Por WAGNER ROMÃO*
O ressurgimento de Lula como candidato em 2022 colocou um pouco de sanidade no ambiente político e fez mover as placas tectónicas da política
Tudo o que ocorre no jogo político nestes dias terríveis tem relação com a pandemia do coronavírus. Nesta semana, chegamos à marca das 300 mil vidas perdidas e os agentes políticos têm se diferenciado quanto aos modos de tratamento da pandemia e em sua postura pessoal em relação a ela.
Não foi à toa que Lula, em sua entrevista há duas semanas, tomou todas as precauções com relação ao uso da máscara, do álcool em gel, naquele início de sua entrevista, dando o exemplo de como evitar o contágio.
Em seu discurso, Lula deu um recado explícito para diversos setores da sociedade, desde os militares até os empresários, para se colocar como uma alternativa a essa aventura irresponsável, mórbida, autoritária, desqualificada chamada Jair Bolsonaro, que foi bancada em 2018 pelo campo político e econômico que segue dominando o país.
Um dos efeitos do ressurgimento de Lula como candidato em 2022 foi colocar um pouco de sanidade no ambiente político tão degradado em que vivemos desde pelo menos as eleições de 2014 e que se agudizou neste período de bolsonarismo triunfante. E as placas tectônicas da política começaram a se mover.
O primeiro elemento a destacar na semana que passou foi a carta assinada por centenas de dublês de economistas, banqueiros, ex-presidentes do Banco Central e ex-ministros da Fazenda que vinculam o combate à pandemia à retomada da economia. A carta elencou quatro medidas urgentes – que há meses vêm sendo reivindicadas pelo campo de esquerda, pelos setores responsáveis da saúde pública e pela sociedade civil: 1) a aceleração do ritmo da vacinação; 2) o incentivo ao uso de máscara; 3) a implementação do distanciamento social para valer – inclusive se menciona a necessidade de se avaliar a adoção de um lockdown nacional ou regional (sem que haja uma defesa clara sobre isso, certamente algo que racha o grupo); e 4) a criação de uma coordenação nacional de combate à pandemia, sob a iniciativa do Ministério da Saúde mas que, na inviabilidade disso, poderia ser realizado pelos estados e municípios.
Quem embarcou na candidatura Bolsonaro em 2018 agora, bastante tardiamente, um ano após o início da pandemia, percebe sua tibieza, sua fraqueza e sua incompetência e busca criar uma alternativa política. Bolsonaro, que dias atrás demonstrou força política ao eleger Rodrigo Pacheco e Arthur Lira para as presidências do Senado e da Câmara, já tornou-se refém destas figuras com a assombrosa elevação do número de casos e mortes causadas pela Covid-19.
As lideranças do chamado Centrão vêm fazendo suas articulações com esta camada do empresariado que percebeu a incompetência de Bolsonaro não só na gestão da pandemia, mas sobretudo na inviabilidade política do aprofundamento das reformas neoliberais prometidas pelo hoje ministro zumbi Paulo Guedes.
Lira e Pacheco se colocam como líderes que podem colocar a bola no chão, combater o bolsonarismo raiz olavista, minimizar as perdas da pandemia e trazer de volta a “normalidade” da agenda neoliberal. Já mostraram que são capazes disso com a aprovação da PEC 186, um pacotaço de ajuste fiscal travestido de retomada do auxílio emergencial.
Neste enfrentamento interno da base do governo consigo mesma se deu a perseguição final ao “jênio” da logística Pazuello e agora vem se dar a caça a Ernesto Araújo, o valoroso combatente do comunismo chinês, chefe do supremacista branco tupiniquim Felipe Martins. E, aguardemos, pode se materializar a saída de Ricarco Salles, o ministro anti-curupira.
Bolsonaro, mesmo carregando a marca das 300 mil mortes, ainda é um nome forte para 2022, tem sua banda – por enquanto fiel – de 20% de aficcionados o que não é pouca coisa em um cenário de fragmentação política. E tem a máquina do governo federal. O Centrão age para deslocar os incompetentes ícones do bolsonarismo raiz e trazer para o governo gente que tenha capacidades mínimas de dar alguma resposta à pandemia.
Daí veio a tentativa de trazer a médica cardiologista Ludhmila Hajjar para o ministério da Saúde. Bolsonaro aceitou a troca no ministério mas rejeitou a solução do Centrão, trazendo Marcelo Queiroga para o ministério. Este, ao que parece, tem muito mais desenvoltura política que o general Pazuello. Neste sentido, pode ser um bolsonarista menos tóxico, com postura mais apaziguadora e que se coadune com a estratégia de Lira e Pacheco.
O forte discurso de Lira faz um discurso forte na quarta-feira, dia 24 de março, foi uma ameaça clara a Bolsonaro:
“Eu estou apertando hoje um sinal amarelo, para quem quiser enxergar. Não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país, se fora daqui erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que são muito menores que os acertos continuarem a serem praticados. Os remédios políticos no parlamento são conhecidos e são todos amargos, alguns fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação atingem uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta Presidência. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política. Mas, alerto que, dentre todas as mazelas brasileiras, nenhuma é mais importante que a pandemia. Mas, isso não depende apenas desta Casa. Depende também sobretudo daqueles que fora daqui precisam ter a sensibilidade de que o momento é grave, a solidariedade é grande, mas a tudo tem limite, tudo. E o limite do parlamento brasileiro, a casa do povo, é quando um mínimo de sensatez com relação ao povo não está sendo obedecido”.
Esta fala de Lira ocorreu logo depois do convescote de governadores amigos que Bolsonaro armou na terça-feira e que se realizou na quarta pela manhã, para discutir o combate à pandemia, um ano depois de seu início.
Para completar, outro ator que estava meio escondido voltou à tona nesta sexta-feira, dia 26, com a Butanvac, a vacina que será fabricada pelo Instituto Butantã. João Doria tenta se manter posicionado no turbilhão político, fazendo seu marketing pandêmico e se sustentando sobre a potência que são as instituições públicas científicas do estado de São Paulo, embora tenha mantido a política tucana de sucateamento da maioria delas e de não reposição dos funcionários aposentados, além da extinção da Fundap (ainda com Alckmin) e do Instituto Florestal, da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) entre outras. Vai tentar manter-se vivo politicamente como uma alternativa a Bolsonaro e a Lula, em um contexto ainda muito confuso por não sabermos exatamente o que vai ocorrer com a pandemia, se o bolsonarismo raiz vai aguentar calado o assédio do Centrão, e também sem sabermos por quanto tempo o próprio Bolsonaro sustentará esta postura mais constrangida que ele adotou desde o retorno de Lula há duas semanas.
E Lula? E as esquerdas?
Lula teve sacramentada sua vitória sobre Sergio Moro na última terça-feira na sessão da 2a Turma do STF, com o show de Gilmar Mendes e o voto bolsonarista de Nunes Marques contra a suspeição de Moro, um aceno aos lavajatistas relutantes. Moro é um juiz oficialmente suspeito e parcial e o processo de Lula volta à estaca zero.
As esquerdas devem continuar pressionado o Congresso Nacional pelo impeachment de Bolsonaro, por todos os seus crimes. Não é algo muito próximo no horizonte, mas esta semana mostrou – com a fala de Arthur Lira – que o impeachment pode se tornar uma bandeira do Centrão e aí, tchau, tchau Bolsonaro. É claro que aí há um jogo de retórica política, mas o aviso foi dado. O Centrão não vai aliviar com Bolsonaro, sobretudo se ele entender que ficar com Bolsonaro é pior para seus objetivos políticos.
Mas, o campo da esquerda precisa produzir seu programa. Ele não pode ser apenas um programa anti-Bolsonaro, de reconstrução da destruição provocada por ele, embora isso já seja muita coisa e vá dar muito trabalho. E, muito menos, não pode ser uma reedição do programa de 2002. O programa da esquerda precisa ir além. Cabe a nós, escrevê-lo.
*Wagner Romão é professor de ciência política na Unicamp e ex-presidente da Associação de Docentes da Unicamp.