Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*
Reflexões sobre o Brasil atual.
Peço licença ao leitor para escrever sem determinadas amarras de linguagem que, muitas vezes, beiram a licença poética para descrever as agruras passadas pela maioria da nossa população brasileira que está sem norte. A narrativa do governo federal de confronto ao vírus da COVID-19 pelo poder messiânico do líder que salvará a nação por sua capacidade psíquica de poder emanado de alguma força inexplicável provinda de forças para além de nossa compreensão, tão comum na história desse país, revelou-se uma falácia de proporções colossais. De fato, de acordo com as notícias divulgadas por todos os meios de comunicação nos últimos dias, o que temos é uma cena política que beira ao dantesco de tão absurda, mesmo para os padrões de um país que nunca fez questão de levar a sério essa tão propalada “democracia” em solo nacional.
A ignomínia campeia pelos recorrentes eventos públicos propiciados pelo presidente Bolsonaro nas suas aventuras psíquicas-quixotescas em viagens/passeios país afora promovendo aglomerações estapafúrdias para o momento em que vivemos. Porém, essa mesma degradação social também se espraia nos eventos privados entupidos de gente das mais variadas classes sociais e idades. Pelos fins de semana ao longo do último ano, as festas e cassinos beiraram à promiscuidade entre o invisível e o visível, ou seja, entre o vírus e o contato entre corpos e gotículas de saliva em salas apertadas e lotadas de pessoas desmesuradas. Fora os bailes!
Nesse sentido, estamos numa tempestade perfeita, qual seja, a união entre uma pandemia com um vírus que se revelou muito mais sorrateiro e inclemente do que esperávamos e um governo desajustado, psicologicamente falando, com sua liderança-mor tendo delírios freudianos no seu “superego” de hipnotismo das massas. O último caso que foi levado ao extremo sabemos onde o mundo foi parar. É lógico que o momento é outro, que o Brasil está longe de ser uma Alemanha da segunda guerra mundial e que as pressões internas ainda demonstram haver algum tipo de sanidade coletiva. Mas é preciso ficar atento pois, como diz o ditado, “há algo de podre no reino da Dinamarca”, e essa podridão trafega no centro do poder federal. Assim, é fato que a última semana antes do 31/03/2021 resvalou bem perto para uma tentativa de golpe institucional. Se não fosse a negativa de alguns chefes militares cientes do papel das forças armadas de acordo com a Constituição Federal, estes mesmos já prontamente afastados, além da união da maior parte do complexo midiático do país contra tal evento, talvez já estivéssemos lamentando a vigência do reinado de um demiurgo carismático.
O já saudoso psicanalista italiano Contardo Calligaris não gostava do termo “holocausto”. Para ele, esta expressão passava uma ideia de sacrifício, talvez algum tipo de expiação. Para tudo o que ocorreu na época, ele preferia o significado de “genocídio”, por indicar, precisamente, a vontade deliberada de matar: assassinato. Pois bem, o interessante é que este autor, depois de beber dos ensinamentos de Hannah Arendt, especialmente após o julgamento de Adolf Eichmann, Tenente-Coronel da SS e responsável logístico pelas atrocidades nos campos de concentração nazista, corroborou com o entendimento dela (Arendt) sobre o quão perigoso pode ser uma sociedade em que as pessoas banais decidem parar de pensar. Nos termos de Calligaris: “há algo na dinâmica de nossa sociedade normal que faz com que parar de pensar seja uma tentação constante, como se qualquer desculpa (ideológica, por exemplo) fosse boa para fugir da solidão, que é a condição do diálogo moral de cada um com sua consciência” (1).
Ora, não é justamente essa falta do diálogo moral de cada um com sua consciência que está faltando hoje no Brasil? E mais, mesmo entendendo a tese de Calligaris sobre a predisposição coletiva dos seres humanos em abdicar da “subjetividade da gente”, não estaria este pensador equivocado ao subestimar o poder do líder carismático que professa as determinações adequadas ao anseio das massas desejantes? Existiu, historicamente no nosso país, algum tipo de dominação das massas que perdurasse o tempo suficiente para ser consagrada como paradigma político-social, sem o consentimento de uma minoria mais abastada e/ou a submissão de uma grande maioria sem eira, nem beira?
Explico melhor: não é que Calligaris esteja errado na sua tese sobre a paixão dos seres humanos em ser instrumento do coletivo que, ao fim e ao cabo, delineia os caminhos que todos devem escolher. Obviamente, esse instrumento coletivo depende dos caminhos políticos tomados ao sabor dos ventos ideológicos no instante observado. O que talvez falte para melhor entendimento desse pensador é o lugar original do que Freud chamou de “ideal do eu” nas façanhas do carisma. Se olharmos com binóculo para este pedaço de terra chamado Brasil, a autoridade dos governantes perpassou, na maioria dos momentos mais democráticos, pelo poder teológico do líder carismático, no sentido platônico. O fracasso, ou enfraquecimento dele, está sempre correlato com a perda do arbítrio.
Entretanto, faltou incluir um último ingrediente entre essas duas pulsões (carisma x arbítrio), qual seja, o fetiche. Notem, antes de mais nada, que tanto o carisma, quanto o arbítrio são categorias individuais. O fetiche, porém, é ambíguo, pois tanto pode ser fruto de uma psiquê do animal humano, como pode generalizar-se, ou degenerar-se, para todo um coletivo. Nessa toada, o sistema produtor de mercadorias, através de sua nova roupagem neoliberal, foi mestre em amalgamar às duas pulsões anteriores que vigorava no antigo mundo até o entreguerras, a nova (velha?) pulsão ambivalente da procura desmedida pelo consumo subjetivado.
Realmente, com o programa de Bem-Estar social indo a todo vapor na Europa Ocidental e o bloco soviético dando sinais de esgotamento do modelo socialista planejado, era preciso alargar o poder dessa tríade mundo afora, especialmente nos países periféricos (2), visando estender o poderio do modelo econômico capitalista das principais potências mundiais, o qual se tornaria triunfante até o atual momento histórico, junto às elites locais que ardiam de desejo pela aceleração do novo tecnológico. Em outras palavras, era preciso incluir mais gente no rol dos desejos de consumo inescapáveis do brilho de máquinas e pílulas alucinatórias de delegação das vontades individuais e coletivas nas bordas do sistema neoliberal: a globalização definitiva.
Mas como acrescentar um amplo contingente de seres humanos até então às margens de um modelo por si só centralizador das principais benesses que o capitalismo proporciona aos donos da necropolítica, nos termos de Achille Mbembe (3)?
Aqui voltamos ao Brasil de hoje, visto que essa necropolítica identificada pelo pensador camaronês caiu como uma luva em território nacional. É de conhecimento público, só não enxerga/entende quem não quer/lê, que o golpe parlamentar contra a ex-presidente Dilma Rousseff pavimentou a principal via de acesso para o atual governo autoritário, de claro viés neofascista. Uma espécie tupiniquim da ”Via Appia Antica” romana dos nossos tempos. De fato, toda a rede ainda bastante precária de solidariedade construída pelo modelo lulista de governo nos trezes anos de hegemonia (4) minguou em apenas 5 anos após o PT apear do poder. Junto com a já famigerada “Lava-Jato”, destruiu o tecido social que se formava em torno de uma sociedade esperançosa por um futuro melhor, em nome do velho conceito já explicado por Albert O. Hirschmann na “retórica da intransigência” (5).
A saída encontrada pela nova(velha?) classe dirigente foi, simplesmente, aprofundar ainda mais o país na irracionalidade do desejo consumista. O fetiche do fetiche. É claro que ninguém aqui ou acolá esperava uma pandemia dessas proporções. Esta, aliás, tem sido a grande adversária desse governo autoritário, posto o estado anestésico da nossa sociedade. Primeiro, por causa da campanha difamatória descrita acima contra os governos do PT. Segundo, pela confusão mental instalada pelo governo federal negacionista x os cientistas. Todavia, há de se ressaltar a tenaz resistência da ala neoliberal do governo, passando a “boiada” sempre que o caos dá um refresco. Sabem as hienas políticas que, como outrora, passado o banquete das privatizações e da devastação ambiental, poderão usufruir do luxo roubado em bordéis para “pessoas de bem” mundo afora, “ceteris paribus” (uma máxima da ciência econômica que peguei emprestado), ou seja, para aqueles/as que sobrarem vivos finda a pandemia.
Se Freud fosse vivo hoje, é possível que ele mesmo não acreditasse no horror que previu. O governo bolsonarista prima pela deselegância midiática em direcionar a população para o abate. A “boiada” de que já falamos também é o povo sendo estimulado para morte através do estímulo promovido pelo sistema produtor de mercadorias para viver e gozar sem limites, pois a ideia massificada pelo mesmo é a de que consumir sempre é bom, independentemente do momento. Nos termos de Ab´Sáber: “O que foi feito no Brasil é que as imensas pulsões destrutivas do bolsonarismo, não podendo destruir inteiramente tudo o que desejam – a esquerda, as representações minoritárias, as universidades, os artistas, os direitos civis – transbordaram para destruir toda a sociedade” (6).
Destarte, inverte-se a lógica do bem comum para o triunfo do bem individual. No Brasil, assim como na grande maioria dos países periféricos, estimula-se o aperfeiçoamento capitalista do viver para já, para ontem, como se o amanhã não mais trouxesse nada de bom, a bem da insanidade consumista de bens que, no fundo, não têm qualquer valor real. Não admira a preocupação crescente com o possível aumento de suicídios nessa pandemia nos países mais submissos ao “tacão de ferro”, na letra de London (7).
Entrementes, a pior derrota para o governo Bolsonaro aconteceu fora das nossas fronteiras, a saber, a derrota eleitoral de Trump. Como se sabe, Bolsonaro apostou todas as suas fichas no cassino das “fake news” trumpista e perdeu. Está isolado como pária mundial, haja visto que até Putin fez o movimento correto de se submeter à ciência nesse momento. O que dizer da chacota do primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, chamando o presidente brasileiro de palhaço na internet, em um programa de humor israelense, justamente por negar o potencial de infecção e morte da COVID-19? Como negar correlação entre essa forma não anteriormente deliberada, mas invisível de matar, com a forma invisível de matar do holocausto (invisível no sentido de longe, fora das cidades, em grandes campos de concentrações), porém deliberada?
Não é fácil encontrar autores que tenham o correto discernimento sobre o mundo em que vivemos e a história na qual estamos inseridos. O filósofo romeno Emil Cioran é um deles. No seu livro “História e Utopia” (8), afirma que este mundo não é maravilhoso. Além disso, lembra ao amigo também filósofo de mesma nacionalidade, Constantin Noica, que a democracia (parlamentar) nada mais é do que uma superstição. Porém, e apesar de odiá-la na sua alvorada intelectual, soube identificar as nuances dos dois tipos predominantes de sociedade da sua época, as quais chamou de “sociedades intoleráveis”: a burguesa liberal do ocidente, da qual fazia parte, apesar das suas múltiplas queixas; e a sociedade planificada soviética. Ambas retiraram dos seres humanos duas das principais forças revolucionárias: a utopia (URSS) e a imaginação (burguesia ocidental).
Quem dera que nosso problema atual fosse “apenas” o resgate da utopia e/ou da imaginação libertária. O Brasil de Bolsonaro é reacionário, colonial, racista, elitista e desagregador. “Nada de novo no front”, diria o escritor alemão Erich Maria Remarque. Estamos há 130 anos “bestializados” (9) com o tipo de política feita no país. Entretanto, não podemos mais esperar por algum messias (vale o trocadilho), ou por algum novo caçador de marajás. Em breve o país terá mais de 5.000 mortes diárias pela COVID-19. A carnificina cordial [perdoe-me HOLANDA (10) pelo sacrilégio do neologismo] a que o povo brasileiro se acostumou ao longo da sua história – dos povos originários daqui; dos negros arrancados da sua terra natal a ferro e fogo; dos pequenos agricultores pelas oligarquias rurais, e depois pelo agronegócio; do trabalhador urbano descartado pelo progresso tecnológico – não conseguirá se repetir no tipo de carnificina da moda do atual presidente, salvo se for para restar comprovado o que em nenhum outro momento da nossa história foi: o genocídio. Mas, e daí?
*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania na Universidade Católica do Salvador – UCSAL.
Notas
(1) https://www.geledes.org.br/meu-vizinho-genocida-por-contardo-calligaris/;
(2) Quem tiver interesse em aprofundar esse tema, sugiro Robert Kurz, no seu consagrado livro O Colapso da modernização, Editora Paz e Terra, 1992. Autor referência para a crítica do valor-mercadoria abstrato, nem sempre tão reconhecido e mencionado como merece;
(3) MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo. n-1 edições. 2018.
(4) Pode-se contestar ou não esse modelo, o qual, de fato, deixou a desejar em muitos aspectos, mas foi evidente o ganho de cidadania para uma parcela significativa da população menos abastada do país. Francisco de Oliveira tem uma das críticas mais pertinentes e ferozes ao “lulismo”, no seu livro Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo. Boitempo. 2018, entre outros.
(5) HIRSCHMANN, Albert O. A retórica da intransigência. São Paulo. Companhia das Letras. 1992. Aqui, num breve resumo, o autor identifica/explica o fenômeno das elites de mudar o que está travando a continuidade do seu “status quo”, e até sua expansão, com uma retórica para a população sobre algum benefício novo, sempre que se vê acuada, que não vai dar em nada;
(6) https://revistacult.uol.com.br/home/bolsonaro-morte-e-festa-no-brasil/;
(7) LONDON, Jack. O Tacão de Ferro. São Paulo. Boitempo. 2011.
(8) CIORAN, Emil. História e Utopia. Rio de Janeiro. Rocco. 2011.
(9) CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo. Companhia das Letras. 1991.
(10) Para quem ainda não leu ou não entendeu o conceito do “homem cordial”, basta ir direto na fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 1995.