Desregulação sanitária e ambiental

Foto de Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HENRI ACSELRAD*

As liberdades de movimento e de empreender estão sendo confundidas com a liberdade para destruir e deixar morrer

Há anos assistimos a uma ofensiva de lobbies empresariais em favor da flexibilização das normas de licenciamento ambiental. Esta ofensiva integra o movimento mais amplo de desconstrução de toda a legislação ambiental brasileira. Este movimento veio sendo promovido, há tempos, por uma articulação de forças situadas dentro e fora de nossos corpos legislativos. Nos últimos anos, houve diversas propostas de alteração do licenciamento ambiental, entre elas aquela cujo texto-base – PL 3.729/2004 – foi aprovado dia 12 de maio de 2021 na Câmara de Deputados, após costura a portas fechadas com lobistas da indústria e do agronegócio[i]. Este substitutivo transforma o instituto do licenciamento ambiental em exceção, abolindo virtualmente sua existênc[1]ia e introduzindo um processo de autolicenciamento a ser efetuado pelos próprios promotores de atividades predatórias. A instalação das forças da transgressão da legislação dentro do próprio Ministério do Meio Ambiente, a partir de 2019, representou o apogeu da estratégia de desconstrução adotada por grupos que se enriquecem com a destruição do patrimônio natural e cultural do país. A presença, neste Ministério, da figura de um Ministro do Meio Ambiente que faz a apologia de um “estouro da boiada”, pelo qual pretende atropelar o mundo dos direitos, encarna, sem escrúpulos, o projeto de transformação da ilegalidade em norma. A noção de política pública de meio ambiente é substituída por seu contrário.

É sabido que a pressão do poder econômico adotou sempre direção oposta à dos grupos sociais ameaçados e vitimados pela degradação do meio ambiente. Pequenos produtores rurais, comunidades indígenas e quilombolas, moradores de periferias urbanas e áreas de concentração industrial têm sido as principais vítimas. O sofrimento dessas maiorias não decorre do excesso de avaliações ambientais prévias, mas, sim, de sua falta e insuficiência. Ao longo dos anos 1980, montou-se um arcabouço legal de meio ambiente que foi, à época, aplicado, ainda que precariamente, dada a crise fiscal do Estado. A partir dos anos 1990, juntamente com as pressões pela liberalização da economia, começou a aparecer um vocabulário expressivo da presença dos interesses do complexo extrativo agromineral dentro do próprio Estado. Críticas empresariais ao “cipoal de regulações”, ao “travamento da economia”, aos “obstáculos ao desenvolvimento” ganharam força e passaram a se fazer representar no interior do Congresso pela chamada bancada ruralista. Um dos alvos de seus ataques foi, desde então, a legislação que garantia a atuação do IBAMA como órgão responsável pela análise dos estudos de impacto ambiental requisitados no caso de empreendimentos de grande porte e grande impacto ambiental potencial. Inicialmente, os lobistas recorreram a argumentos da chamada “alternativa infernal”: “se não licenciarmos hidrelétricas, teremos de recorrer às termoelétricas”… Em seguida, adotou-se uma estratégia de culpabilização das vítimas dos impactos do tipo “vinte mil pessoas não podem impedir o progresso de milhões de brasileiros”; ou, “os quilombolas que denunciam os impactos danosos das hidrelétricas serão responsabilizados pelo aquecimento global, pois levarão à adoção de termelétricas”.

Ora, nunca como antes os fatos desmentiram com tanta ênfase esta velha retórica de que os cuidados com o meio ambiente impediriam o crescimento e a geração de empregos. Desde 2019, o Brasil vem experimentando, ao mesmo tempo, recordes em degradação ambiental e recordes de desemprego. O desemprego foi por certo agravado pela pandemia. Mas como a CPI da COVID no Senado exibe exaustivamente, o tamanho do estrago causado pela pandemia é fruto dos mesmos princípios “desregulatórios” que são pregados à larga pelo governo federal. Neste caso, a ausência de regulação aplicou-se, com criminoso esmero, à saúde pública. O que é a gestão bolsonarista da pandemia senão a flexibilização total das normas sanitárias? Qual o sentido da ação do governo federal senão o da busca da lucratividade econômica a qualquer custo, mesmo que às custas de centenas de milhares de mortos?

As avaliações prévias de impacto ambiental envolvem não somente a preservação do meio ambiente, mas a manutenção das condições de existência de inúmeros grupos sociais cujos direitos territoriais, à saúde e ao trabalho dependem da preservação de ecossistemas, rios, lagoas, bacias aéreas e diversidade biológica[ii]. Esses são os grupos sociais que têm sido atingidos, em nome do progresso, por graves injustiças ambientais. Ao contestar a presente intenção de descaracterização dos processos de licenciamento ambiental[iii], esses grupos entendem não ser justo que os lucros das grandes empresas sejam obtidos às custas do empobrecimento da maioria. Não pretendem admitir que a prosperidade dos ricos se dê através da expropriação dos que já são pobres. Pois este foi o mecanismo pelo qual o Brasil alcançou uma das primeiras posições mundiais em desigualdade social no mundo: concentrou-se a renda, mas concentrou-se também os espaços e recursos ambientais nas mãos de grandes interesses econômicos.

A recusa de um processo de licenciamento transparente e amplamente discutido com os grupos potencialmente atingidos pelos projetos econômicos se assemelha, hoje, à recusa da vacina pelo governo federal. O licenciamento, mesmo que, até aqui, visto como insuficiente na perspectiva dos grupos atingidos, visava desempenhar o papel de uma espécie de vacina contra a grande predação e expropriação dos desprotegidos. A desregulação sanitária e ambiental é justificada pela pretensão de oferecer liberdade para os negócios. Se prevalecer o texto base do PL 3.729/2004 aprovado na Câmara. a liberdade de movimento e a liberdade de empreender estarão sendo confundidas com a liberdade para destruir e deixar morrer.

Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).

Notas


[i] “O documento foi elaborado a portas fechadas, com a bancada ruralista, a Casa Civil e lobbies de grandes indústrias e empresas de infraestrutura.” ISA, Indígenas, quilombolas e extrativistas são contra projeto que praticamente acaba com licenciamento, https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-quilombolas-e-extrativistas-sao-contra-projeto-que-praticamente-acaba-com-licenciamento?utm_source=isa&utm_medium=manchetes&utm_campaign

[ii] Segundo levantamento do ISA, “297 Terras Indígenas ou 41% do total de áreas com processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional do Índio (Funai) seriam transformadas em terra de ninguém para efeitos de avaliação, prevenção e compensação de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas. Isso porque o texto de Geller prevê o licenciamento apenas para territórios já homologados, isto é, com demarcação já concluída, ou com restrição de uso para grupos indígenas isolados”. ISA, Indígenas, quilombolas e extrativistas são contra projeto que praticamente acaba com licenciamento, https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-quilombolas-e-extrativistas-sao-contra-projeto-que-praticamente-acaba-com-licenciamento?utm_source=isa&utm_medium=manchetes&utm_campaign

[iii] A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), além de mais 24 redes e organizações divulgaram uma nota em que condenam a proposta ruralista e bolsonarista. Nota de Repúdio ao substitutivo do Deputado Mauro Pereira ao Projeto de Lein.º 3.729/2004, https://www.sabnet.org/download/download?ID_DOWNLOAD=431

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado Antônio Sales Rios Neto Tadeu Valadares Berenice Bento Thomas Piketty Rodrigo de Faria Dênis de Moraes Heraldo Campos Marcelo Módolo Maria Rita Kehl Érico Andrade José Dirceu Sergio Amadeu da Silveira Benicio Viero Schmidt Boaventura de Sousa Santos José Costa Júnior Kátia Gerab Baggio Vladimir Safatle Juarez Guimarães Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Ricardo Musse Luiz Marques Jorge Branco Yuri Martins-Fontes Henry Burnett José Micaelson Lacerda Morais Alexandre Aragão de Albuquerque Celso Frederico Valerio Arcary Ronald Rocha Igor Felippe Santos Chico Whitaker Liszt Vieira Samuel Kilsztajn Francisco Pereira de Farias Paulo Nogueira Batista Jr Anderson Alves Esteves João Lanari Bo Airton Paschoa Milton Pinheiro Gilberto Maringoni Paulo Capel Narvai Priscila Figueiredo João Carlos Salles Marcelo Guimarães Lima João Adolfo Hansen Fernão Pessoa Ramos Lorenzo Vitral Eugênio Trivinho Tarso Genro Flávio R. Kothe Mário Maestri Paulo Fernandes Silveira Roberto Bueno Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Bruno Machado João Paulo Ayub Fonseca Jorge Luiz Souto Maior Luiz Eduardo Soares Leonardo Sacramento José Machado Moita Neto Luiz Roberto Alves Elias Jabbour Mariarosaria Fabris Michael Löwy Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Marilena Chauí Otaviano Helene Dennis Oliveira José Raimundo Trindade Lincoln Secco Celso Favaretto Vinício Carrilho Martinez Gabriel Cohn Gerson Almeida Ricardo Fabbrini Andrew Korybko Alysson Leandro Mascaro Valerio Arcary Antonio Martins Claudio Katz Henri Acselrad Bernardo Ricupero Daniel Brazil Marcos Aurélio da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Eleonora Albano Marjorie C. Marona Manuel Domingos Neto Roberto Noritomi João Sette Whitaker Ferreira Walnice Nogueira Galvão Ari Marcelo Solon Antonino Infranca João Feres Júnior Luiz Renato Martins Julian Rodrigues Marcus Ianoni Carla Teixeira Flávio Aguiar Daniel Costa Anselm Jappe Annateresa Fabris Atilio A. Boron Bento Prado Jr. Paulo Martins Ronald León Núñez Manchetômetro Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay Eliziário Andrade Sandra Bitencourt Francisco de Oliveira Barros Júnior Carlos Tautz Luiz Werneck Vianna Caio Bugiato Afrânio Catani Jean Pierre Chauvin Leonardo Avritzer Everaldo de Oliveira Andrade Remy José Fontana Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Bernardo Pericás Daniel Afonso da Silva Fábio Konder Comparato Rubens Pinto Lyra Chico Alencar Lucas Fiaschetti Estevez Leda Maria Paulani Salem Nasser Osvaldo Coggiola José Luís Fiori José Geraldo Couto Armando Boito Michael Roberts Renato Dagnino Marcos Silva Eduardo Borges Francisco Fernandes Ladeira Tales Ab'Sáber Leonardo Boff Eugênio Bucci João Carlos Loebens Luís Fernando Vitagliano Gilberto Lopes Fernando Nogueira da Costa Luis Felipe Miguel Slavoj Žižek Denilson Cordeiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. André Márcio Neves Soares Ladislau Dowbor Luciano Nascimento Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rafael R. Ioris Ronaldo Tadeu de Souza

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada