Por Eleutério F. S. Prado*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Mariana Mazzucato
Eis aqui, a princípio, uma frase bem enigmática: “o presente livro volta-se para um mito moderno: a criação de valor na economia”. Que livro? Trata-se de O valor de tudo: produção e apropriação na economia global, de Mariana Mazzucato. Aí, essa autora quer discutir criticamente as narrativas – é esse o termo que emprega – sobre a criação e a apropriação de valor na sociedade contemporânea. O tema foi central no passado, mas no curso do final do século passado e no começo do presente século, segundo ela, andou meio sumido da teoria econômica. De qualquer modo, julga que é requerido agora “um tipo de narrativa radicalmente diferente acerca de quem criou riqueza originariamente – e de quem, na sequência, a extraiu”.
Por que a criação de valor lhe parece um mito? Ora, é ela própria quem fornece a explicação. Ao usar essa palavra, faz referência a uma recomendação de Platão em A república, segundo a qual é preciso “vigiar os criadores de fábulas”. Logo, essa autora – e isso deve ficar claro logo de início – não trata a questão do valor econômico no campo da ciência moderna, mas da perspectiva de um discurso que se faz a si mesmo a partir de si mesmo, sem estar prisioneiro à realidade e ao real subjacente por dever de ofício. Daí a rememoração da mitologia e de sua vocação para a transmissão de lições morais. Ela não teme voltar à Grécia antiga, à uma época em que os valores eram disseminados supostamente por contadores de histórias. Ou seja, toma o ensino de Platão numa perspectiva pós-moderna já que, segundo pensa e como já deve ter ficado patente, tudo se resolve como uma questão de narrativas.
Mas por que retomar a questão do valor de um modo tão enfático? Mazzucato – assim como muitos outros economistas do sistema – parece estar desconsolada com os rumos atuais do capitalismo. Se este muito prometera por dois séculos, ainda que bem turbulentos e pontuados por crises menores e maiores, agora desaponta como pouco produtivo, apropriador e apenas preocupado com as dores dos ricos – e não com as dores do mundo. Ela, gostaria, portanto, de vê-lo mudado e revigorado como criador de riqueza para muitos. E, para tanto, julga que é preciso em primeiro lugar reconsiderar de novo a questão do valor econômico, para bem distinguir quem o produz e quem dele se apropria.
Pretende, portanto, renovar “o debate a respeito do valor que costumava estar – e que deveria estar – no cerne do pensamento econômico”. O seu objetivo, tal como fica claro pelo próprio título do livro – é fazer uma distinção entre as atividades que produzem valor e as que apenas dele se apropriam, com o objetivo de denunciar o rentismo como uma doença que enfraquece atualmente a alma – mas também, em consequência, o próprio corpo – do sistema econômico. Aquele sistema que Adam Smith vira nascer e florescer incrivelmente no último terço do século XVIII parece andar agora devagar e titubeante como um velho cansado; assim, não tem se mostrado mais capaz de produzir difundida prosperidade mesmo no centro do sistema globalizado. Aí, o que se vê, como aponta, é que “a desigualdade aumenta enquanto que o investimento na economia real diminui”. Ou seja, está-se diante de uma estagnação concentradora de renda.
A distinção entre atividades produtivas e improdutivas, entre criação e extração, e mesmo destruição, de valor lhe parece crucial porque quer fazer, a partir dela, uma crítica do capitalismo contemporâneo. Mais do que isso, porque deseja reorientá-lo para que sirva ao bem comum e não ao enriquecimento de poucos.
Mas, afinal, o que é valor em seu entendimento? Segundo ela, “o valor (…) em essência, é a produção de novos bens e serviços”. Como os serviços são bens consumidos no próprio momento em que são produzidos, em síntese, valor para ela é o mesmo que bem. Tem-se, assim, menos do que uma definição, uma mera tautologia. Mas isso não é tudo: como o termo “bem” é sinônimo do termo “valor de uso”, essa autora de sucesso identifica o valor econômico com o valor de uso.
Porém, como fica determinado aquilo que é valor de uso para os seres humanos num determinado momento histórico? Torna-se um valor de uso tudo o que é aceito como tal, tudo aquilo que satisfaz ou parece satisfazer necessidades, provenham elas, como diz Marx, do estômago ou da fantasia. É, pois, a prática social efetiva, material, concreta, que faz as coisas se tornarem valores de uso – e não meramente histórias ou narrativas.
Mazzucato, ademais, afasta-se também da tradição da economia política de outro modo. Contraria Adam Smith, já que esse autor diferencia “bem” de “mercadoria”, pois mercadoria é um bem econômico produzido para o mercado – e não para consumo próprio. É por isso que ele diz da mercadoria que ela é valor de uso e valor de troca e passa a investigar o que determina o valor de troca das mercadorias em geral – algo que acontece nos mercados, mas que segue uma lei oculta que ele procura descobrir por meio de uma teoria do valor. Smith, portanto, se situa no campo do saber científico ao tratar da questão do valor econômico. Ele investiga a objetividade social sem ficar apenas no modo como ela aparece.
De qualquer modo, essa autora quer, sim, retomar a questão do valor em economia política. Para ela, não é apenas problemático, mas imoral confundir a produção de valor com a extração de valor. “O seu propósito” – assevera – “é mudar o estado das coisas”, começando logo – como se vê – por afirmar que é preciso fazer uma grande revolução na compreensão de uma palavra. Pois, “a maneira como a palavra ‘valor’ é usada na economia moderna fez com que ficasse cada vez mais fácil para as atividades de extração de valor se mascararem como atividades de criação de valor”.
Ora, o deslocamento dessa questão do terreno duro da objetividade social para o campo fluido da filosofia moral, mas ainda no interior do imaginário compartilhado socialmente, tem fundas consequências. Pois, como se sabe, esta última também não se liberta da aparência das coisas – ao contrário, ela labora subjetivamente. De qualquer modo, é assim que pode distinguir “rendas” de “lucros” por meio de juízos morais: rendas, para ela, são receitas não merecidas e lucros são receitas merecidas. É claro que essa distinção – mesmo em sua perspectiva – não pode se fundar apenas num corte arbitrário, mas, para além disso, deve estar embasada numa compreensão de valor que independa da mera opinião e que tenha algum fundamento no próprio capitalismo.
De qualquer modo, a partir de seu modo de pensar, é preciso concluir que os ganhos recebidos por capitalistas industriais são ganhos legítimos, mas certos ganhos recebidos pelos capitalistas financeiros, não. Ora, que conteúdo deve ter uma concepção de valor para que possa subsidiar essa afirmação? Dizer apenas que os primeiros produzem valor, mas os segundos não, não se afigura como suficiente – ainda que pareça apontar para algo relevante. Há, ademais, outras dimensões desse problema que quer enfrentar, as quais se deve explicitar antes de clarificar melhor como ela procura resolvê-lo.
Eis que Mazzucato considera o Estado como o principal indutor e mesmo o grande produtor das inovações tecnológicas nas nações capitalistas. Como são fontes do progresso na produção de bens, o Estado deve comparecer em sua compreensão de mundo como produtor de valor. Em consequência, contra os defensores impenitentes do mercado, o poder central figura em seu estudo como orientador dos mercados, compensador de desigualdades e um guardião do progresso. Como a questão do valor foi por ela posta no interior do discurso que se gesta na sociedade – e não no terreno da investigação científica sobre uma realidade posta historicamente –, ela vai concluir, explicitamente contra os economistas clássicos e Marx que descobrem valor apenas na produção de mercadorias, que “o Estado pode contribuir para a ideia de valor”.
Mas há também para ela o problema da produção de danos sociais – aquilo que em inglês é chamado de “bads”. Como fica, por exemplo, a geração de poluição que ocorre frequentemente junto com a produção de bens? Para os economistas clássicos, a poluição é um ônus social que é gerado porque, ao predar a natureza, o capitalismo economiza trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias. Trata-se de uma vantagem que é obtida de graça pelos capitalistas e que lhes permite manter mais baixo o valor e o valor de troca corrente das mercadorias. Eis que o seu objetivo precípuo é o lucro que provém da propriedade privada dos meios de produção e não o bem-estar da sociedade.
Para os economistas neoclássicos, como a poluição não é apreendida como tal no computo do custo de produção privado, ela não parece afetar diretamente o valor de mercado dos bens e serviços. Este, segundo ela, é determinado por meio da interação entre oferta e demanda. Entretanto, trata-se para eles de um dano social que pode afetar indiretamente os preços. É tratada, por isso, como uma externalidade – um gravame não apreçado, mas que distorce os custos privados e que afeta os custos sociais da produção senão no curto, pelo menos no longo prazo. De qualquer modo, Mazzucato critica e desqualifica essa teoria: “ao invés de ser uma teoria do valor que determina preço, tem-se uma teoria de preço que determina o valor”.
Mas, para Mazzucato, essas duas maneiras de pensar os preços se mostram deficientes. A avaliação econômica ocorre no âmbito do mundo da vida e deve ter como atributo essencial ser moralmente justa. Em consequência, o seu julgamento da contabilidade social feita atualmente nos países capitalistas é mais severo.
Eis o que escreve: “uma nova fábrica valiosa do ponto de vista econômico, mas poluente, poderá ser vista como não valiosa”. Ou seja, mesmo se o sistema de avaliação extraído do próprio sistema funcionante por meio dos mercados trata essa fábrica como valiosa, uma norma avaliadora decente deveria afirmá-la como não valiosa. Tudo se passa como se fosse, assim, apontado um déficit de racionalidade no modo de avaliação que respeita aquilo que os próprios mercados apresentam. Eis que tomam os preços como meros espelhos do valor das coisas, quando, na verdade, eles próprios deveriam refletir uma avaliação mais justa.
É fora de dúvida que essa autora não deseja pensar por meio do conceito, da exposição do concreto pensado. Outro, pois, é o seu caminho. Note-se, porém, o seguinte: se a realidade é já sempre simbólica como parece pensar, ela foi posta por meio de uma práxis material e, por isso, contém em si não apenas a sua verdade objetiva como também a sua própria ideologia. E é essa realidade, com sua essência e aparência, que deve ser investigada e exposta com o máximo rigor conceitual. Ora, ela não pensa assim. Recusa o pensamento positivo para cair numa suposta autonomia construtivista da linguagem.
Após apresentar as teorias do valor objetivo da economia política clássica e as teorias do valor subjetivo das ciências econômicas com certo detalhe, Mazzucato precisa e quer retomar a questão de outro modo. Mas ela também se vale da velha distinção entre atividades produtivas e atividades improdutivas de valor. Posto isso, ela precisa passar a enfrentar o problema de dizer o que se deve colocar nas primeiras e o que se deve pôr nas segundas. Um processo de avaliação tem de ser criado, já que aqueles fornecidos pelas teorias econômicas clássica e neoclássica, mesmo se se pretendem assentados na realidade, lhes parecem insuficientes.
A crítica da economia política também falhou, segundo ela, porque considerou as atividades do Estado como improdutivas de valor. Em sua concepção, o valor não pode ser pensado como algo que é criado no âmbito da empresa privada, mas como uma decorrência de um processo coletivo que envolve múltiplos atores nos setores públicos e privados.
Grosso modo, é disso tudo que trata a parte principal do livro; ela é precedida de uma apresentação sumária das “histórias sobre criação do valor”. Nos dois primeiros capítulos, expõe as duas grandes correntes da teoria do valor mencionadas. No terceiro, ela discute criticamente como o sistema da contabilidade nacional define as atividades econômicas produtivas. Nos capítulos quatro, cinco e seis, examina o fenômeno da financeirização, o que pressupõe uma solução do problema da separação entre as atividades produtivas e improdutivas. No capítulo sete, ela trata do valor posto supostamente pela geração de inovações. No capitulo oito, ela pergunta “por que o setor público é sempre descrito como lento, maçante, burocrático e improdutivo”. Finalmente, no capítulo nono, trata da “economia da esperança”, em que “convoca a economia para uma missão”, qual seja ela, construir “um futuro melhor para todos”.
Agora é preciso examinar algo que ela própria diz no começo da obra e que se afigura como espantoso à princípio: “este livro não procura defender uma teoria correta do valor”. Ora, se não apresenta uma teoria do valor, como pode fazer a crítica do capitalismo contemporâneo, dizendo que ele privilegia atualmente as atividades que não produzem valor? Mas isso tem uma explicação e ela já foi esboçada no começo desta resenha que não se exime de ser crítica. Veja-se, primeiro, o que ela diz em sequência: “em vez disso, [o livro] busca fazer com que [a questão valor] volte a ser uma área de intenso debate, relevante para os tempos de turbulência econômica em que nos encontramos. Valor não é algo determinado, inequivocamente do lado de dentro ou de fora da fronteira da produção: é algo moldado e criado”.
“Criado e moldado”? Sim, implicitamente, ela quer dizer que o valor é criado e moldado numa prática social que foi previamente estruturada por meio instituições. E só depois de criado, ele pode ser distribuído e apropriado por meio dos mecanismos próprios do sistema econômico. Apoiando-se em Karl Polanyi, Mazzucato escreve, então, que os “mercados são entidades profundamente enraizadas nas instituições sociais e políticas”.
Os mercados são, para ela, processos socialmente complexos, os quais surgem da interação de muitos atores, dentre os quais está incluído o próprio governo. Mas o que se encontra por trás da criação das instituições? Um mundo da vida que se forma e se reforma continuamente por meio das interações linguísticas, o qual as pessoas produzem e compartilham por meio de sua subjetividade. Se se deseja, portanto, mudar o mundo econômico, deve-se começar segundo ela por mudar a compreensão de valor.
Para ela, pois, é preciso repensar essa questão. Julga, então, que o valor não é nem objetivo, isto é, criado na prática material dos seres humanos na atividade produtiva, nem subjetivo, isto é, algo que se dá na cabeça psicológica dos indivíduos como tais. Ele acontece como criação da prática linguística em que todos os humanos estão enredados desde terna idade, quando aprendem a falar, quando entram na ordem simbólica. Em consequência, o valor, para ela, é que o que é posto no mundo da vida social como valor.
Em consequência, dá enorme importância à “performatividade” do discurso sobre o valor. É preciso ver que “o modo como falamos sobre as coisas afeta os comportamentos e, por conseguinte, a forma como teorizamos”. Para mudar o mundo, pois – segue-se logicamente – é só necessário mudar como se fala dele, basta fazer uma revolução no mundo das significações, de tal modo que essa revolução se torne uma “profecia autorrealizável”. Por respeito à democracia – meritório, mas equivocado –, ela quer simplesmente pôr a questão do valor econômico no campo da discussão e da comunicação entre as pessoas. Porque, para ela, é assim que o mundo se transforma.
Eis o que diz ela própria: “uma vez que a narrativa sobre a criação do valor seja corrigida, as mudanças podem vir…”. Pois, “nesse novo discurso (…), os dois setores público e privado, e todas as instituições intermediárias, se nutrem e se reforçam uns aos outros na busca do objetivo comum da criação do valor econômico”. Diz, mas é preciso duvidar: é assim mesmo que o mundo se transforma?
Nesse momento, é preciso ver que os valores de uso – ou seja, os valores, para ela – não podem ser valores de uso em geral, ou seja, para todos aqueles que convivem numa determinada sociedade. Devido a sua própria natureza, os valores de uso não podem ser universais; ao contrário, dependem sempre da avaliação da utilidade das coisas, que é sempre privada e individual. Assim, o que é em efetivo valor de uso para alguns não será certamente valor de uso para outros. Logo, não é logicamente possível encontrar aquilo que ela procura, não só numa sociedade altamente dividida como o capitalismo, mas também em qualquer outra. Aquilo que vale como valor nesse sentido permanecerá para sempre como questão polêmica isenta de qualquer critério de demarcação.
Ademais, uma mera separação entre o que tem valor e o que consiste num dano não vai muito longe. Valor e dano, nessa perspectiva, dispõem o mundo econômico sob os critérios do bem e do mal, ajuízam o que produz bem-estar e o que gera mal-estar. Pode permitir a expressão de insatisfação, exaltações e condenações, mas não produz uma crítica radical do modo de produção existente. Para falar como lacaniano, o conceito de valor que ela julga necessário para mudar a sociedade deveria ser da ordem do simbólico, mas o conceito de valor que usa – e que identifica com o de valor de uso – é da ordem do imaginário, mesmo se não é individualista. O seu projeto, portanto, é um beco sem saída.
Como se vê, está-se diante de uma teorização que não quer ser ciência do social tal como ela existe e foi posta historicamente. Logo, ela não merece, por isso, grande atenção dos críticos do capitalismo, apesar de se pautar por um humanismo que não se pode dispensar em última análise. “O valor de tudo”, isto é, o livro de Mazzucato – na tese aqui traçada –, não vale quase nada como contribuição à compreensão ou à crítica do capitalismo. Não deixa ser, entretanto, mais um protesto contra a austeridade e a financeirização.
Falta-lhe uma perspectiva científica que dê conta desse objeto complexo, que favoreça uma práxis crítica não apenas reprodutora do existente, mas verdadeiramente transformadora. Sem uma teoria do valor explícita, internamente consistente e que se remente ao capitalismo realmente existente – mesmo que possa estar errada em princípio como qualquer teoria científica –, não se pode distinguir as atividades improdutivas das produtivas e, assim, a produção da mera apropriação, não se pode criticar o capitalismo contemporâneo. E nem ser capaz de transformá-lo.
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade)
Publicado originalmente no site Outras Palavras.
Referência
Mariana Mazzucato. O valor de tudo: produção e apropriação na economia global. Tradução: Camilo Adorno e Odorico Leal. São Paulo, Portfolio Peguin, 2020, 416 págs.