Por TARSO GENRO*
Uma grande frente pela vida, contra o fascismo e a sua perversão ultraliberal.
No dia 13 de maio de 1818 – nos meses da Inquisição – “onde a Corte se encontrava há cerca de uma década”, o Rei D. João VI firmou um decreto através do qual rogava ao Papa a designação de D. José da Cunha Azeredo Coutinho como último inquisidor-geral, a título de recompensa, porque ele não exortara – como fizeram a maioria dos prelados na época – os seus diocesanos a apoiarem os invasores franceses. A posse do novo inquisidor efetuou-se sob a luz trêmula e temível das luminárias da tradição, como ocorria nos antigos rituais do Santo Ofício.
Mas a Europa mudara e a tradição de todas as gerações mortas deixava de oprimir – por um certo tempo – os cérebros dos vivos. Na História da “Inquisição Portuguesa” (G. Marcocci e J. P. Paiva, Ed. Esfera dos Livros”) os autores encerram a primeira página do capítulo “As últimas horas do Santo Ofício” (p. 430), com um período iluminado: “todavia, estas luzes não eclipsariam as sombras em que a Inquisição vinha a ocultar-se e que os ideais de igualdade e liberdade da Revolução Francesa ainda mais se acentuaram”.
Esta lembrança paira sobre nós como um chamado àqueles ideais. Todo o egoísmo nacional vital – que se acelerou com o domínio do capital financeiro sobre os Estados endividados e que vem dividindo a sociedade de forma cada vez mais acelerada entre pobres-miseráveis e ricos – nos levou a uma situação limite: ou compomos pela força da política uma ordem mundial minimamente solidária ou equânime, face às lições brutais da pandemia, ou teremos um estado de guerra permanente que levará à humanidade ao apocalipse pela peste. O discurso de Lula foi um alerta e uma esperança, que deve ser complementado com uma grande frente pela vida, contra o fascismo e a sua perversão ultraliberal.
A fala do Presidente Lula ecoou em todo o mundo. O Brasil retornou à cena pública mundial pela voz de um estadista originário do mundo operário, que fez um governo original, em um país que nem a sofisticação intelectual de FHC – hoje mais Príncipe do que sociólogo – conseguiu projetar como um sujeito respeitado na ordem global. Personalidades políticas de várias posições do campo da democracia liberal olharam para o Brasil como se respirassem o ar fresco de uma manhã fantástica.
O destino da ordem mundial, no seu “novo” normal, será um velho normal piorado pela redistribuição do pagamento dos custos da tragédia, que os países ricos promoverão arbitrariamente, segundo os seus interesses. Por isso podemos prever – com pouca margem de erro – que derrotados o fascismo e a loucura instalada no poder, a política externa de países como o nosso vão ser determinantes para – a partir de uma relação cooperativa e interdependente com soberania – nos erguermos da crise melhores do que antes.
FHC não teve o mesmo respeito adquirido por Lula não porque foi incompetente como governante, pois não o era. Mas sim porque mimetizou a política das nações “liberais” ao redor do globo, de forma gratuita e sem recompensas. Tornou o Brasil, com seu desempenho, um país de “baixo custo”, desrespeitado no sistema financeiro dos países ricos e facilitando a vida não dos seus investidores na produção, mas dos seus especuladores com a dívida dos países que estão dentro do círculo da fome.
A ordem mundial era (e é) assimétrica – como dizia o próprio FHC – achando que com essa “baita” descoberta já dispunha de uma justificativa da submissão do seu Governo à visão social democrata em declínio, que passava de uma posição que defendia a proteção do Estado aos mais débeis – economicamente – para a defesa de um destino “tecnológico” em que as ofertas de trabalho no capitalismo teriam, na tração humana dos entregadores, a substituição de um modo de vida sem serviços e trabalhos regulares.
A política externa brasileira tem hoje como voz pública um adepto das ideias mais obscuras e retrógradas durante toda a existência da nossa República. Ele representa, no cenário exterior, a necrofilia política que orienta o governo Bolsonaro em suas questões internas, centradas no tripé: armamentismo irrestrito para fortalecer as milícias, negacionismo científico para expandir a morte e tornar a população indiferente à barbárie; e reformas para aniquilar o que nos resta do Estado Social, sem colocar nada no seu lugar.
Trata-se, assim, de destravar os instintos mais baixos e as fantasias mais perversas dos seres humanos, que serão colocados no limite – ao naturalizar a barbárie – entre morrer pela fome ou morrer pela doença e assim despertar a selvagem concorrência entre eles, para sobreviverem entre esmolas e ajudas emergenciais cada vez menores.
Seja quem for que nos governe no próximo período – com a vitória de um candidato do campo progressista e antifascista – temos que pensar rapidamente em um internacionalismo democrático concreto, para enfrentar o terrível quadro da pós-pandemia. Bolsonaro lutou para colocar o país numa “escolha de Sofia”, que no fundo se assentava na opção entre Trump e o seu séquito fascista ou um golpe de Estado, apoiado nas milícias que ele quer cada vez mais armadas.
O eixo central do antifascismo e da reconstrução produtiva e política do país deve nortear as relações exteriores do Brasil, retirada a direção do Estado das mãos dos insanos. Os cadáveres estão sendo empilhados e o insano maior continua governando. Da sua brutal indiferença sobre a vida humana – porque ele não é “maricas”, nem “coveiro” – brota uma lava de ódio numa sociedade cada vez mais desigual, que se dissemina em forma de uma pirâmide necrófila que se assemelha aos campos de Elsen, Berla, Buckenwals e Auschwitz.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.