Obsolescência da ONU

Sede da ONU/ Reprodução Telegram
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

A ONU como organização extraterritorial não é mais capaz de manter o mundo em condições adequadas para a vida prosperar

Se a ONU, caro leitor, não conseguir um meio de parar esse massacre de Israel contra os palestinos, temo que ela tenha se tornado obsoleta de uma vez por todas. A questão não é que não existam esforços para barrar o genocídio e o plano de Israel de expulsar os palestinos da região. O problema está no modelo adotado desde o fim da Segunda Guerra Mundial de existir apenas cinco países no mundo com o poder de vetar, unilateralmente, qualquer assunto que precisar da aprovação unânime deles.

Resta mais do que claro que no atual mundo multipolar, com novos atores em ascensão e uma grave crise humanitária que se alastra pelo globo, não é mais possível que apenas cinco países tenham o cadeado das decisões mais importantes e que mais afetam todos os seres vivos do nosso planeta. Nesse sentido, a guerra é só um dos diversos temas polêmicos que estão a nos assolar.

Podemos citar aqui também a questão climática, o drama interminável dos refugiados e dos migrantes mundo afora, a aceleração desenfreada da tecnologia e seus efeitos malévolos para o mundo do trabalho, o potencial para novas pandemias devido à destruição do meio ambiente, entre outros.

Nesse diapasão, vamos correlacionar nesse breve texto apenas a questão do conflito bélico entre Israel e o Hamas por uma questão de espaço. Antes disso, uma breve digressão: se voltarmos um pouco no tempo, exatamente nas chamadas “Guerra do Golfo”, “Guerra da Bósnia” e “Guerra do Kosovo”, durante toda a década de 1990, é possível verificar a fragilidade desse modelo dos cinco países “senhores das armas”.

Mesmo antes, como na invasão da Hungria pela então União Soviética ou na famigerada Guerra do Vietnã – para não falar nas guerras regionais na época da descolonização africana e asiática – quando um desses cinco países queria entrar em conflito, os outros se calavam, apoiavam ou simplesmente vetavam alguma medida mais humanitária, porém esse veto nunca evitou na prática a intervenção militar, se isso fosse da vontade desses países.

Nessa toada, o mundo assiste hoje uma reação mil vezes desproporcional de Israel ao ataque (quase) suicida do Hamas a algumas cidades que fazem fronteira com a faixa de Gaza. É verdade que alguns foguetes foram lançados mais longe, até Tel Aviv, mas foram poucos que chegaram ao seu destino. A verdade é que o Hamas mordeu a isca de vez lançada por Israel.

De fato, desde que a ala mais conservadora dos sionistas voltou com toda a força ao poder em Israel nos últimos anos, a narrativa de domínio judaico sobre a região outrora ocupada pelos palestinos se intensificou, bem como o incremento dos assentamentos de colonos judeus em terras que não deveriam ser ocupadas por eles. Sem força militar comparável a Israel, nem voz política no cenário internacional que consiga barrar essas ações condenáveis, o que restou aos palestinos? Alguém que acompanhe minimamente os acontecimentos do mundo foi pego de surpresa com as ações do Hamas? Sinceramente, acredito que não. Talvez a surpresa tenha sido o êxito inicial e as atrocidades cometidas pelos integrantes dessa organização que a própria ONU não caracteriza como terrorista.

Milhares de crianças palestinas já morreram devido aos bombardeios incessantes de Israel na Faixa de Gaza. É duro ver um genocídio desses e ainda ter que engolir o discurso da grande mídia de que Israel tem o “direito de se defender”. Israel não está se defendendo. Está atacando, isso sim. Está matando pessoas que, na sua grande maioria, apenas lutam para sobreviver num pedaço exíguo de terra inóspita. De forma semelhante, mais de 10 mil prédios já foram atacados por bombas vindas do céu, sem (quase) nenhuma artilharia antiaérea, deixando centenas de pessoas sob escombros.

Mas, e a ONU? No exato momento em que Israel se prepara para lançar a ofensiva terrestre na faixa de Gaza, com potencial para quintuplicar o número de mortes já registradas, por que a ONU se limita apenas a tentar estabelecer corredores humanitários? Infelizmente, a resposta não é tão simples. Basta ver que a ONU foi criada, primordialmente, para evitar uma terceira guerra mundial. Mas não apenas para isso. A ONU possui muitos outros objetivos além de manter a segurança e a paz mundial, como estimular os direitos humanos, ajudar no desenvolvimento econômico e no progresso social, defender o meio ambiente, além de outras ações mais marginais de proteção contra desastres naturais, tentar evitar conflitos armados e ajudar aos mais necessitados contra a fome endêmica nos países mais pobres do globo.

Ao ler essa lista de atribuições que os países delegaram para esse organismo intergovernamental, é possível perguntar o quão todos esses objetivos foram realmente alcançados. A verdade é que ainda não tivemos uma terceira guerra mundial. Mas o crédito maior deve ser dado ao poder de destruição do planeta pelas bombas atômicas que as principais potências do mundo possuem, do que à capacidade da ONU de manter a segurança e a paz mundial.

Nessa circunstância, onde estão os direitos humanos dos migrantes mundo afora, em campos insalubres de refugiados por guerras promovidas, direta ou indiretamente, pelos mesmos países que têm o poder de veto no Conselho de Segurança da própria ONU? Da mesma maneira, cadê o desenvolvimento econômico e o progresso social dos países mais necessitados, especialmente no continente africano, ao longo dos últimos 80 anos, desde que a ONU foi criada? E o que dizer sobre o aquecimento global e o aumento da destruição do meio ambiente, com a expansão das commodities de monocultura e o incremento da exploração da indústria petrolífera, e agora a corrida pelo lítio, componente básico para os veículos movidos por energia elétrica?

A lista é grande, caro leitor. A fome cresce num mundo abarrotado de produtos supérfluos, assim como temos nesse exato momento mais de uma dezena de conflitos armados ao redor do planeta, sendo os principais a Guerra entre Israel e Hamas, o conflito entre Azerbaijão x Armênia em Nagorno-Karabakh (Já finalizado), a Guerra Rússia x Ucrânia, a Guerra da Síria e a Guerra civil no Iêmen.

Diante do exposto, será que ainda existe alguém que aposta no prolongamento temporal da ONU como organização extraterritorial capaz de manter o mundo em condições adequadas para a vida prosperar? Ou seremos capazes de imaginar outra alternativa de sociedade mais eficaz para barrar a aniquilação de todas as vidas do planeta em um futuro não muito distante? Basta lembrar que uma em cada dez espécies pode ser extinta até o final desse século. A principal causa? O homem!

Destarte, insisto porque é imperioso para o futuro do planeta essa questão, a saber, um novo organismo supranacional que contemple todos os povos com suas culturas, economias, religiões e, acima de tudo, uma política de bem-estar geral. O atual secretário-geral da ONU, António Guterres, tem apresentado algumas propostas interessantes, porém ainda tímidas para o objetivo maior citado acima. Realmente, não é mais concebível uma entidade como a ONU baseada, na sua essência, no Tratado de Westfália, em 1648.

Estamos no século XXI. Não existem mais continentes a ser descobertos, muito menos isolamento territorial. A Pangeia humana já é fato há séculos. O avançar da tecnologia reduz e embrutece cada vez mais um mundo que já foi bonito pelas suas longas distâncias, idiossincrasias de cada povo e naturezas intocadas. Tudo isso acabou! Talvez o mais subjetivo que temos hoje seja a tela do celular de cada ser humano. Se tudo isso não for levado em conta para o estabelecimento de um novo acordo global entre as nações, corremos o risco de, enfim, desembocarmos nas mãos do “Grande Irmão” orwelliano. E se isso acontecer, a Palestina não existirá mais!

*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES