O papel dos preconceitos

Imagem: Daniel Reche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Ao contrário do que supunham os iluministas, no século XVIII, os preconceitos não podem ser eliminados simplesmente à luz da razão

Ninguém escapa da vida corriqueira e das questões triviais que nos acompanham desde o momento em que acordamos, fazemos o desjejum, saímos de casa e trocamos impressões com pessoas sobre o tempo e o futebol. O dia a dia é a esfera onde os preconceitos cimentam o habitus. A rigidez com que encaramos situações novas revelam nossos valores diante de uma intervenção artística no metrô ou da triste mendicância nos semáforos, com cartazes sobre a fome no país da agroexportação.

A ultrageneralização acerca de quem confronta a normalidade é expressão do conformismo, na moral e nos costumes, que retroalimenta os sentimentos discriminatórios e desumanizantes na sociedade. Estereótipos formam o pensamento assimilado no meio social, que tantos orgulham-se de assumir.

A discípula preferida do filósofo Georg Lukács na Escola de Budapeste, Agnes Heller, considera que “a ultrageneralização é inevitável na vida cotidiana”, conforme escreve na coletânea sobre O cotidiano e a história. A dinâmica de atividades tão heterogêneas nas metrópoles ajuda a impor a régua do tradicionalismo na realidade líquida da pós-modernidade, por economia da psiquê. Os psicólogos, a isso, atribuem uma sabedoria prática para misturar-se à multidão sem chamar a atenção sobre si. A comodidade dita o pragmatismo para o senso comum, e o pertencimento.

Porém, autorizada por governos autoritários e totalitários, a moderação provisória cede à exaltação da ignorância e da brutalidade como forma de demarcar uma posição cartesiana, “clara e distinta”, para os que desafiam os padrões hegemônicos. Então, os cães que guardam o status quo acham-se no direito de estipular os procedimentos aceitáveis e punir os inaceitáveis, na exposição pública.

O sindicalista e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) de Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda, foi assassinado ao comemorar seu aniversário. Um bolsonarista reputou ultrajante o festejo com uma decoração em homenagem a Luiz Inácio Lula da Silva. O assassino investiu-se do poder atribuído: “Aqui é Bolsonaro”, rosnou. Poderia ter latido: “Aqui é Rede Globo”. A arrogância gerou o luto.

Com a meteórica ascensão da extrema direita, a atitude crítica própria das épocas dinâmicas frente as segregações foi substituída no período estático (2018-2022) pelas muitas invectivas verbais, que potencializaram os crimes de racismo, feminicídio, homofobia e transfobia. As palavras, de acordo com a linguística, colocam em ato o movimento seletivo contra a diversidade. O neofascismo com a lei dos fortes, o neoliberalismo com a superexploração dos trabalhadores e o neoconservadorismo com o supremacismo tradicionalista confluem na violência simbólica dissimulada e, no limite, para a violência física. A lógica de dominação e subordinação, assim, estimula os pequenos ditadores.

Etnocentrismo, meritocracia

O preconceito é o julgamento prévio, inflexível e carregado de negatividade sobre um indivíduo ou um grupo. O termo deriva do latim, prejudicium, prejuízo, mesmo em face do contraditório fundado em fatos. Na ciência política, designa o julgamento antecipado: cognitivamente regado por crenças; afetivamente crivado pela antipatia e aversão; avaliativamente capaz de invocar (ou não) medidas institucionais de proteção aos atingidos, a depender dos governantes. As generalizações respaldam as rejeições raivosas. “Os imigrantes envenenam o sangue do país”, diz Donald Trump, atiçando os Pit bulls. O preconceito não é inato, é aprendido socialmente. Precisa ser contido ética e legalmente. A denúncia das manifestações racistas aos órgãos judiciais contribui na redução das ocorrências.

O etnocentrismo é a ponta visível do colonialismo, a partir do ciclo de descobertas no século XVI. Os colonizadores europeus sempre se viram na condição paradigmática de civilizadores. Apelaram à noção de “perigo” para designar e assujeitar indígenas e africanos escravizados. Como sua cultura determinava o que era correto e verdadeiro, por óbvio, o mal ficou do lado de fora do continente. As categorias étnicas e raciais são construções sociais reatualizadas pelo populismo direitista. O temor da competição econômica confere sensatez à discriminação, no imaginário do conspiracionismo.

A meritocracia na sociedade burguesa fixa os parâmetros da inteligência e da competência para ultrapassar os critérios caducos do ancien régime, baseados no nascimento, na riqueza e nos títulos nobiliárquicos. O postulado da educação, visto como alavanca à mobilidade, conduziria indivíduos a uma posição mais elevada na hierarquia, segundo a fábula do alpinismo social – um mito. Os múltiplos condicionamentos ao desempenho escolar reproduzem a estratificação e obstaculizam a transcendência das deformações familiares, não compensadas pelo poder público. O círculo confina as alternativas ao alcance dos subalternizados. O regime meritocrático é uma adaptação sistêmica.

Para consolo, esse princípio se enquadra no artigo 6° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, pelo qual os cidadãos “podem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e inteligência”. Para sociólogos como Pierre Bourdieu ou Jessé Souza, o axioma incontestável no plano formal da (falsa) igualdade de oportunidades não passa de uma ideologia para justificar as desigualdades existentes, tornando-as legítimas para os vencedores e os perdedores. As capacidades são decididas no berço, que prenuncia os privilégios subsequentes. Diferentemente Marx aponta para uma avaliação, não de mérito, mas de atribuição: “A cada um segundo suas necessidades”.

Rebater falácias linguísticas

Ao contrário do que supunham os iluministas, no século XVIII, os preconceitos não podem ser eliminados simplesmente à luz da razão. O afeto do preconceito é a fé, não a ratio. A fé liga-se à satisfação de um ente particular-individual, e não ao genérico-humano que toca o desenvolvimento global da humanidade: a crise climática ou a precarização neoliberal que separa 1% dos cidadãos de 99% de subcidadãos, na espécie do Homo sapiens. A fé é feita pelo binômio do amor e do ódio. O ódio se dirige às pessoas que não creem no mesmo caminho, no caso, a redenção sem participação na luta de classes, situando-se em um patamar inferior de confiança. A intolerância emocional é consequência da fé, tanto maior quanto cresce o Estado-mínimo que deixa os pobres no abandono. A literatura de autoajuda e o ombro amigo do pastor são compensações, onde sequer Deus chega.

Os neopentecostais dedicam-se à salvação atomizada, com uma teologia do domínio. A esquerda se afigura o inimigo a ser batido, por priorizar a organização e a consciência coletiva da comunidade. O extremismo fortalece os preconceitos de classe, raça e gênero que restringem a autonomia para fazer escolhas e levam água para o moinho da magia. A sociedade não existe; apenas os indivíduos e as famílias. Os operários que se entregam a Silas Malafaia ou a Edir Macedo são manipulados, no tabuleiro dos preconceitos.

Para rebater a demagogia não basta a eloquência vazia. A recusa deve ser enérgica, tenaz, sem o tom conciliador dos discursos da “terceira via”, afogada na maré de 2008. O contexto beneficia o cassino financeiro dos juros altos, do Banco Central. A desindustrialização retira os empregos com carteira assinada e enche os templos no vale de lágrimas, das periferias.

Grandes personalidades recuperaram a boa política para intervir, na contemporaneidade, com uma práxis associada ao conceito de liberdade: Carolina Maria de Jesus, Salvador Allende, Simone de Beauvoir, Mandela. A política entendida como uma vocação para a liberdade, na exata proporção de sua implantação no campo social, exorciza os preconceitos e incentiva as relações de igualdade. Ao revés, a política no sentido experimentado pela extrema direita é incapaz de integrar os indivíduos em um Estado de bem-estar social, pois sobrevive das exclusões inferidas na cotidianidade e da degradação da convivialidade para garantir as iniquidades ilegítimas e indecentes, a exemplo das anacrônicas monarquias de hoje. Nem o modelo republicano conseguiu se universalizar, ainda.

O conservador-mor Edmund Burke refutou o iluminismo com uma doutrina irracionalista e fez da religião o alicerce da ordem moral e social, contra o ateísmo e o utopismo. A tese do opositor da Revolução Francesa é que só a tradição e os preconceitos, instrumentalizados por um projeto de poder, podem barrar as mudanças promovidas pelo povo enquanto sujeito da história.

Cabe hoje à distopia extremista de direita, com o aríete da necropolítica, esmagar todas as forças progressistas, desmontar os direitos emancipatórios conquistados, cavar o fosso intransponível entre classes, raças e gêneros, lucrar na sanha extrativista da mineração em território Yanomami, cruzar o rio Amazonas a pé, matar o último pássaro no ar empestado, vender água das geleiras polares nos Cafés de Marte.

Como no poema de Cecília Meireles, Fadiga: “Era um coração de incertezas, / feito para não ser feliz; / querendo sempre mais que a vida / – sem termo, limite, medida, / como poucas vezes se quis”. Esse é o capitalismo com o coração do livre mercado, extenuado demais para pedir bis.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Kátia Gerab Baggio João Carlos Salles Andrés del Río Gilberto Lopes José Luís Fiori Daniel Brazil Anderson Alves Esteves Chico Whitaker Bernardo Ricupero Carla Teixeira Chico Alencar Daniel Afonso da Silva Marcelo Guimarães Lima José Raimundo Trindade Gerson Almeida Matheus Silveira de Souza Tales Ab'Sáber Salem Nasser Marilia Pacheco Fiorillo Afrânio Catani João Adolfo Hansen Marilena Chauí Bruno Fabricio Alcebino da Silva Igor Felippe Santos Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco Fernandes Ladeira José Micaelson Lacerda Morais Marcelo Módolo Priscila Figueiredo Michel Goulart da Silva Ricardo Fabbrini Manuel Domingos Neto Henry Burnett Paulo Capel Narvai Antônio Sales Rios Neto Ladislau Dowbor Yuri Martins-Fontes Michael Roberts Eugênio Bucci Ronaldo Tadeu de Souza Lincoln Secco Francisco de Oliveira Barros Júnior Marjorie C. Marona Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Marques Bruno Machado Thomas Piketty Rubens Pinto Lyra Flávio Aguiar João Paulo Ayub Fonseca José Costa Júnior Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Jorge Branco Lucas Fiaschetti Estevez Bento Prado Jr. Milton Pinheiro Armando Boito Ari Marcelo Solon Rafael R. Ioris José Geraldo Couto Fernão Pessoa Ramos Celso Favaretto José Dirceu Remy José Fontana Ricardo Abramovay Liszt Vieira Luís Fernando Vitagliano Luiz Werneck Vianna Alexandre de Lima Castro Tranjan Henri Acselrad Leonardo Boff Sandra Bitencourt Tadeu Valadares Daniel Costa Caio Bugiato Alysson Leandro Mascaro Alexandre Aragão de Albuquerque Fernando Nogueira da Costa André Singer Luiz Renato Martins Claudio Katz Jean Pierre Chauvin Gabriel Cohn Ronald León Núñez Benicio Viero Schmidt Antonino Infranca Berenice Bento Gilberto Maringoni Boaventura de Sousa Santos Celso Frederico Eleutério F. S. Prado João Feres Júnior Jean Marc Von Der Weid Everaldo de Oliveira Andrade Eugênio Trivinho Osvaldo Coggiola Luiz Eduardo Soares Andrew Korybko Luis Felipe Miguel Denilson Cordeiro Francisco Pereira de Farias Marcos Silva Otaviano Helene Leonardo Avritzer Marcus Ianoni Fábio Konder Comparato Alexandre de Freitas Barbosa Maria Rita Kehl Renato Dagnino Dênis de Moraes Rodrigo de Faria Walnice Nogueira Galvão Airton Paschoa Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez Jorge Luiz Souto Maior João Lanari Bo Luciano Nascimento Eleonora Albano Elias Jabbour Ronald Rocha Mário Maestri Leda Maria Paulani José Machado Moita Neto Annateresa Fabris Eduardo Borges Paulo Sérgio Pinheiro Valerio Arcary Eliziário Andrade Dennis Oliveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Atilio A. Boron Michael Löwy Manchetômetro Samuel Kilsztajn Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonio Martins Ricardo Musse Tarso Genro Flávio R. Kothe Érico Andrade Paulo Fernandes Silveira André Márcio Neves Soares Leonardo Sacramento Paulo Martins Heraldo Campos João Carlos Loebens Carlos Tautz Julian Rodrigues Vladimir Safatle Juarez Guimarães Anselm Jappe João Sette Whitaker Ferreira Slavoj Žižek Vanderlei Tenório Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Antunes Luiz Bernardo Pericás Luiz Roberto Alves

NOVAS PUBLICAÇÕES