss, The Dialetics …, notas 8, 9 e 10, p. 394. Sobre o uso da montagem na URSS, na Alemanha, na Holanda e nos EUA, consultar: Matthew Teitelbaum (ed.), Montage and Modern Life/1919-1942 (catalogue, Maud Lavin … [et al.], exhibition curators, The Institute of Contemporary Art, Boston, April 7-June 7, 1992), Cambridge (MA), The MIT Press, 1992.
[xx]Cf. Morss, The Dialetics…, p. 67.
[xxi]Grifos meus. Apud id., ib.. Ver também Walter Benjamin, Passagens, org. WilliBolle, trad. Irene Aron e Cleonice Mourão, Belo Horizonte / São Paulo, Ed. UFMG / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 500 (N 1, 10).
[xxii]Morss, The Dialetics…, p. 67.
[xxiii] Cf. 2 ou 3 Choses que Je Sais d’Elle, 1967, emtorno de 86’25’’.