Jango: as múltiplas faces

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Por FLÁVIO LUÍS RODRIGUES*

Comentário sobre o livro de Ângela Maria de Castro Gomes & Jorge Ferreira

Escrever um livro sobre João Goulart não é tarefa fácil. Muitos estudiosos pesquisam sua vida privada e política e o que observamos é uma diversidade de opiniões a esse respeito.

No livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, percebemos essa variedade através dos testemunhos de pessoas que estiveram sempre a seu lado e de outros que não mediram esforços para derrubá-lo da Presidência. Portanto, o título do livro é muito apropriado: Jango: as múltiplas faces.

Com 275 páginas, o livro traz fotos registrando o período tratado pelas entrevistas de pessoas representativas da política nacional, como também daquelas que dividiam sua intimidade. Além dos depoimentos, o livro oferece outros documentos que integram a trajetória política de Jango. Também inclui um CD com discurso de João Goulart em 31 de maio de 1963, em Juiz de Fora.

Os autores são professores da Universidade Federal Fluminense e pesquisadores do Cpdoc/FGV e do CNPq, com várias publicações sobre o trabalhismo e o populismo – termo este que, aliás, consideram amplo e, ao mesmo tempo, limitado para explicar um período tão complexo como o de Jango.

O enfoque do livro é a vida pública de Jango, sua ligação com Getúlio Vargas, a adesão ao trabalhismo getulista e sua dedicação ao PTB. Através dessa trajetória política, identificamos o amadurecimento de um discurso representativo de um trabalhismo reformista e pragmático. Percebemos, também, o aglutinamento de intelectuais e jovens políticos a essa nova orientação política, como Darcy Ribeiro, Waldir Pires e Percy Penalvo, que continuaram mantendo estreita relação de amizade no exílio.

Os autores do livro seguiram um caminho diferente daqueles que muitos historiadores e jornalistas percorreram ultimamente (dar enfoque prioritário à vida privada de Jango). No livro, não encontramos informações íntimas, como a respeito da sífilis que contraiu na juventude, que prejudicou uma promissora trajetória como jogador de futebol, ou dos filhos que teve com empregadas domésticas. Suas saídas noturnas e seus encontros furtivos com mulheres não são mencionados. Isso ajuda a concentrar o debate na cena pública, evitando uma maledicência pouco frutífera, presente noutros estudos sobre o mesmo personagem.

Através do recurso da História Oral, os autores disponibilizam importantes depoimentos a respeito da pessoa pública de João Goulart, permitindo que o leitor tire suas conclusões sobre o investigado. Os testemunhos e os documentos não estão simplesmente dispersos, mas seguem uma seqüência cronológica que acompanha as mudanças políticas de Jango. Com a finalidade de tornar as entrevistas mais inteligíveis para o leitor, os autores fazem esclarecimentos constantes a respeito de acontecimentos citados pelos narradores.

Os vários testemunhos permitem uma pluralidade de opiniões, fundamentais para refletir a propósito das ações de João Goulart nas décadas de 1950 e 1960. Esta pluralidade seguida pelos autores evitou que caíssem em um perigoso anacronismo, freqüente quando se fala de João Goulart: explicar suas ações a partir de uma mentalidade do século XXI, em que a práxis política já não exige um comprometimento emocional e até mesmo físico com os projetos coletivos de sociedade. Desta forma, escaparam da cilada em que alguns historiadores e jornalistas caíram: banalizar a figura de Jango e simplificar demasiadamente suas ações. Por exemplo, o perfil de um Jango sem projetos, confuso, incompetente, irresponsável e indeciso. Para não falar do estereótipo do mulherengo, freqüentador de prostíbulos, alcoólatra, chorão e medroso.

Através da leitura do livro, percebemos as origens varguistas de João Goulart, importante para compreender o seu projeto político – o trabalhismo. Jango abraça o trabalhismo e se liga a Getúlio Vargas como o filho ao pai, ainda muito jovem: foi eleito deputado estadual pelo PTB aos 27 anos, em 1946; e Vice-Presidente da República nove anos depois! Antes de conhecer Vargas, em 1945, era um negociante de bois nos confins do Rio Grande do Sul, já formado em Direito e amante do futebol. Só.

O livro ajuda a entender a aproximação de Goulart com Getúlio Vargas e sua política no Rio Grande do Sul, primeiramente. Logo, Jango assume a presidência estadual do PTB e passa a fundar diretórios municipais no Estado. Nesse momento, desenvolve um discurso defendendo o trabalhismo, bem expresso em seu pronunciamento por ocasião do lançamento da candidatura de Getúlio Vargas a presidente em 1950: “(…) a chama do trabalhismo pregando o justicialismo e almejando um Brasil onde os trabalhadores também tivessem a oportunidade de viver como criaturas humanas (…). Um Brasil que não pertencesse somente aos poderosos (…) Um Brasil dos pobres e dos ricos” (p. 38).

Com o tempo, o trabalhismo de Jango se amplia e torna-se cada vez mais claro, afastando-se um pouco do personalismo e caminhando para a defesa de uma democracia ampla que passasse necessariamente pela revisão da Constituição brasileira. É o que encontramos em seu discurso de 13 de março de 1964: “Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura socioeconômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas (…)” (p. 201).

Muitos estudiosos qualificam Jango de ingênuo politicamente e de radical, ao defender a revisão da Constituição. Talvez eles estejam certos, pragmaticamente falando. Mas ao defender a revisão, naquele momento em que o poder econômico, juntamente com a embaixada americana, intervinham através do IPES e do IBAD para enfraquecer o trabalhismo reformista; em que os comunistas estavam na ilegalidade; em que vários oficiais de altas patentes conspiravam abertamente; em que se obrigava o Estado a pagar a indenização à vista e em dinheiro, para efeito da reforma agrária; em que havia a necessidade de reformar o Estado, mas a Carta Magna engessava qualquer iniciativa reformista; não estaria João Goulart sendo coerente com o projeto em que acreditava?

Em seu depoimento, Hércules Correia, então dirigente do Partido Comunista Brasileiro, traz uma informação surpreendente. No auge da crise, dia 31 de março de 1964, quando o General Amauri Kruel telefonou para Jango intimando-o a dissolver oficialmente a CGT e a prender todos os seus líderes, o presidente pediu para que Hércules Correia ouvisse a conversa através da extensão! Segundo Correia, “Jango não aceitou. Respondeu na hora, disse que não, que não ia prender, não ia fazer aquilo” (p. 225). Quem diria! João Goulart, tido como um demagogo populista, sem projeto reformista, estava reunido com comunistas (e de carteirinha!) nas suas últimas horas na Presidência! E enfrentando um poderoso nome militar!

Outro depoimento revelador que o livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira traz é o do general José Machado Borges, comandante do III Exército (Rio Grande do Sul), personagem que os livros sobre a crise de 1961 geralmente descrevem como submisso a Brizola, em que mostra certa altivez e mesmo distanciamento diante do então Governador: “eu não tinha nenhuma relação com o Brizola. Não me dava com ele e o achava um demagogo, como acho até hoje; nunca lhe dei importância. Mas quando houve aquela Cadeia da Legalidade em Porto Alegre, eu o chamei, porque ele começou a agitar o povo e os comunistas começaram a se infiltrar. Então peguei uma Divisão de Blindados que tinha em Bagé e levei para Porto Alegre para agir contra os comunistas se fosse necessário. E o Brizola sabia disso. Depois, resolvi tomar uma decisão política que evitasse uma guerra e foi o que fiz. Lá pelo dia 29 de agosto de 1961 tive que apoiar Brizola” (p. 146-7). O apoio do General a uma saída legal da crise foi fundamental para barrar o golpe militar em andamento.

Sobre a crise política e militar que se alastrou em março de 1964, Abelardo Jurema, ex-ministro da Justiça, comenta que os generais próximos a Jango propuseram a nomeação do general Lott para o Ministério da Guerra, já que, segundo suas próprias palavras, este era “um homem da disciplina, um homem do centro, um anticomunista. (…) Foi até por meu intermédio, e ele não aceitou” (p. 213). Por outro lado, o general Ernesto Geisel viu na grave crise militar um fator que poderia ajudar os conspiradores: “Quando se anunciou que haveria a reunião do Jango com os sargentos, alguns companheiros vieram a mim com a proposta de cercar o acesso ao Automóvel Clube com elementos de confiança e impedir a reunião. Fui contrário a isso, dizendo: ‘Deixem que se faça a reunião: agora, quanto pior, melhor para a nossa causa’. O clima tornou-se agitado e tenso, e muitos dos que estavam indecisos, como nós dizíamos, ‘em cima do muro’, decidiram-se pela revolução” (p. 226). Através da leitura do livro, temos também conhecimento das ações de outros militares graduados e de certa desarticulação destes em relação à deflagração do Golpe de 1964.

As opiniões de alguns entrevistados sobre a reação de Jango às movimentações do General Mourão, em 31 de março de 1964, são interessantes para entender a análise que João Goulart fazia da conjuntura política do momento.

Para Abelardo Jurema, então Ministro da Justiça, Jango não tinha compreendido ainda a gravidade da crise e a natureza violenta do golpe. Segundo suas palavras: “Eu acho que ele optou pelo laissez-faire. Deixou que a coisa fosse indo, talvez sem pensar que viesse a dar no que deu, em cassações etc. Ele estava pensando nas revoluções passadas, em que sempre havia uma composição. A maior revolução que houve no Brasil foi a de 1930, e tudo terminou em composição. Mas esta, não. Esta veio com cassações, com suspensão de direitos” (p. 214).

Raul Ryff, ex-Secretário de Imprensa da Presidência, também comunga desta tese: “E, segundo me disse o Brizola, Jango teria dito a ele lá no exílio: ‘Se eu soubesse que iam fazer essas violências todas contra o povo brasileiro, eu teria resistido de qualquer maneira’. Naturalmente ele imaginou que seria como aquela queda do Getúlio: caía e tal… ia para o exílio na fazenda, um exílio dentro do território nacional, um exílio político, e depois a coisa retomaria os seus caminhos normais. Mas não aconteceu isso. Foi um golpe de novo tipo” (p. 199).

Tudo indica que Jango queria seguir os passos de Getúlio, mas os tempos eram outros…

Jango: a múltipla face nos leva a concluir o quanto foi angustiante e humilhante o tempo que a família Goulart foi obrigada a passar no exílio. Segundo os relatos da filha Denise Goulart e da mulher Maria Thereza, o tempo custava a passar e as esperanças de um retorno ao Brasil não esvaeciam. Cada conversa, cada contato, cada informação eram acompanhados pela impaciência de saber se já haveria condições políticas da esperada anistia.

Em 1967, com a formação de uma Frente Ampla contra a ditadura por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e Jango, cresceram as esperanças, interrompidas, no entanto, com o AI-5, tornando a Frente ilegal. Além da tristeza de estar longe de sua terra, o exílio de Jango foi de poucos amigos e de desagradáveis problemas cardíacos.

Em seu depoimento, Maria Thereza Goulart comenta a preocupação da família com a saúde de Jango. Ele tinha dificuldades em seguir o regime aconselhado pelos médicos, de não fumar, não consumir comida gordurosa e perder peso. Ao contrário, Jango resolveu fazer um regime para emagrecer baseado na ingestão de gordura.

Em 27 de janeiro de 2008, a Folha de São Paulo trouxe uma matéria sobre um possível assassinato de João Goulart, através de envenenamento, que militares uruguaios, em parceria com brasileiros comandados pelo delegado Fleury, teriam realizado, misturando pílulas com cloreto de potássio (fornecidas pela CIA) às que Jango tomava para o coração. Parece uma história fantasiosa, mas que o historiador não deve refutar aprioristicamente. A investigação deve ser companheira do historiador, assim como a curiosidade. Mesmo que o historiador, no caso, não acredite em que Jango era um reformista, mas apenas inofensivo para os militares.

O livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira é muito oportuno atualmente, quando vemos um esforço para diminuir a importância política de João Goulart (e de seu projeto político), assim como assistimos a uma crítica escancarada ao Socialismo, que tanta importância teve no século XX, até mesmo por ter forçado o Capitalismo a se reformar.

*Flávio Luís Rodrigues é doutor em História Social pela FFLCH-USP.

Referência


Ângela Maria de Castro Gomes & Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 276 págs.

 

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