Por DIOGO FAGUNDES*
Conflito irracional entre povos ou luta por justiça?
Infelizmente, por conta da pandemia, acompanho mais a mídia brasileira do que deve ser considerado saudável pelo bom senso. Não há surpresa alguma, de minha parte, pelo modo como o “conflito” na Palestina é retratado, mas aproveito a oportunidade para sublinhar o incômodo: a visão predominante impede, ou melhor, atua como um “obstáculo epistemológico”, para falar como estrruturalista, a qualquer compreensão política racional da situação.
Eis uma visão sumária do entendimento veiculado: temos uma disputa irracional entre povos que se odeiam — árabes e israelenses, cada um deles essencializados não apenas por uma religião, origem étnica, história ou cultura, mas também pela identidade e ação assumida por seus “representantes”: Estado de Israel e Hamas.
A descrição é a de praxe. Uns árabes terroristas enfezados e fanáticos lançam bombas sobre Israel. Este revida com mais bombas e mortes. Um ciclo infinito de barbaridade revanchista se instala, como na Oresteia de Ésquilo, na qual há uma cadeia causal interminável de derramamento de sangue, com a exceção de um elemento essencial da trilogia trágica da Grécia antiga: não há, no final, uma quebra deste ciclo através da vitória da justiça, simbolizada pelo tribunal de Atenas, apenas a perseguição e a luta interminável das erínias contra Orestes, árabes e judeus, numa interminável tensão entre terror e angústia.
Esta visão retira qualquer racionalidade política do que se passa, pois está submetida a um essencialismo identitário: dois povos, duas culturas, duas religiões irreconciliáveis. Temos apenas algo pré-político: o conflilto de povos com identidades fechadas lutando uns contra os outros, como muitas vezes é retratado no discurso ocidental em relação a povos “exóticos” muito tribais e distantes da modernidade– aconteceu algo parecido na representação ideológica da guerra da Iugoslávia ou no genocídio em Ruanda, no conflito em hutus ou tutsis– ou mesmo em relação ao seu próprio passado, nas guerras supostamente inexplicáveis entre distintas religiões e seitas no século XVII.
Muitas vezes, esta leitura identitária se resigna ao estado de fatos estabelecidos, com o seguinte argumento: nem os países árabes do Oriente Médio ligam tanto para os palestinos! Ou seja, nem seu próprio “povo” quer saber deles, que moral eles têm? Deixa pra lá. Como se realmente estivéssemos lidando com um “choque de civilizações”, no qual cada lado só interessa a sua própria “nação”. Judeus do lado de judeus, árabes do lado de árabes.
A única saída para esta visão que eternaliza a violência sem fim e consagra o inexplicável envolve a subtração do “culturalismo”, a des-hermeneutização das identidades culturais fixas. Não se trata de árabes ou judeus. Mas de colonialismo versus descolonização, dominação versus dominados. No lado dos “dominados” podem estar não apenas árabes, mas todos que lutam por igualdade no mundo, incluindo muitos judeus (sim, eles existem e não são poucos) e pessoas de qualquer origem ou território. Acreditar que algo tão prosaico como um Estado militarizado, um grupo de homens armados, representa a “essência” de um povo, é o caminho unívoco para todo tipo de variação da ideologia fascista.
Assim, tudo se torna menos sujeito às paixões das identidades fixas e congeladas: assim como na independência da Argélia, vários franceses estavam contra seu próprio Estado em defesa da libertação da até então colônia ou, no Vietnã, o melhor da juventude e da cultura estadunidense se uniram contra os próprios interesses de seu braço armado oficial, agora podemos entender o que acontece na Palestina em termos mais universalistas, o que pode interesssar a qualquer ser humano e não apenas às pessoas diretamente envolvidas naquela região.
Sempre, em toda a história da espécie humana, houve, contra o expansionismo militar de alguma potência ou apêndice de uma potência (EUA e Israel têm uma relação privilegiada), uma tendência oposta apontando para um futuro alternativo, envolvendo duas palavrinhas muito caras à humanidade: igualdade e justiça.
Que os palestinos se libertem e possam, assim, dar sua contribuição para a bela história, ainda a ser construída, da emancipação coletiva!
*Diogo Fagundes é graduando em direito na USP.